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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Christian Zacharias - II

 

 

 

Christian Zacharias
Obras de Haydn, Schumann e Debussy
Gulbenkian, 24 de Novembro
 
Há músicos que podem ser superlativos mas que sempre se mantêm dentro dos canônes estabelecidos. Há outros que são movidos pela curiosidade intelectual e propriamente musical. Há pianistas que até podem ser superlativos mas tão só virtuoses do instrumento. Christian Zacharias é um músico, que aliás, além de tocar piano se vem também dedicando à direcção de orquestra, um músico que tem preferido fazer um trajecto singular mesmo que isso signifique menos holofotes.
 
Começar e terminar um recital com as negligenciadas sonatas de Haydn, enquadrando uma das peças mais raras em concerto de Schumann, a Humoresque e, qual corpo aparentemente estranho, alguns Prelúdios de Debussy, como foi o caso do recital de ontem na Gulbenkian, corresponde a uma verdadeira declaração de princípios – ou a um modo de se estar no mundo da música.
 
Na Sonata em fá maior, Hob. XVI: 29 de Haydn, imbuído de um misto de style galante e Empfindsamkeit (de facto os estilos “galante” e “sensível” não são exactamente o mesmo), obra de algum modo ainda mais pré-clássica que em rigor clássica, logo Zacharias patenteou uma aguda compreensão, na precisão do staccato, no controle dos planos, na discreção dos pedais, na flutuação dos tempos ou na subtileza do toucher. Posso pensar que compreendo melhor a obra, por assim dizer na sua objectualidade física, com interpretações em pianoforte de época (como as de Ronald Brautigam), mas também não posso deixar de reconhecer o modo inteligentíssimo como Zacharias faz uso do piano moderno, um uso por assim dizer limitado.
 
Pessoalmente também, em particular no caso de uma peça como a Humoresque, penso que Schumann requer um “suplemento de alma”, uma passionalidade temperamental, e nesse caso tenho mais dúvidas que a deliberada retracção de Zacharias (uma opção de rigor e de recusa da espectacularidade) se adeqúe com o mesmo sucesso a um propósito que requer o  arrebatamento – mas só abalançar-se à Humoresque é, em si, um gesto musical eminente.
 
Os tais “inesperados” Prelúdios de Debussy vieram-nos afinal em concreto recordar que, por via do seu aperfeiçoamento junto do grande Vlado Perlemuter, o alemão Christian Zacharias também é um pianista de “escola francesa”. Foi um Debussy sem maneirismos rebuscados e de belíssimos rendilhados, nem sempre plenamente sugestivo mas com uma La cathédrale engloutie prodigiosa de definição de planos.
 
Mas o melhor seria a conclusão, de novo Haydn, com a Sonata em ré maior, Hob. XVI: 24, esta de factura mais francamente clássica. E que dizer senão que foi um puro deslumbramento?! Uma tal compreensão, uma tal fluência, um tal domínio dos tempos, só podem ser fruto de uma grande inteligência musical e de uma prolongada maturação. Uma interpretação de Haydn assim está a um nível dos grandes mestres que são “apenas” Richter, Gould e Brendel.
 
Eu bem tinha avisado que Christian Zacharias era um dos maiores embora também mais discretos pianistas da actualidade.

 

 
 
 
 

Christian Zacharias - I

 

 

O recital do imenso Alfred Brendel na sua digressão de despedida, no próximo dia 30, na Gulbenkian, está hà muito, como seria de esperar, hiper-esgotado. Mas atenção que, sem grandes alaridos, amanhã às 19h actua um dos maiores e mais discretos pianistas da actualidade, Christian Zacharias, um dos máximos intérpretes mozartianos e schubertianos – vem tocar Haydn, Schumann e Debussy.
 
Já agora, para o resto do trimestre, isto é Dezembro, o destaque é outro grande pianista, o húngaro Zoltán Kocsis, que em dois concertos, a 4 e 5 e 11 e 12, se apresenta aliás não só nessa condição (e logo com obras dos seus autores de eleição, Bartók e Mozart), mas também na de maestro, já de provas dadas, e, incógnita a merecer curiosidade, igualmente orquestrador.