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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Uma ideia de programação

Na ocasião agora do ciclo "Autobiografias/Autoficções"  na Culturgest, André Dias publicou no seu blog, Ainda não começámos a pensar , uma conversa que tivemos justamente sobre programação.

 

 

È uma ocasião que me permitiu esclarecer alguns entendimentos sobre crítica e programação, ou da programação como continuação da crítica por outros meios, bem como - o que relido agora, me parece também importante de assinalar - da minha disponibilidade para trabalhar com festivais, como tem sucedido com o Doclisboa, preservando no entanto uma margem de autonomia, necessária à própria condição crítica - sendo certo, acrescento, que mantenho a reserva ao discurso do "mais" (mais salas, mais sessões, mais filmes, mais espectadores) que os festivais, o Indie ou o Doc, vêm produzindo.

Autobiografias/Autoficções - III

“Portrait d’une jeune fille…”

 


4- Face ficcional da retrospectiva de “Diários filmados e Auto-Retratos”, este ciclo de Autobiografias/Autoficções apresenta quatro realizadores que de modo persistente e recorrente, filme após filme, foram evocando e reconstruindo as memórias da sua vivência pessoal, os britânicos Bill Douglas e Terence Davies, a húngara Marta Mészàros e ainda a belga Chantal Akerman, autora em que aflora também, de modo mais espaçado mas recorrente, a directa enunciação da experiência pessoal – de resto, não será por acaso que o seu foi o único caso, além de Godard no já citado JLG par JLG: Autoportrait de Décembre, de um autor que para a célebre emissão “Cinéastes de notre temps” foi abordado pelo próprio, Chantal Akerman par Chantal Akerman.

Portait d’une jeune fille de la fin des années soixante à Bruxelles foi parte de uma série para a Arte, “Tous les garçons et les filles de leur âge” (e é de lamentar que um tal importante conjunto nunca tenha sido exibido em Portugal), uma “colecção” de telefilmes a partir de um conceito comum, a cada autor cabendo fazer uma crónica da adolescência. Dessa “colecção” o exemplo mais conhecido é Os Juncos Silvestres, o filme explicitamente de inspiração autobiográfica de André Téchiné (um caso mesmo de coming out filmico, evocando a descoberta da sexualidade homo), de resto aquele em que estava previsto de início uma versão televisiva, que tem título próprio, Le Chêne et le rouseau, e uma versão mais longa para cinema – ainda que outros filmes, os de Olivier Assayas e de Cédric Kahn, acabassem por ter também versões mais longas, Eau froide e Trop de bonheur respectivamente.

O quadro é pois Bruxelas, a época,” la fin des années soixante”, é mais concretizada, “Avril 1968”, esse mesmo momento em que, em país vizinho, um editorialista do “Le Monde” constatava que “la France s’ennuie”.
È uma coincidência feliz que agora esta apresentação em Portugal ocorra no momento em que o 40º aniversário traz de novo para o debate a “herança de Maio de 68”. Não que Portait d’une jeune fille… seja uma directa evocação, propósito que aliás nunca teria cabimento na obra da cineasta belga. Mas a inscrição da data não é por certo acidental.

Portait d’une jeune fille… é um filme de descoberta, do sexo e do cinema, num quadro de súbita aceleração, mas também surpreendente no modo como joga com as referências de épocas, com “anacronismos” de um relato não linear, passagens de um tempo a referências de outro, qual “corrente de consciência” como tantas vezes são – desse modo, e não lineares – as evocações da própria vida, como as ficcionalizações de vidas semelhantes.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

“My Aint Folk” de Bill Douglas e “Madonna and Child” de Terence Davies
 
 
 
5- A “Trilogia de Bill Douglas”, a por assim dizer “dupla trilogia” de Terence Davies (a propriamente designada “Trilogia”, Children, Madonna and Child e Death and Transfiguration constituindo-se como um “tomo um”, com depois Distant Voices/Still Lives e The Long Day Closes), a trilogia dos “Diários” de Marta Mészàros.
 
 
Não será propriamente uma mera coincidência estas “trilogias” (de resto só não foi sim possível incluir neste ciclo os filmes de Jacques Nolot, agora, depois de Avant que j’oublie, designados também como “trilogia”, os anteriores sendo L’Arrière pays e La Chatte à deux têtes, caso tanto mais particular de autoficção quanto o próprio Nolot é o protagonista). Para além das muitas diferenças, esta coincidência assinala os casos distintivos em que a evocação pessoal de factores biográficos foi trabalhada de modo prosseguido – como se o “tempo”, a crono/logia do trabalho de memória, não se compadecesse com afloramentos ditados por critérios estandardizados de produção. O “tempo”, os modos do “tempo”, como afinal também na “média metragem” de Akerman.
 
As estruturas temporais e as consequentes figurações são aliás um importante vector para atender às características de cada um dos projectos. Ou também, no que será uma outra perspectiva, o modo como se inscrevem os directos sinais da experiência biográfico, os modos declaradamente pessoais de inscrição do real.
 
 
Há nos filmes do escocês Bill Douglas e do inglês e Terence Davis (ambos católicos, note-se, o que é importante) uma aproximação reconhecível aos quadros do “realismo britânico”.O que fazem é todavia investir pela subjectividade radical da experiência pessoal o pressuposto de “objectividade” desse realismo.
 
My Childhood, My Aint Folk,  My Way Home – não há outro caso assim, como a da trilogia de Bill Douglas, em que um cineasta tenha assim tão claramente enunciado que estava a narrar algo que lhe é específico, o que há de mais irredutivelmente pessoal na sua experiência, a própria vida.
 
Será caso de dizer que é a trilogia de Douglas, o autor, de Jamie, a personagem, e de Stephen Archibald, que ao longo dos anos lhe foi dando corpo, caso prodigioso de total coerência entre os propósitos da evocação e o modo de figuração. A âncora da evocação é de facto o corpo de Jamie/Stephen Archibald, o qual crescendo vai voltando (“my way home”) ao seu território singular, a infância das memórias – e poucas evocações da infância existem com esta intensidade na arte cinematográfica.
 
“Assim tocamos sem dúvida no paradoxo mais misterioso de obra cinematográfica (e histórica) de Bill Douglas: partir em busca do tempo perdido como de uma terra rigorosamente desconhecida, repor em cena o seu próprio passado como se ele (e o seu espectador) não soubessem se não o mesmo que a criança que ele era, reencontrar, neste puro presente, , de uma memória vertical e instantânea,  sem passado nem futuro, esses ‘blocos de infância’ inassimiláveis – para tomar de Deleuze e Guattari uma expressão que eles retomavam de Kakfa a propósito de Dickens (precisamente dois autores que o adolescente Jamie descobre em My Way Home) – que farão ‘gaguejar” o miúdo escocês no adulto inglês em que de facto Bill Douglas nunca se quis tornar. È uma História que nos permite assumir enfim plenamente, sem jogos de palavras, a reivindicação demasiada vezes leviana, de um cinema menor” – escreveu Patrice Rollet (“La Lumière fossile de l’enfance” em Passages à vide, eclipses, exils du cinéma), aproximação particularmente pertinente a Kakfa, para uma literatura menor de Deleuze e Guattari – e que aliás, sem prejuízo do que é tão particular a Bill Douglas, nos abre as portas de uma elucidação a outros propósitos de base autobiográfica, e desde logo também os de Akerman e Terence Davis, nessa reivindicação de uma “menoridade” que é a da experiência pessoal, como Kafka se obstinou em anotar no Diário os traços da sua singularidade.
 
Bill Douglas (1934-1991) fez apenas mais um filme, Comrades, esse pelo contrário bem longo de 180 minutos, todavia na mesma convicção que o tempo de duração se prende não com “formatos” estandardizados mas com a matéria narrativa. É uma evocação de um grupo de trabalhadores que formaram um dos primeiros sindicatos rurais e que foram desterrados para a Austrália – e simultaneamente uma evocação do tempo perdido das lanternas mágicas. É um filme da memória comunal, como a Trilogia o é da memória pessoal
 
 
Ocorre, de facto, que se possa mesmo considerar uma “dupla trilogia” de Terence Davies, a propriamente designada “Trilogia”, Children, Madonna and Child e Death and Transfiguration, com depois Distant Voices/Still Lives e The Long Day Closes O âmago, o núcleo ficcional, do desejo e da memória, é sempre o mesmo: a infância e adolescência, a família e o pai prepotente, a sexualidade interdita, tanto mais “pecaminosa” quanto o quadro é fortemente marcado pela religião
 
Não há uma linearidade cronológica, ora se voltando repetidamente à infância e puberdade, ora o autor projectando-se no seu futuro, o estatuto paradoxal do tempo sendo matéria primordial do propósito cinematográfico. É questão de “blocos” também, de blocos e de fragmentos de pontos de vista, um espelho obsessivo, mesmo se um espelho quebrado.
 
Será então outro aspecto a considerar como estas re-articulações temporais são comuns a Douglas, Davies e Akerman.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Distant Voices”
 
 
 
 
 
 
 
 
6 -Nisso é de todo diferente a trilogia de Marta Mészáros, Diário para os meus filhos, Diário para os meus amores, Diário para o meu pai e a minha mãe, títulos sintomáticos de um desejo de transmissão e testemunho – aos próximos (é aliás também, apesar do seu aparato produtivo, um projecto em “família”, com o filho de Mészáros, Miklos Jancsó Jr., como director de fotografia, e o seu segundo marido, o actor polaco Jan Nowicki, como protagonista) e à generalidade.
 
Tempo houve em que o cinema húngaro, o mais (relativamente) aberto do “bloco de leste” nos era (relativamente) conhecido, tempo que foi o dos anos 70, após o 25 de Abril.
 
Para além das circunstâncias de distribuição que se alteraram, esse momento histórico correspondeu também à maior intensidade da “Escola de Budapeste”, enfrentando a história recente da Hungria ou com esse olhar designado “micro-realista”, de que foram notáveis exemplos Nove Meses e Adopção, dois dos filmes de Mészáros estreados em Portugal.   
 
Desse olhar há ainda resquícios nos “Diários”, no que se tecem também em gestos quotidianos, tanto quanto na busca do pai e na narrativa da História da Hungria, do estalinismo e do comunismo real.
Sendo a narrativa de Julie, tão evidentemente, em tantos pormenores, a projecção pessoal de Marta Mészáros, os “Diários” são também a reivindicação de narrar uma História dolorosamente “Maior”.
 
O seu fundamento autobiográfico aproxima-se das “Memórias”, nisso mesmo também mais sendo mais condicionados pela evidente preocupação da acessibilidade do relato transmitido, respeitando a sequência da cronologia – já que, como se notará, se todas as propostas deste ciclo são também relatos da descoberta do cinema por parte dos seus autores e correspondentes personagens ficcionais, no caso de Mészáros isso corresponde também a uma determinação obstinada de deixar a História impressa na película, para que outros também a conheçam
 
E não é pequeno propósito narrar, com uma amplitude sem paralelo, a História real da tragédia do comunismo burocrático,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Autobiografias/Autofições - II

 

Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel em “Os Quatrocentos Golpes”
 
 
 
Subjectividades e modos de narração
 
 
1 - É recorrente que filmes sejam comentados e classificados como “autobiográficos” ou mesmo “confessionais”. Esse estatuto aparece muitas vezes como “evidente” (no sentido literal de se apresentar como matéria de evidência) mas, na falta de categorização precisa, é também escorregadio ou equívoco.
 
A consolidação de particulares modos de produção de “cinema de autor” arrastou mesmo consigo critérios que podem ser simultaneamente de “validação” e exigência. Em concreto, sucede com frequência, nomeadamente no caso de primeiros filmes, esperar-se, “solicitar-lhes” mesmo, que façam prova de singularidade exibindo as marcas de uma experiência pessoal sustentada na biografia do seu “autor”.
 
Considerar essa marca pessoal, que aos filmes confere uma “marca autoral”, como fundamentada na experiência biográfica, é um equívoco. Mas ainda assim poderemos de facto perguntar se não há casos, eventualmente mesmo uma corrente de afinidades e paralelismos, em que tal sucede – e, assim sendo, como?
 
Sendo a “autobiografia” um conceito literário, também a literatura, ou antes, de modo mais genérico e raso, o campo da produção de livros, demonstra à saciedade que o “critério vivencial”, que se inscreve antes do mais na esfera mediática e sociológica, não é de ordem estética. Mais: os regimes mediáticos vigentes centram-se cada vez mais na produção e apresentação de “factos de vida”, solicitando o voyeurismo e a intensificação sensacionalista. São essas razões suficientes para a prudência na definição de obras, e em concreto de obras cinematográficas, como “autobiográficas”.
 
Assim definida uma precaução genérica, é todavia inegável que, de diversos modos, um cinema enunciado na primeira pessoa vai-se tornando cada vez mais frequente, tal como o registo em material fílmico ou videográfico dos passos de uma vida -  quantas vezes, e com quanto maior frequência, desde o próprio acto de nascimento -, como é também inegável o já longo lastro material de diários e auto-retratos filmados, objecto aliás da secção retrospectiva do Doclisboa do ano passado.
 
A questão existe pois – porque de “questão” teórica e de percepção se trata também. É igualmente uma questão que se prende historicamente com movimentos e percursos cinematográficos.
 
 
 
2 -Desde a nouvelle vague, desde Truffaut e o seu “alter-ego” Antoine Doinel, a experiência autobiográfica foi de facto parte inerente às singularidades de cineastas como Eustache, Garrel e mesmo Pialat.
 
Por outro lado, também a figura do “autor cinematográfico” foi de tal modo reconhecida ou colocada no estatuto de legitimação, que certos autores se “confundiram” com os suas obras, enquanto sujeitos de uma imagem e de uma aura particulares, com implicações em concretos filmes seus Foi o caso sobretudo, embora por vias de todo diferentes, de Fellini e de Godard, que de modo directo ou indirecto se projectaram enquanto autores, eles próprios, em filmes.
 
 
 
 
Fellini em “Entrevista”
 
 
 
 
8 ½ foi a esse título exemplo inaugural, que implicou toda a posterior obra de Fellini, mas em especial Roma,  Amarcord e Entrevista – o primeiro desses três tendo mesmo tido o título de difusão internacional de Roma de Fellini, caso em que o nome está não above the title, mas nele mesmo inscrito No caso de Godard, às figuras de “alter-ego” a partir de Sauve qui peut (la vie), Paul Godard / Jacques Dutronc nesse filme, o realizador Jerzy / Jerzy Radziwilowicz em Passion (figuras eminentemente metonímicas, diferentes das hipérboles metafóricas e demiúrgicas fellinianas), acresceu uma auto-exposição recorrente desde Scénario du film ‘Passion’, até ao explícito  JLG par JLG: Autoportrait de Décembre, este com uma precaução, “autoportrait, pas autobiographie”, que não deixa contudo de ser reveladora da consciência de um campo escorregadio.
Falar em “autobiografia cinematográfica” em sentido estrito coloca outros problemas, que não os da matéria do visível (e eventualmente reconhecível) como “retrato” e “auto-retrato”.
 
 
 
3-Se o conceito de “autobiografia” é de ordem literária, como se pode concretizar em termos cinematográfico, como poderiam ser passíveis de transposição, dois enunciados fundadores como “Ainsi, lecteur, je suis moi-même la matière de ce livre”, como Montaigne apresenta os Ensaios, ou “Vou empreender uma coisa sem exemplo. Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu”, como Rousseau abre as Confissões?
 
Enunciados como esses (e de que esses foram historicamente paradigmas) estabelecem um protocolo: “A autobiografia, em sentido estrito supõe um compromisso explícito do autor, um ‘pacto’ de veracidade proposto aos leitores”, esclarece Philippe Lejeune, o grande teórico actual do género, cuja obra fundamental se intitula justamente O Pacto Autobiográfico. E sendo esse o protocolo pelo qual alguém se narra, como poderá ele ser susceptível de concretização cinematográfica, como poderia um tal tipo de narrativa ser visível, isto é, ser matéria de “verificação” factual e objectual de uma vida também vista por outros?
Ocorre, dir-se-á, uma questão de linguagem e de referente. Ou, para citar ainda, Philippe Lejeune, analisando Cinema et autobiographie – problèmes de vocabulaire (“Revue Belge du Cinema”, nº 19, “L´Écriture du Je au cinema”) : “O problema principal parece-me ser o do valor de verdade. O cinema autobiográfico parece destinado à ficção. Não posso pedir ao cinema que mostre o que foi o meu passado, a minha infância ou, a minha juventude, não posso senão evocá-las ou reconstituí-las. Esse problema não existe na escrita, porque o significante (a linguagem) não tem qualquer relação com o referente”.
 
Em epígrafe de Roland Barthes por Roland Barthes escreveu o autor: “Tout ceci doit être considéré comme dit par un personnage de roman” - “escreveu” ele e até concretamente “inscreveu”, essa epígrafe sendo à mão e reproduzida por imagem, como que acrescentando um suplemento de “veracidade” ao protocolo, sendo que o mesmo todavia instaura um “Roland Barthes – personagem” não estritamente homólogo com o “Roland Barthes – autor” – como já Stendhal na Vie de Henry Brulard. Assim, mesmo em textos reconhecíveis como “autobiográficos” se entreabre a possibilidade do romanesco e da ficção.
 
Sucedeu ser uma observação de Lejeune em Le pacte autobiographique que foi detonadora de uma outra categoria. Pôs ele a hipótese: “O herói de um romance pode ter o mesmo nome do autor? Nada impede que isso ocorra e poderá ser uma contradição interna de efeitos interessantes, mas de que não há exemplos…”; não interessa agora tanto se tal inexistência de exemplos é improcedente, mas sim que foi na sequência da observação que Serge Doubrovsky, ensaísta e também romancista, escreveu Fils, em que “o herói” se chama…Serge Doubrovsky, a obra sendo apresentada pelo próprio, como “Ficção de acontecimentos e factos estritamente reais, se assim se quiser, autoficção”, é esse, digamos, o seu protocolo,
 
Para lá das circunstâncias concretas, e da coincidência de nomes nesse caso, “autoficção” é um termo que tem cabimento para considerar exemplos de auto-exposição cinematográfica (alguns quase no “estado bruto” de documento, mas ainda assim reelaborados para o filme – Fassbinder no seu episódio de A Alemanha no Outono, Nanni Moretti em Caro Diárioe Abril, outros por via de um “alter-ego”, num jogo tanto mais ambíguo quanto é o próprio autor que o interpreta, como os filmes de João de Deus/João César Monteiro), como obras que acumulam sinais de se sustentarem autobiograficamente na experiência dos autores – Autobiografias/Autoficções pois.
 
 

Autobiografias/Autoficções

 

 

 

A partir de hoje, na Culturgest, ciclo “Autobiografias/Autoficções”.
 
De diversos modos, um cinema enunciado na primeira pessoa vai-se tornando cada vez mais frequente, tal como o registo em material fílmico ou videográfico dos passos de uma vida, quantas vezes, e com quanto maior frequência, desde o próprio acto de nascimento.
 
 
 
É inegável já o vasto material de diários e auto-retratos filmados, objecto aliás da secção retrospectiva do doclisboa do ano passado. Falar em “autobiografia cinematográfica” em sentido estrito coloca contudo outros problemas. É, dir-se-á, uma questão de linguagem e de referente. Ou, para citar o grande teórico actual da autobiografia, Philippe Lejeune: “O problema principal parece-me ser o do valor de verdade. O cinema autobiográfico parece destinado à ficção. Não posso pedir ao cinema que mostre o que foi o meu passado, a minha infância ou a minha juventude não posso senão evocá-las ou reconstituí-las. Esse problema não existe na escrita, porque o significante (a linguagem) não tem qualquer relação com o referente”.
 

Todavia, também desde a nouvelle vague, desde Truffaut e o seu alter-ego Antoine Doinel, a experiência autobiográfica, ou as “autoficções”, para retomar o termo do escritor Serge Doubrovsky, foram recorrentes à singularidade de cineastas como Eustache, Garrel e mesmo Pialat.
 

Face ficcional da retrospectiva de “Diários filmados e Auto-Retratos”, este ciclo apresenta quatro realizadores que de modo persistente e recorrente, filme após filme, foram evocando e reconstruindo as memórias da sua vivência pessoal, a belga Chantal Akerman, os britânicos Bill Douglas e Terence Davies e a húngara Márta Mészáros.
 
 
QUINTA 8 Chantal Akerman
21h30 Portrait d’une Jeune fille à la fin des années soixante à Bruxelles, 1994
SEXTA 9 Trilogia de Bill Douglas
18h30 My Childhood, 1972; My Ain Folk, 1973
21h30 My way home, 1978
SÁBADO 10 Filmes de Terence Davies
15h00 A trilogia – Children, 1976 / Madonna and child, 1980 / Death and transfiguration, 1984
18h00 Distant Voices / Still Live, 1988
21h30 The Long Day Closes, 1992
DOMINGO 11 Os Diários de Márta Mészáros
15h00 Diário para os meus filhos, 1982
18h00 Diário para os meus amores, 1987
21h30 Diário para o meu pai e a minha mãe, 1990
 
 
 

 

Histórias do Cinema

“A Tradição está na Passagem do Fogo e não no Culto das Cinzas” de Gustav Deutsch
 
A “opus magnum” que são as Histoire(s) du Cinèma de Jean-Luc Godard, recém-editadas pela Midas, constitui-se como o mais cabal e fértil exemplo da importância de uma reflexão cinematográfica sobre a própria história do cinema. Mas há outros importantes exemplos: os trabalhos de Gustav Deutsch (que têm vindo a ser apresentada em Vila do Conde, no festival, mas também na Galeria Solar), de Al Jaritz, Hollis Frampton, Thom Andersen, Hartmut Bitomsky, etc. É um panorama dessa reflexão que agora nos é proposto, num ciclo programado por Ricardo Matos Cabo na Culturgest.
 
 
 
HISTÓRIAS DO CINEMA POR SI PRÓPRIO
 
Este programa é uma pequena introdução ao tema vasto das histórias do cinema através do cinema. Apresenta ensaios visuais, documentários e outras formas que reflectem através das imagens e dos sons uma visão crítica da História do Cinema para além da cronologia e da história dos autores ou épocas, recorrendo a excertos, à reutilização de imagens, à invenção e análise visual. O programa apresenta diversos exemplos e abordagens deste género maior, presente desde sempre na história do cinema: formas pedagógicas e críticas, meta-histórias do cinema, filmes--compilação, reconstituições e outras formas que se relacionam directamente com esta possibilidade do cinema de constituir um discurso sobre si próprio.
 
 Quarta 23 · 18h30
Modelos pedagógicos/críticos
Naissance du Cinéma de Roger Leenhardt, 1945, 45’
Eadweard Muybridge, Zoopraxographer
de Thom Andersen, 1974, 60’
Naissance du Cinéma foi uma encomenda de Henri Langlois a Roger Leenhardt e faz uso da colecção de dispositivos cinematográficos da Cinemateca Francesa para reconstituir alguns momentos da história primitiva do cinema. O filme de Thom Andersen é um ensaio sobre as implicações históricas, científicas e políticas da obra de Eadweard Muybridge.
Quarta 23 · 21h30
A tradição está na passagem do fogo e não no culto das cinzas
Tradition ist die Weitergabe des Feuers und Nicht die Anbetung der Asche
[A Tradição está na Passagem do Fogo e não no Culto das Cinzas] de Gustav Deutsch, 1999, som, 1’
The Film of Her

Uma sessão dedicada à cultura do arquivo, da preservação do suporte e do fragmento através de diferentes exemplos – um documentário sobre a descoberta da colecção de “paper prints” da Library of Congress nos EUA, um filme de Hollis Frampton composto por imagens retiradas dessa colecção, duas alegorias sobre o fogo, a cinza, a preservação e destruição do suporte nitrato; uma colecção de fragmentos preservados pelo Nederlands Filmmuseum e finalmente um ensaio autobiográfico de Morgan Fisher composto por imagens de fragmentos de película coleccionados pelo realizador.
de Bill Morrison, 1996, p/b, som, 13’
Public Domain
de Hollis Frampton, 1972, p/b, sem som, 18’
Transparencies
de Yervant Gianikian e Angela Ricci-Lucchi, 1998, 10’
Bits and Pieces
compilados no Nederlands Filmmuseum (selecção), 10’
Standard Gauge de Morgan Fisher, 1984, 35’
Quinta 24 · 18h30
Clássicos instantâneos
Intolerance (Abridged)
de Standish Lawder, 1960, 15’
Screening Room with Standish Lawder and Stanley Cavell de Robert Gardner, 1973-2005, 70’

Intolerance (Abridged) é o primeiro filme de uma série que Standish Lawder chamou de “clássicos instantâneos”. É uma redução e compressão da totalidade do filme de D.W. Griffith. O episódio de Screening Room documenta o encontro entre Standish Lawder e o filósofo norte-americano Stanley Cavell, aquando da publicação do seu primeiro e fundamental livro sobre cinema, The World Viewed.
Quinta 24 · 21h30
A reconstituição biográfica, o ensaio visual, e o making-of experimental
Le grand Méliès
de Georges Franju, 1951, 25’
Visual Essays: Origins of Film – Méliès Catalogue

Um filme menos conhecido de Georges Franju, recreação de momentos da vida de George Méliès, tendo como protagonistas a própria família do realizador. De seguida três estudos visuais de Al Razutis, investigações sobre a matéria pictural e fantasmática dos filmes de Méliès.
A segunda parte da sessão abre com outro dos ensaios de Al Razutis da mesma série tendo como eixo as imagens da chegada à estação filmadas pelo irmãos Lumiére. A fechar dois filmes raros sobre a rodagem de La Roue e La Fin du Monde de Abel Gance.
de Al Razutis, 1973, 8’
Visual Essays: Origins of Film – Sequels in Transfigured Time
de Al Razutis, 1976, 14’
Visual Essays: Origins of Film – Lumière’s Train (Arriving at the Station)
de Al Razutis, 1979, 9’
Autour de la Roue
de Blaise Cendrars, 1920-23, 15’
Autour de la Fin du Monde de Eugène Deslaw, 1930, 15’
Sexta 25 · 18h30
Diversidade primitiva
Opening the Nineteenth Century
de Ken Jacobs, 8’
A partir de filmes de viagem do catálogo Lumière, um filme que usa o Efeito Pulfrich a 3D. O filme é simétrico podendo ser mostrado em qualquer direcção. O feixe do projector mantém o ângulo quando encontra o écran, introduzindo volume e luz enquanto Paris, Cairo e Veneza de há um século atrás desfilam pelo écran.
Tom Tom the Piper’s Son
de Ken Jacobs, 1969, 115’
Análise do filme Tom Tom The Piper’s Son realizado por Billy Bitzer em 1905, um filme inspirado numa gravura de William Hogarth, “Southwark Fair”, originando uma transfiguração espectral das imagens de origem. Jacobs penetra na imagem, estudando cada plano em detalhe e criando um dos trabalhos mais importantes do cinema de vanguarda norte-americano.
Sexta 25 · 21h30
A saída da fábrica – variações
Motion Picture: La sortie de l’usine lumière à Lyon
de Peter Tscherkassky, 1984, 3’30’’
Arbeiter verlassen der Fabrik

Variações sobre um dos motivos primeiros da história do cinema – a saída da fábrica. O filme-compilação de Farocki reúne e comenta diversas imagens de filmes ao longo da história que mostram o movimento de saída dos trabalhadores. No final uma selecção dos filmes da dupla Mitchell e Kenyon, documentos sobre a Inglaterra no início do século.
de Harun Farocki, 1995, 36’
Factory Gate Films da colecção Mitchell e Kenyon
Sábado 26 · 16h00
As história(s) do cinema
Visual Essays: Origins of Film – Storming the Winter Palace
de Al Razutis, 1984, 16’
O último dos ensaios visuais de Al Razutis é uma reflexao sobre a montagem e a dialética nos filmes de Eisenstein a partir de imagens de “Outubro” e dos escritos de Benjamin Buchloh, entre outros.
Gloria!
de Hollis Frampton, 1979, 10’
“Em Gloria!, Frampton confronta formas do século XIX com formas contemporâneas, através da junção de um filme de cinema primitivo com a imagem vídeo de material textual. (...) Gloria! transforma-se numa meditação cómica, por vezes comovente, sobre a morte, a memória e sobre o poder da imagem, música e texto para ressuscitar o passado.”
Bruce Jenkins
Moments Choisis des Histoire(s) du Cinéma
de Jean-Luc Godard, 2000, 84’
“Aquilo que revela Godard nestes Moments Choisis é o valor introspectivo da sua reflexão em acto sobre a imagem. Não fazer da história do cinema um monumento cronológico, mas um sonho filosófico imemorial.” E. de Lastens
Sábado 26 · 18h30
A história elementar do cinema
Conferência de Klaus Wyborny com projecção de Elementare Filmgeschichte
A História Elementar do Cinema de Klaus Wyborny é um trabalho em progressão desde 1971 – uma sucessão de filmes de Hollywood filmados de um ecrã de televisão. Filmando apenas alguns fotogramas de cada plano, Wyborny comprime os originais a apenas uns minutos cinéticos. O resultado não só tem o efeito de transformar “Morocco” ou “Million Dollar Legs” em anticipações do seu próprio trabalho, oferecendo uma análise útil da consistência visual que existe e atravessa um dado filme. Os filmes, ordenados cronologicamente tornam explícito o declínio da narrativa comercial e a cada vez maior dependência na forma do campo/contra-campo. Klaus Wyborny estará presente para falar sobre este projecto.
Sábado 26 · 21h30
Antologia do cinema – Hartmut Bitomsky (I)
Das Kino und der Tod
* [O Cinema e a Morte] de Hartmut Bitomsky, 1988, 56’
Flächen, Kino, Bunker – Das Kino und die Schauplätze ** [Superfícies, Cinema, Bunkers] de Hartmut Bitomsky, 1991, 52’

No primeiro filme do projecto Antologia do Cinema de Hartmut Bitomsky, pergunta-se “Porque é que o cinema sente necessidade da morte, se não a pode mostrar?” – O monólogo do realizador cruza o discurso das imagens. O segundo é um filme sobre os lugares tal como são imaginados pelo cinema: espaços de lembrança, reais, semelhantes...cruzados por Hitchcock, Chaplin, Buñuel, Renoir e Depardon.
Domingo 27 · 18h30
Antologia do cinema – Hartmut Bitomsky (II)
Jean Rouch. Premier film: 1947-1991
de Dominique Dubosc, 1991, 27’
Jean Rouch improvisa um novo comentário em harmonia com as suas imagens, terminando assim finalmente, em 1991, o seu «primeiro filme», Au Pays des Mages Noirs.
Das Kino und der Wind und die Photographie: Sieben Kapitel über Dokumentarishe Film
** [O Cinema, o Vento e a Fotografia: Sete Capítulos sobre o Filme Documental] de Hartmut Bitomsky, 1991, 52’
Em “O cinema, o vento…”, o cineasta inquire livremente extratos de citações sobre as imagens documentais e a sua “verdade”. Cruzamos Flaherty, Ivens, Robert Frank, Peter Nestler, Jean Vigo…
Domingo 27 · 21h30
Morrer pelas imagens
La mer et les jours
de Alain Kaminker e René Vogel, 1958, 22’
Mourir pour des images de Réne Vautier, 1971, 45’

“Morrer pelas imagens” reconstitui através de entrevistas a rodagem do filme La Mer et Les Jours, realizado em 1958 por Alain Kaminker e REné Vogel (e com um texto de Chris Marker). Alain Kaminker desapereceu durante a rodagem do filme, um documentário sobre a vida dos habitantes da Ilha de Sein. O filme constitui-se como uma interrogação sobre os laços que unem quem filma aquem é filmado.