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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

A jóia de Semele

 

Haendel
Semele
Com Cecilia Bartoli
Encenação de Robert Carsen
Direcção de William Christie
Produção da Ópera de Zurique
Realização de Feliz Breisach
2 dvds Decca, dist Universal
 
 
Semele é uma das mais insólitas – talvez a mais insólita mesmo – obra de Haendel e uma das suas jóias maiores. Como venho referindo, três das oratórias, Semele. Theodora e Hercules não são bíblicas (e só a segunda é de tema cristão), podendo-se considerar autênticos dramme per mùsica, embora em princípio – Haendel já tinha abandonado os palcos cénicos – não destinadas a representação, o que todavia tem vindo a acontecer, com plena justificação, nos últimos anos.
 
Das três, Semele é cronologicamente a primeira – 1744 Como também já referi, o compositor já se dedicava de modo consistente à oratória desde Saul, em 1739. Não sabemos exactamente se ele terá tido consciência logo depois que Deidamia, de 1741, era a sua última ópera, mas o triunfo de O Messias, no ano seguinte, fê-lo dedicar-se ainda mais à oratória. Certo é que as rivalidades operáticas não o largaram: depois de ainda outra oratória, Sansão, de 1743, e de várias peripécias, incluindo problemas de saúde e financeiros do compositor, ele fez face aos imbróglios com uma obra “in the manner of an  oratório” “in the manner”, note-se bem, destinado ao concerto, mas não exactamente uma oratória, e com as bem patentes marcas de um consumado autor de óperas (é de lamentar que um livrete deste dvd inclua apenas um texto do encenador sem quaisquer notas sobre tão peculiar obra).
 
A sua escolha foi das mais singulares: uma peça do dramaturgo da Restauração William Congreve, uma comedy of manners, uma comédia sexual, e de que maneira! Em toda a obra de Haendel Semele rivaliza apenas com Agrippina e Giulio Cesare na sensualidade e carácter lúbrico – e é aparentemente uma oratória! Semele é um dos grandes papéis haendelianos, e há também o de Juno, nomeadamente com a famosa ária Hence, Íris, hence away!.
 
 
A certa altura da sua carreira, a Bartoli fez saber do seu interesse em gravar um recital dedicado a Haendel. Quando por circunstâncias inesperadas ela cantou na Òpera de Zurique a oratória romana La ressurezione dirigida por Marc Minkowski, pensou-se (escrevi-o a altura) que esse recital se aproximava. Afinal fizéramos em conjunto um mais original trabalho, dedicado apenas ao período romano do compositor, e também dos seus coevos Alessandro Scarlatti e Caldara, o magistral Opera Proibita, “ópera disfarçada” (porque interdita nos Estados Papais) em oratórias e cantatas.
 
O intendente Alexander Pereira tornou a Ópera de Zurique numa das mais reputadas da Europa. É lá, e apenas lá, que Cecilia Bartoli canta regularmente em cena. Em rigor, esta Semele não é uma “produção” daquele teatro. A encenação de Robert Carsen data de 1996, e foi originalmente concebida para o Festival de Aix-en-Provence (foi Minkowski que então dirigiu), na mesma altura, se bem me lembro, que Peter Sellars e Wiliam Christie faziam em Glyndebourne a sua extraordinária realização de Theodora. O toque e os tiques de Carsen estão bem patentes: as cadeiras semi-voltadas de costas para o público, como na Tosca apresentada no ano passado no São Carlos que foi um dos seus primeiros trabalhos, os tapetes vindos directamente da sua anterior encenação em Aix, essa admirável, do Sonho de uma Noite de Verão de Britten (existe em dvd, captado no Liceo de Barcelona), mas a realização nem por isso deixa de ter o seu charme.
 
É pela Bartoli que nos precipitamos para este dvd, e ela é magnificente, strepitosa. Ei-la de novo com “ópera disfarçada”, mas desta vez aliando o esplendor vocal à inteligência dramática e cénica, tão magistral na deslumbrante agilidade como na arte do abandono em Endless pleasure, Oh Sleep (divino pianíssimo!) ou With Fond Desiring.
 
Não é surpresa que os parceiros sejam poucos mais que comparsas. Anton Scharinger (Cadmus) e Birgit Remmert (Juno) são erros de casting, quando ambos já deram provas suficientes noutros repertórios, havendo a agravante da segunda não ter meios para cantar Hence, Íris, hence away, Isabel Rey (Íris) é frágil embora cenicamente versátil, Liliana Nikiteanu (Ino) está mesmo desfasada. Quanto a Charles Workman (Júpiter), tão notável intérprete de tragédies lyriques, de Rameau ou Gluck, tem uma bela linha de canto mas escasseia-lhe a autoridade e a virtuosidade do papel.
 
A Wiliam Christie já se lhe ouviram em Haendel direcções mais vigorosas (é mesmo um especialista), o que é tanto mais estranho, quanto La Scintilla, o agrupamento barroco da Òpera de Zurique, tem melhores capacidades do que aqui deixa ouvir de modo um pouco aquém da beleza plástica da obra, como é estranho que, sendo Christie um consumado director de vozes, se mostre ainda assim incapaz de moldar a vocalidade de vários (quase todos) os solistas. É a presença em cena da Semele da Bartoli que tudo transfigura.
 
A Semele conta com um dos registos mais “anómalos” da discografia haendeliana, com Kathleen Battle (sim, essa, imagine-se!), Marilyn Horne e Samuel Ramey, com uma orquestra “moderna”, a English Chamber Orchestra, e direcção de John Nelson (DG). Em termos musicais globais é essa a gravação a reter. Mas, e apesar de todas as reservas, esta memorável interpretação da Bartoli, a possibilidade de dispor de uma realização cénica de tão insólita obra e, ainda, o facto de com esta ficarem disponíveis em dvd produções teatrais de todas as três oratórias não-biblícas de Haendel, faz com que não se possa deixar de considerar este registo – e de, com prudência ainda, o recomendar.
 
Mortal amada e amante de Júpiter, Semele perde-se pela ambição desmedida de alcançar a divina imortalidade. Quanto à Semele da Bartoli, essa é mesmo divinal.

 

A lenda de Maria Malibran - II

 

 

Cecilia Bartoli
Maria
Árias e trechos de Bellini, Pacini, Persiani, Hummel, Mendelssohn, Halévy, Rossi, Manuel García e Maria Malibran
Orquestra La Scintilla, Adam Fischer
Decca/Universal
 
 
 
Com Maria, disco de homenagem a Maria Malibran, Cecilia Bartoli dá um passo não apenas arriscado, o que na sequência dos àlbuns Vivaldi, Salieri, Gluck e Opera proibita é afinal o que a distingue, mas mesmo eventualmente de uma ousadia excessiva, temerário.
 
Convirá, todavia, atender a quadros mais genéricos para perceber o âmbito deste passo. É sabido que a reapropriação de certos repertórios, com fundamentação musicológica,
foi e é característica dessa verdadeira revolução interpretativa consagrada na expressão “nova música antiga”, abrangendo o barroco, que depois foi englobando também o classicismo no seu campo de reinvenções interpretativas, e mais recentemente o primeiro romantismo. Prenunciada no recital Live in Italy, a integração da Bartoli neste campo estabeleceu-se desde o Vivaldi Album.
 
Um dos terrenos particulares de aproximação que tem vindo a ocorrer é o do recital com base no repertório histórico de um cantor. Nicholas McGegan foi no caso o pioneiro, dirigindo o conjunto de quatros recitais de “Arias for...” quatro intérpretes emblemáticos de Haendel: a Durastanti, a Cuzzoni, “Senesino” e Mantagnana. Seguiu-se René Jacobs, de resto atento ao sucesso vivaldiano de Bartoli, no passo excessivamente ambicioso das árias para Farinelli, que propulsou Vivica Genaux, Andreas Schöll retomando o repertório do “Senesino” ou, muito recentemente, Phillipe Jaroussky abordando o repertório de “Crescentini”, em disco ainda não distribuído em Portugal.
 
Deve também dizer-se que no campo musicológico tem havido estudos sistemáticos de perfis de certos cantores históricos, até para melhor perceber o tipo de “vocalità” que as óperas de facto solicitavam, sendo certo que eram compostas com vista também a intérpretes concretos.
 
Só por ignorância, snobismo alarve ou facciosismo de tertúlia se poderá pois recusar “à priori” uma proposta como esta agora, sendo para mais conhecidas as muitas e cintilantes provas já dadas por essa intérprete verdadeiramente excepcional que é Cecilia Bartoli.  
 
Tudo isto dito, não é menos que abordar a Malibran, aquela que até à Callas foi por excelência a “diva”, é passo temerário.
 
Contudo, em termos estritamente musicológicos, o objecto Malibran não deixa de ser dos mais fascinantes, sabendo-se como houve um repertório especificamente seu, com árias escritas só para ela (árias que alguns compositores para ela escreveram para serem interpoladas em óperas de outros) ou particulares versões – caso da chamada “versão Malibran” da Sonâmbula de Bellini, a qual todavia, e apesar da enorme admiração do compositor pela cantora e da sua disponibilidade para proceder a justamentos de óperas suas para os requisitos dela (como no caso dos Puritanos) não deverá ser do próprio Bellini mas de Henry Bishop, facto que o livrete, documentadissimo como sempre nos discos da Bartoli, todavia não refere.
 
Aos nossos hábitos de audição soará estranho ouvir uma “mezzo” cantar A Sonâmbula, Os Puritanos ou Norma, mas as primeiras grandes divas, Pasta ou Malibran (e foi sobretudo para Giuditta Pasta que Bellini escreveu essas óperas, depois reapropriadas pela Malibran) eram de facto o que hoje designamos de “mezzo”, ainda que com agilidade nos agudos e mesmo sobreagudos, numa tessitura mais próxima dos “castrati contraltini” a que sucederam – e no caso da Norma não há mesmo qualquer dúvida que, contrariamente à tradição instituída, o papel titular é sim mais grave, e não mais agudo, do que de Adalgisa.
 
É assim todo um repertório que Bartoli revela neste álbum, caso por exemplo das árias de Pacini (que, como um Mercadante, foi um dos importantes autores da primeira geração romântica da ópera italiana, eclipsados por Bellini e Donizetti, e pela rivalidade entre esses) ou, já conhecida esta, da Ines de Castro de Persiani, bem como alguns trechos mais circunstanciais ou de menor relevo musical, do pai Manuel Manuel García, da própria Malibran ou uma ária tirolesa de Hummel.
 
Mas, evidentemente, os trechos bellinianos são uma vertente axial desta proposta. E se é miraculoso o modo como Bartoli soa etérea na Amina da Sonâmbula ou na Elvira dos Puritanos, já a “Casta Diva” da Norma (com a flauta “obligatta” restaurada) é assaz singular, quase murmurada, e hipnótica nesse murmúrio, mas contudo sem o carácter extático da invocação.
 
A destreza e a bravura de Cecilia Bartoli são incomparáveis – e que “panache” no Rataplan da própria Malibran! Mas também há passagens de registo pouco conseguidas e sobretudo uma espampanante tendência à ornamentação algo mecanicista dos vocalizos.
 
A afinação a 430Hz é particularmente confortável para a “mezzo” nestas páginas (e filologicamente pertinente) e são excelentes as cores da Scintilla, o conjunto de instrumentos de época da Ópera de Zurique, dirigido por Adam Fischer.
 
Supervisando a Bartoli todos os aspectos da operação, também há a dizer que a embalagem de luxo e o marketing do produto têm neste caso aspectos poucos felizes, com os seus dourados, mas sobretudo insistindo num jogo de espelhos Malibran/Bartoli que não deixa de favorecer a leitura mais redutora deste projecto, a de um puro acto de “divismo”, quando é outra coisa, e mais, muito mais que isso.