Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Werner Schroeter (1945-2010)

 

 

Werner Schroeter era um dos meus cineastas preferidos, exuberante, arrebatado pela paixão da ópera (chegou aliás a encenar, nomeadamente uma Tosca na Ópera de Paris), inconfundível.

 

A propósito dele podíamos perguntar: se Deus morreu, onde estão os objectos de culto? Naqueles que transcendem a transitoriedade, como as divas da ópera, deixando o rasto imperecível de corpos celestes, aqueles que sempre desejaremos e nos remetem para os princípios da existência.

 

Traduzidos numa mitologia profana, os objectos de culto são deuses e deusas que trazem a promessa dos corpos celestes, satélites levitando em torno de um núcleo originário, objectos de devoção mas também de uma pulsão erótica, signo da humana existência, que supõe entre um e outro o desejo. Objectos ritualizados nas cerimónias de uma sociedade laica, por exemplo na ópera e no cinema.

 

No princípio, e no princípio do cinema de Werner Schroeter, era a Voz. Estanho enunciado quando se fala de um cineasta. Não é o cinema fonte de tantas iconologias contemporâneas? Não tem como princípio a imagem, fundamento das aparições e adorações?

 

A unicidade do dogma tinha caducado nas sociedades europeias quanto nelas se reinventaram os fundamentos mitológicos, o canto de Orfeu antes do mais, e se formulou a ópera. As mesmas sociedades tinham sido laicizadas quando a imagem passou a ser passível de reprodução mecânica e depois o cinema surgiu. Qualquer compêndio nos dirá que as imagens vieram primeiro as vozes, os talkies depois, por acrescento, mais próximo de um reconhecimento de um real.

 

É privilégio dos grandes cineastas que a sua obra apareça como uma daquelas que tudo reinventaram, por sua livre escolha designando a genealogia que preferem. Werner Schoreter era um desses. O seu cinema retomava os cerimoniais e os princípios da representação do que ele escolheu como origem: a ópera. O mundo, o mundo desejado da arte, fez-se então porque o objecto do desejo era uma voz, e Maria Callas era o seu nome.

 

“Werner Schroeter foi durante mais de dez anos – muito tempo pois, demasiado tempo – o realizador mais importante, mais apaixonante e o mais decisivo de um cinema alternativo, de um cinema, que, em geral, se designa por underground, o que o reduz, o minimiza e acaba por abafá-lo. (…) De facto não há senão filmes num conjunto cinzento. E há também os que fazem filmes. E, se os homens e os seus filmes são diferentes uns dos outros, a necessidade sentida de fazer filmes varia também naturalmente. (…) Werner Schroeter, que um dia terá o seu lugar na história do cinema (em literatura, eu considerá-lo-ia entre Novalis, Lautréamont e Louis-Ferdinand Céline) foi pois um cineasta underground durante dez anos e não se quis possibilitar-lhe escapar a esse papel. (…) atitude tão fácil quanto estúpida, porque os filmes de Schroeter estão próximos de nós; é verdade que são belos, mas não exóticos, pelo contrário”. Era o ano de 1979 e nestes termos se referia a Schroeter o seu colega Rainer Werner Fassbinder.

 

Em meados dos anos 80, quando despontava o jovem cinema alemão, Werner Schroeter começava a fazer filmes em 8 mm. Objecto constante: Maria Callas (muitos anos depois, em 1996, o admirável Abfallprodukte der Liebe/Poussières d’amour, haveria de ser feito com as divas retiradas Martha Mödl, Anita Cerquetti e Rita Gorr).

 

"A Morte de Maria Malibran"

 

 

Em breve, numa díspare panóplia, outras referências se acrescentavam, por exemplo a cançonetista Catarina Valente, ou o arquétipo histórico das divas de ópera, Maria Malibran – A Morte de Maria Malibran de 1972, superlativa obra-prima. As vozes pré-existiam para elas se encontrando as imagens. Questão de juntar duas bandas, de som e de imagem, sem que entre elas se supusesse a identificação. O método era de montagem, de collage, e daí haveria de resultar, em 1969, e concluído no formato de 16 mm, um anúncio genial, Eika Katappa.

 

Da disparidade dos materiais, da dessincronização das bandas, extraía Schroeter um postulado: as imagens são o cerimonial de resposta ao chamamento da Voz. Questão também de origem, portanto. Questão de inevitável distância entre dois objectos, o que chama e o que responde, quais dois seres que impossivelmente se tentam realizar num único.

 

Impossível considerar o cinema de Schroeter sem esse apelo primordial, esse Urruf, que é simultaneamente o do útero materno (voltar ao corpo originário), da mitoligização do ser feminino (a Mulher é a “Diva”, a Callas antes do mais), do desejo da fusão, dessa androgenia que transcende as diferenças dos géneros sexuais e da qual se manifestam os sinais do desejo pelo “travestimento” dos semblantes e dos corpos – na paixão é-se um que quer ser outro. Assim foi o cinema de Werner Schroeter.

 

Em Portugal, com o produtor Paulo Branco, Schroeter rodou dois filmes, O Rei das Rosas e o derradeiro Nuit de chien. Eika Katappa, A Morte de Maria Malibran, Willow Springs (1973), O Reino de Nápoles (1978), Palermo oder Wolfsburg (1980), Ensaio Geral (1980 também, exuberante documentário sobre o Festival de Teatro de Nancy) e Poussières d’amour são indiscutíveis obras-primas.

 

Foi uma das maiores personalidades do cinema contemporâneo que morreu.

Rever Berlim, o Muro - II

 
 

 

 

 
Die Mauer
de Jürgen Bottcher
Cinemateca, amanhã, 11,  às 22h
 
O ciclo berlinense da Cinemateca chega à sua raison d’être, o motivo do 20º aniversário da queda do Muro, com este espantoso documentário do cineasta este-alemão Jürgen Bottcher, raríssimo exemplo de História em directo, que apresenta precisamente a queda do Muro. Se me é permitida a observação, deveria ter sido por aqui (e embora falte ainda também exibir outro muito importante filme “em directo”, Novembertage de Marcel Ophuls, que passa a 29) que o ciclo se devia ter iniciado, indo depois ao flashback desde os anos 20.
 
No começo do filme, vemos vários blocos já arrancados do Muro, como num cemitério. Die Mauer/O Muro é o filme desse colapso e morte. Bottcher. filmou os primeiros momentos da derrocada, a 9 de Novembro de 1989, e depois a desordenada destruição do Muro, nesses dias em que cada um de nós por lá passávamos queríamos ficar com um bocado de Muro para recordar. Há turistas japoneses que passam, há crianças turcas que vendem esses bocados de Muro.
 
 
Prescindindo de qualquer comentário, voz off ou depoimentos falados, Bottcher, nascido em 1931 e que também é pintor assinando “Strawalde”, deixa a matéria das imagens ser suficientemente eloquente. A maior parte do filme situa-se na zona central da Porta de Brandenburgo e de Potsdamer Platz, nesta a câmara descendo aos subterrâneos, à desactivada estação de metro, qual visão da ante-câmara do inferno.
 
Mas Bottcher utiliza também um estratagema para relatar a História: por três vezes projecta no próprio Muro imagens de arquivo, 1) do centro de Berlim, desde a época de Guillherme II, passando pelo nazismo, até à tomada da cidade pelo Exército Vermelho, 2) da construção do Muro e das tentativas de fuga (um dos momentos mais intensos do filme) e, 3) da RDA na época do Muro.
 
Literalmente “filme da queda”, Die Mauer registou e traz-nos de volta a cada visão as memórias dos dias de Liberdade reencontrada ou descoberta. Foi também outro epitáfio, o último filme importante produzido na RDA.  Por esse modo como captou a História em directo e pela inteligência das suas estratégias narrativas, Die Mauer é seguramente uma das grandes obras do documentarismo cinematográfico.
 
 
 

Rever Berlim, o Muro - I

 

 

Der geteilte Himmel
de Konrad Wolf
segundo o romance de Christa Wolf
Cinemateca, hoje às 22h
 
No ciclo “Os Mil Rostos de Berlim” a decorrer na Cinemateca desde o mês passado, a propósito do 20º aniversário da queda do Muro, entra-se hoje propriamente nos “anos do muro” com a adaptação cinematográfica do romance que celebrizou Christa Wolf, Der geteilte Himmel/O Céu Divivido. Se não se trata propriamente do Muro, a metáfora do “céu dividido” é suficientemente esclarecedora da confrontação das duas Alemanhas, RFA e RDA.
 
Konrad Wolf (1925-1982) era filho de um célebre anti-fascista, Friedrich Wolf, e irmão do famoso super-espião Markus Wolf. A família partiu para a União Soviética logo após a tomada de poder pelos nazis em 1933, e Konrad viria a alistar-se no Exército Vermelho durante a guerra, vindo a fazer parte das forças que tomaram Berlim em 1945. Também desde cedo tomou contacto com o cinema soviético, e aliás depois da guerra completaria os estudos na célebre escola de cinema, VGIK. Esta “impecável folha de serviços” valeu-lhe desde cedo uma posição de destaque na DEFA, os estúdios da Alemanha Oriental. De facto, mais do que isso, Konrad Wolf não foi apenas o “cineasta oficial” da RDA, foi mesmo a figura do “artista oficial”, presidente da Academia das Artes da República Democrática Alemã desde 1965 até à sua morte.
 
Com este curriculum não deixa de ser algo surpreendente que se tenha metido à tarefa de adaptar Der geteilte Himmel, livro de “justificação” da RDA é certo, mas obra de dilaceração também (Christa Wolf participou na adaptação).
 
 
 
O filme é habilíssimo, fundando-se nessa clássica figura do esquema marxista que é a tomada de consciência, todavia atrás de uma releitura moderna do melodrama: Rita e Manfred amam-se, mas enquanto ela se vai progressivamente mais integrando nos mecanismos do “socialismo”, ele decide partir para Oeste. O uso frequente de contra-picados com o céu em fundo, sobretudo no início do filme, e também de grandes planos num formato largo, de Rita em particular, elucidam a divisão e o confinamento.
 
Tem sido apontada uma possível influência de Hiroshima Meu Amor no filme de Konrad Wolf. Tenha ou não havido influência directa há sem dúvida um paralelismo na abordagem de uma personagem feminina face à História, daí decorrendo um amor impossível de prossecução. Todavia, o que mais surpreende retrospectivamente é que este filme de um “cineasta oficial” tinha ainda assim uma liberdade de tom que estava cinematograficamente dans l’air du temps. Deste modo, e surpreendentemente, este filme de 1964, obra de “justificação” e de um “cineasta oficial”, surge num olhar retrospectivo como um imediato percursor da fugaz “nova vaga” da DEFA (chamemos-lhe isto por comodidade de expressão), um conjunto de filme de 1965/6 que logo foram proibidos e que apenas viríamos a conhecer em 1990, depois da queda do Muro, o mais célebre dos quais é Spur der Steine de Frank Beyer, outro sendo um filme que falta neste ciclo da Cinemateca, Berlin um die Ecke de Gerhard Klein (foi antes incluído outro filme seu, anterior, Eine Berliner Romanze).
 
A RDA, estado efémero, defrontou-se sempre com um problema de “identidade” e “fundamentação”: seria a parte “progressista” da Alemanha e a “barreira contra o capitalismo” (o que eram os termos de justificação do Muro), de facto um socialismo real, horrorosa mescla de totalitarismo soviético e autoritarismo prussiano. Com a queda do Muro o seu colapso era inevitável, e foram infrutíferas as tentativas de alguns, entre as quais precisamente Christa Wolf, de lhe dar continuidade então como “socialismo democrático” – “Wir sind Eine Volk”, “Somos Um Povo”, clamou-se antes nas manifestações de rua, Um povo a leste e oeste.
 
Enquanto habilíssima obra de “justificação” do “socialismo” a construir, Der geteilte Himmel é um objecto singular e de encruzilhada, a descobrir.