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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Clint Eastwood - I - "Cresci vendo filmes"

 

 

 

 
 
Uma das maiores estrelas do cinema americano, com uma proeminente posição no Box Office, é um homem pouco dado a vedetismo, muitas vezes mantendo-se escondido da ribalta pública
 
Pouco dado a discursos, responde às questões com o laconismo da maioria das suas personagens. As vezes hesita, repete que não sabe, evita o que possa ser considerado como questão mais pessoal.
 
Mas John Wilson, papel que interpreta em White Hunter, Black Heart, não é uma personagem qualquer: é um realizador de cinema, directamente inspirado em John Huston, e há questões que não se podem deixar de colocar.
 
P – Porquê esta obsessão por personagens obcecadas?
 
Clint Eastwood – Não sei, não tenho a mínima ideia. Penso que as acho interessantes. Concordo com elas nalgumas coisas, noutras não.
 
P.- Por exemplo?
 
R. - No caso de White Hunter, Black Heart, concordo em muito com a filosofia do realizador de cinema, acho que o modo como ele se coloca ao lado dos que são tratados "abaixo de cão" é admirável, mas também que ele é muito cruel com as pessoas que o rodeiam. Mas é a maneira de ser dele, é o que o torna uma personagem interessante. O que o determina? A sua inconstância, o seu brilhantismo, a sua força? Não sei. Num filme tem que se pôr tudo isso, tanto quanto possível, e dá-las a ver ao público- eu acho isto, e você? No último plano, o realizador começa o seu filme, grita "action"; o que lhe vai acontecer, para onde vai? Vai transformar-se por causa do incidente trágico que provocou? Não sei, cada um interpretará como quiser.
 
P. – Mas para si foi essencial que ele fosse um realizador? Ter-se-ia interessado por um  homem que constantemente se desafia no seu trabalho, movido pela obsessão de matar um elefante, se fosse outra coisa que não um realizador?
 
R. - Se a história fosse outra coisa qualquer, e igualmente interessante, podia não ser essencial, mas nesta é.
 
P. - A certa altura, o argumentista no filme diz que as pessoas não vão ao cinema para ouvirem uma conferência. Não acha que, sendo você um actor/realizador, o discurso de John Wilson sobre o cinema pode ser confundido com uma declaração sua?
 
R.- Não, é apenas a personagem. É apenas a personagem. Ele fala muito da sua relação com as histórias, da simplicidade na arte, mas é o modo de ser dele.
 
P. - E não se confunde com o seu?
 
R. - Bem. Deve haver qualquer coisa em comum que me atraíu.
 
P. - Por exemplo?
 
R. - Concordo com o que ele diz sobre a importância da simplicidade na arte.
 
P. - Precisamente, ele fala muito. Estamos acostumados a vê-lo a si interpretar personagens muito lacónicas. Nunca como esta.
 
R. Ele explana muito, é uma parte muito importante da sua personalidade, como também era para John Huston.
 
P. - Voltemos então a Huston / Wilson. Para si, ele é um clássico realizador de Hollywood?
 
R. - Huston era uma figura internacional; viveu na Irlanda e no México, noutros sítios. Segundo as normas de Hollywood, ele era um bocado rebelde; acho que também sou e esse aspecto é comum. Hoje Hollywood é diferente, toda a produção está internacionalizada, de qualquer modo, não participo muito na vida de Hollywood e talvez também haja aí um paralelo. Estou de acordo com o que Wilson diz no filme quanto à necessidade de não estar sujeito ao contrato de uma companhia.
 
 
P.- Mas Huston é um realizador particularmente importante para si?
 
R. – Bem, cresci vendo filmes de cineastas como Howard Hawks, John Ford, John Huston ou Preston Sturges.
 
P. - Sente-se herdeiro deles?
 
R. - Espero que sim.
 
P. - Qual o seu filme de Huston preferido?
 
R. – O Tesouro da Serra Madre.
 
P. - Nunca encontrou Huston e para preparar este filme viu documentários com ele. Tem pena de não o ter encontrado?
 
R. -Tenho pena, mas era capaz de não ter sido bom, era capaz de me ter disperso em pormenores. Assim, pude ver o filme de maneira objectiva. O que interessa é a ideia que se faz da personagem. E só isso que conta, torna-se parre de nós.
 
P. - Acha que se, como actor, tivesse feito um filme com Huston, se sentiria intimidado?
 
R. - Bem, isso acontece, às vezes acontece mesmo em filmes meus.  Às vezes há actores novos de quem se sente que cresceram a ver os filmes daquele realizador e se sentem intimidados. Isso também me aconteceu quando fiz Breezy, o primeiro filme que realizei em que não entrava como actor. William Holden era o protagonista, um actor que eu tinha visto no cinema desde que era criança, e fiquei impresstonado. Tinha visto tantos filmes com ele que quando ia começar a rodar pensei de repente: não pode ser ele, será mesmo que o vou dirigir?
 
P. -Dirige-se a si próprio no papel de realizador que todo o tempo parece uma personagem dele próprio. Não foi complicado?
 
R - Foi, a personagem é muito complicada, há tantos aspectos nele que é preciso compreender.
 
P.- Portanto, correu o risco.
 
R. - Há que correr os riscos. Se se começa a pensar neles, não fazemos nada. Wilson diz uma coisa com que concordo: não se pode fazer um filme a pensar como vai reagir o público na sala em relação a isto ou aquilo. Não há que ter medo, há apenas que fazer o primeiro plano, contar a história e esperar que alguém goste dela.

 

 

 

 

PÚBLICO, 13-05-90

 

 

White Hunter, Black Heart é de novo exibido na Cinemateca Portuguesa, na próxima quarta-feira, às 19h30.

 

Van Sant aclamado

 

 

 

 

Harvey Milk, o primeiro homossexual assumido eleito para um cargo político nos Estados Unidos foi assassinado fez agora 30 anos, juntamente com o próprio Mayor de San Francisco, George Moscone, por um seu colega homofóbico do Board of Supervisors da cidade, Dan White. Se já em vida Milk era um ícone, mais ainda o foi depois da morte: Rob Eptsein (também co-autor de The Celluloid Closet) e Richard Schiechen dedicaram-lhe um documentário em 1984, The Times of Harvey Milk, que ganhou o Óscar, e Stewart Wallace compôs uma ópera, Harvey Milk.
 
Mas durante anos e anos falou-se de um biopic e foram sucessivos os realizadores que se declararam interessados em “The Mayor of Castro Street”, como o próprio Milk se declarava, de Oliver Stone a Bryan Singer. Enfim, o filme existe, foi dirigido por Gus van Sant, e estreou ontem nos Estados Unidos, com aplausos quase gerais, aclamações mesmo: “A marvel” clama O. A. Scott no “New York Times, “vibrant alive” escreve Dana Stevens na “Slate”.
 
Como Elephant em relação em relação ao massacre de Columbine e Last Days no respeitante ao suicídio de Kurt Cobain, Milk é, como assinala O. A. Scott, “uma crónica de uma morte anunciada”. E o filme é narrado por Milk de além-túmulo, abrindo com material documental, incluindo o anúncio do duplo assassinato pela então membro do Conselho Municipal de San Francisco e ora senadora pela Califórnia, Diane Feinstein. Mas ao contrário desses outros filmes, como aliás também de Gerry e de Paranoid Park, a tensão letal que vem caracterizando as obras de Van Sant num modo narrativo experimental, confronta-se neste caso, ou limita-se deliberadamente, pelo carácter icónico do objecto abordado: havia que “narrar Milk”, como aliás está no título. Daí que, com ironia subtil, Hoberman também diga do trabalho de um gay, Van Sant, sobre outro gay, Milk, que a sua postura é “straight” – em termos narrativos, entenda-se, mais directo, e menos elíptico.
 
Não por acaso o argumentista, Dustin Lance Black, é ele próprio um documentarista, e o filme concentra-se com agudeza na personagem titular, com Milk, interpretado por Sean Penn, presente em quase todas as cenas.
 
Harvey Milk mantinha a sua sexualidade no “closet” em Nova Iorque. Mudou-se para San Francisco e abriu uma loja de fotografia na Castro Street (by the way, o cinema dessa rua, o Castro Theatre, é um dos mais espantoso que conheço, ainda uma dessas grandes catedrais cinematográficas dos anos 20/30, com órgão e tudo). Quando lhe ameaçaram a loja, Milk, em vez de uma resposta individual, tornou-se um activista, em breve um líder de uma comunidade – e Castro Street um centro “gay”.
 
A sua notoriedade cimentou-se na luta contra a Proposition 6, lançada pela ultra-conservadora Anita Bryant, visando impedir professores “gays” de exercerem. A triste actualidade suplementar do filme, e que marcará muito a sua recepção, é que Milk chega no momento em que o histórico voto de 4 de Novembro foi manchada pela adopção na mesma Califórnia da Proposition 8, anulando a deliberação do supremo tribunal estadual de permitir os casamentos homossexuais. Ora, de acordo com as críticas, Milk é afinal também inteiramente dedicado ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, no caso independentemente da orientação sexual, e igualdade também na afirmação política dos direitos não obstante essa orientação: “A homossexual with power, that’s scary” ironiza Milk, que obstinadamente se candidatou, duas vezes foi derrotado, à terceira sendo enfim conseguindo..
 
Apesar da oposição do Presidente eleito aos casamentos de homossexuais – mas no seu discurso de vitória, ao falar de todos não deixou de mencionar “gay or straight” –Jim Hoberman declara Milk o primeiro “Obama-iste movie”.
 
Dá para perceber que com a estreia de Milk começou a corrida aos Óscares, no que estes podem ter de minimamente interessante ou sintomático: o modo como a indústria cinematográfica americana se vê a ela própria no contexto mais geral da América.
 
 
PS- Entretanto no IndieWIRE, Rob Epstein diz que o filme de Van Sant – a ficcionalização do que ele abordou como documentário - é “terrific”, e fala da colocação online de The Times of Harvey Milk em (VOD- video on demand) na Amazon.com.


 

Sidney Pollack - I

 

Não foi por certo um “grande cineasta” e era mesmo fácil, demasiado fácil, considerá-lo representante de um academismo com qualquer coisa de serôdio, “cineasta de prestígio” que também foi para espectadores não motivados por atenção crítica. Mas Sidney Pollack (1934-2008) era o caso raro de um realizador, de um “fazedor de filmes”, ciente dos seus limites e dedicado à matéria humana das emoções e dos sentimentos, e desde logo aos actores, e em específico aqueles actores icónicos que designamos por “stars” – começou com Sidney Poitier, e ao segundo filme, This Property Is Condemned/A Flor à Beira do Pântano, encontrava Robert Redford que, numa invulgar associação, protagonizaria sete filmes seus. E uma invulgar associação que de algum modo leva mesmo à consideração específica de Pollack como “cineasta americano”.
 
Este ex-actor, que em anos mais recentes o voltara a ser esporadicamente (para Woody Allen em Maridos e Mulheres, para Kubrick em Eyes Wide Shut) dirigiu também Burt Lancaster, Robert Mitchum, Nathalie Wood, Jane Fonda, Barbra Streisand, Sally Field, Dustin Hoffman, Meryl Streep, Al Pacino, Harrison Ford, Tom Cruise ou Nicole Kidman – foi aliás Lancaster que lhe sugeriu que passasse de actor a realizador.
 
Com uma década de atraso, seguiu o caminho dos que chegaram ao cinema vindos da televisão, e os meados dos anos 60, quando se estreou na realização, foram dos tempos mais desérticos em Hollywood. O seu caminho foi aquele, em grande medida impossível, de prosseguir o classicismo e em particular as “ficções liberais”. Quando já havia, em meados dos anos 70, os primeiros sinais da geração dos movie brats, que iria alternar as coordenadas do sistema, Pollack foi, juntamente com Alan J. Pakula, um expoente dessas “ficções liberais” que os tempos, as heranças do Vietname e do Watergate, tornaram em ficções de “paranóia” – e neste sentido, até para além do seu valor intrínseco, Yakusa e Os Três Dias do Condor são por certo dois dos mais filmes mais representativos dos seventies.
 
Era eminentemente um cineasta urbano, que no entanto fez fora desse meio os seus melhores filmes, Jeremiah Johnson/As Brancas Montanhas da Morte e Out of Africa – este um projecto de risco que, coberto de Óscares, acabou por ser o mais bem sucedido da sua carreira, nos termos de um sistema em que se colocava –, O Cowboy Eléctrico fazendo de algum modo a passagem entre uns e outros filmes.
 
Sidney Pollack tinha a perfeita noção de que não era um estilista – entenda-se, um autor de um estilo cinematográficop próprio – e que se situava num middle ground ou mainstream revoluto. Desse ponto de vista, o insucesso de Havana (1990), a sua última colaboração com Robert Redford, marcou também o final da sua mais característica produção – e agora, ao reler após 17 anos a conversa que então tivemos, estava ele amargurado pelo insucesso do filme, o que mais surpreende é a sua lucidez perante o capítulo final que Havana necessariamente era, e foi. 
 
Com os seus últimos trabalhos, deixou ainda essa herança das “ficções liberais”, como actor face a George Clooney em Michael Clayton de Tony Gilroy, que produziu. E foi de algum modo ainda um “ícone”, ou melhor, um fazedor de objectos icónicos, que filmou no seu último trabalho como realizador, o seu único documentário, Esboços de Frank Gehry (editado em dvd em Portugal pela Midas).
 
E eu, que nunca fui grande apreciador do seu cinema, com excepção de Os Três Dias do Condor e sobretudo de Jeremiah Johnson, devo acrescentar que Sidney Pollack me merecia imenso respeito, um realizador afável e franco como poucos de notoriedade.
 
Sempre aliás guardei a memória de que a conversa  ocorrida nesses inícios de 1991 – era a altura da Guerra do Golfo, o que também convém notar – fora diferente de todas as outras que tive ao longo de anos: Pollack não fazia parte do meu “panteão” pessoal, e nisso a entrevista foi de facto diferente, mas intrigava-me e interessava-me quanto a longa relação Pollack/Redford era um facto importante do cinema americano. E, como disso, ele foi um conversador franco, sendo que por causa de um filme que persistiu obstinadamente em defender, os factos da conversa não era até propriamente motivo de cumplicidades imediatas.

Sidney Pollack - II

 

 

 

Há actores tentados pela realização e Robert Redford foi um dos que fizeram a passagem. Há reaìizadores que antes pensaram ser actores e um deles é Sidney Pollack. O que torna singular a obra deste realizador limitado, ou fazedor de filmes tradicionais como ele próprio diz, é antes do mais a sua continuada colaboração com Robert Redford. Uma colaboração longa mas mais do que uma colaboração, desde logo pelo estatuto que Redford teve como uma das imagens da América e pelo modo como essa imagem e as suas mutações são um eixo condutor nos filmes de Pollack.
 
 
Depois de África Minha Pollack dedicou-se sobretudo à produção. Quanto a Redford, é cada vez menos actor, dedicando-se à realização e ao Sundance Institut onde autores podem preparar os seus filmes longe de Hollywood. Voltaram a encontrar-se em Havana. Jack Weil , a personagem de Redford, é um jogador de póquer americano que chega à capital cubana pouco antes do triunfo dos guerrilheiros. Tem uns 54 anos, mais ou menos a idade de Redford, e a de Pollack, e a sua dedicação ao jogo será perturbada pelo conhecimento de uma mulher sueca (Lena Olin) casada com um revolucionário e envolvida em actividades clandestinas.
 
Poderia ser um filme dos anos 50, e se não o é, num curioso circuito de tempo, é precisamente porque essa imagem de Redford, que vem dos anos 60, que poderia ter algo de kennediano e em que politicamente a América se terá revisto pela última vez quando Jimmy Carter ainda sorria, essa imagem está envelhecida.
 
 
Como reage se lhe disser que Havana é um filme antiquado?
 
SIDNEY POLLACK- Depende. Há pessoas que o dizem no melhor sentido, outras em sentido negativo. Depende. Há pessoas que preferem algo mais contemporâneo, técnicas mais inovadoras, etc. As raízes da minha técnica cinematográfica são muito tradicionais, muito pouco imaginativas em termos de estilo. Não sou um estilista do cinema, porque me preocupo sobretudo com a história e as personagens. Tenho a certeza de que os meus filmes foram fortemente influenciados pelos que vi quando era um jovem estudante; foi no final dos anos 40 e nos anos 50, e eram filmes clássicos americanos. Por isso depende – se se gosta dos meus filmes, diz-se que são tradicionais; se não se gosta, chama-se-lhes antiquados.
                                                      
O passado está também presente por esse elemento de nostalgia que é muito importante nos seus filmes, como em O Nosso Amor de Ontem [The Way We Were] ou Havana.
 
Sim, sim. Eu até acho que as personagens que Redford tem vindo a interpretar têm muito em comum, são muito a mesma personagem em todos os filmes, só que vai ficando cada vez mais velha. Havana é uma espécie de fim da estrada.
 
Há quanto tempo se conhecem?
 
Há uns 30 anos. Conhecemo-nos em 1960. Éramos ambos actores.
 
E ele tornou-se o actor que V. não foi, é isso?
 
Sim.
 
 
Será ele então o seu alter-ego nos filmes?
 
Bom, eu não penso conscientemente nele como um alter-ego, mas ele tornou-se um porta-voz regular das minhas preocupações. Desempenha o papel do americano ambivalente melhor que ninguém, ou seja, o tipo com um aspecto exterior suave e um interior mais perturbado e sombrio. Nesse sentido, ele é uma excelente metáfora para a América.
 
Se com Havana não tentou fazer um Casablanca, e se não tentou fazer de Redford o seu Bogart, perguntar-lhe mesmo assim se há algum actor clássico americano de que se tivesse recordado.
 
Eu estava a tentar captar a forma de estar dos anos 50, que foram um momento de viragem, e não apenas para a América. Nos anos 50, havia uma espécie de inocência, de ingenuidade, algo de displicente, que mudou na América, para sempre, a partir dos anos 60. E acho que também no resto do mundo.
 
O filme é inteiramente sustentado em Redford. Para tomar os maiores modelos clássicos, digamos que ele poderia combinar a virilidade de um Clark Gable com o olhar inocente de um Henry Fonda. É uma característica de Redford ou foi V. que tentou combinar esses dois tipos de heróis clássicos americanos?
 
Sim. Eu queria que ele fosse um herói clássico. Jack Weil não passou nenhum tempo na vida a pensar noutra coisa que não fosse procurar o prazer. É um herói relutante. Há qualquer coisa de clássico nos heróis relutantes americanos, no homem que é empurrado para o acto heróico sem ter nenhuma decência básica. O importante para mim foi não o levar a cometer um acto político, o que seria demasiado fácil. Acaba por ser muito político, porque é ele que salva a personagem politicamente mais importante. Também é ele que traz os barcos para terra. Ironicamente, ele comete dois dos actos políticos mais importantes do filme, mas nenhum deles por razões políticas – e isso é muito americano. Não é por ele estar preocupado com a política, mas aparece e age – o que faz pensar num herói à moda antiga, que ele de facto é.
 
Quando insiste em que Weil/Redford está a terminar algo, embora não o saiba, acha que ele poderia ser Jeremiah Johnson ou o homem de África Minha, mas cansado da solidão?
 
Absolutamente. Quando estava a fazer África Minha disse a Redford que a sua personagem podia ser uma combinação do espírito de Jeremiah Johnson com o homem descomprometido de O Nosso Amor de Ontem. Era por isso que ele estava em África: afastava-se da sociedade tanto quanto possível para evitar ter de ser responsável por outras pessoas; encontrou então aquela mulher, a personagem de Meryl Streep, que insistia que, para terem uma relação, ele teria de desistir de uma parte de si próprio, o que ele recusava. Agora há este Jack Weil, menos culto do que o homem de África, mas que é o mesmo, só que velho, Tal como eu, tal como nós ambos.
 
Redford já era este tipo no primeiro filme que fizemos junto, A Flor à Beira do Pântano; era o homem sem passado, que no fim fica sozinho. E continuámos a seguir esse tipo em As Brancas Montanhas da Morte e os Três Dias do Condor, em O Nosso Amor de Ontem e O Cowboy Eléctrico, e só em África Minha me apercebi de que era sempre o meu tipo. Quer dizer, andámos 25 anos a seguir esse tipo, sem o sabermos. Mas agora há algo que terminou para ele – não há Barbra Streisand, Jane Fonda ou Meryl Streep atrás dele, agora é ele que segue uma mulher.
 
 
 FEVEREIRO; 1991

 

Entretanto, "in USA"

“Juventude em Marcha”
 
 
Já tinha aqui referido como os sufrágios críticos nos Estados Unidos se dividem entre No Country For Old Men  dos Coen e There Will Be Blood de Paul Thomas Anderson, bem como que, depois se ter distinguido na categoria de “melhor filme independente/experimental” pelos críticos de Los Angeles, Juventude em Marcha de Pedro Costa integrava também a lista da crítica do “New York Times” Manohla Dargis.
 
Entretanto, na “poll” do indieWIRE, a mais ampla, com 106 críticos votantes, Juventude em Marcha/ Colossal Youth também surge entre os “10 best”, 8ª posição mais exactamente, e votado ainda nas categorias de melhor realizador, actor, actriz secundária, fotografia e argumento.
 
Sobre essa lista, três notas para notar que, 1) o esplêndido Zodiac de David Fincher se intromete entre There Will Be Blood, nº1, e No Country For Old Men, nº3; 2) a lista confirma o caso singular que foi a redescoberta, 30 anos depois, do magnífico Killer of Sheep de Charles Burnett, verdadeiro ponto de partida do cinema afro-americano como o conhecemos (é difícil imaginar um Spike Lee sem o caminho aberto pelos filmes de Burnett, Killer of Sheep e My Brother’s Wedding), que regressou às salas e saíu da invisibilidade em que estava depois de restaurado no Film and Television Archive da UCLA; 3) assinalar ainda a presença, como o mais cotado dos filmes estrangeiros, de Syndromes and A Century de Apichatong Weerasethakul, um dos mais belos filmes que vi em 2007, e que passou no IndieLisboa.
 
 
 
 
Já agora, e a propósito dessa terceira nota,  digo eu que nessa desporto das listas dos “melhores do ano” me faz confusão como em Portugal, ao contrário do que fazem os norte-americanos (pois, os norte-americanos...), se reduz o leque de opções às estreias comerciais; e então mais digo, e tão só isto, que as minhas escolhas pessoais, escolhas, não listas, incidiram em Cartas de Iwo Jima de Clint Eastwood, Natureza Morta de Jia Zhang-Khe e também Não Quero Dormir Sózinho de Tsai Ming-Liang, que passou no Indie e foi directamente para dvd.
 
A época das escolhas dos críticos note-americanos encerrou entretanto, como sempre, com a mais prestigiada de todas, a da National Society of Film Critics, anunciada no sábado: There Will Be Blood, melhor filme, realizador e actor, Daniel Daniel Lewis, Julie Christie, melhor actriz em Away From Her, Cate Blanchett, melhor actriz secundária como um dos vários Bob Dylan de I’m Not There, Casey Afleck, actor secundário em O Assassínio de Jesse James, e 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, melhor filme em língua estrangeira.
 
A propósito, há um divertido (é um dos lados da questão) mas sintomático caso na distribuição portuguesa: é que a regressada Julie Christie, um dos mais inesquecíveis ícones dos “sixties” (oh, Darling!), começa a perfilar-se, no somatório de prémios, e atendendo a várias ponderações, como uma das favoritas para os óscares – e pouco são os “territórios” tão obcecados pelas distinções de Hollywood como Portugal. Pois sucede que Away from Her/ Longe Dela de Sarah Polley também foi directamente para dvd.
 
Benéfica consequência da greve dos argumentistas: os tão frívolos e desproporcionados Globos de Ouro foram entretanto mesmo cancelados, depois de a Guilda dos Actores se ter solidarizado com a dos Argumentistas.
 
 
 
 
 
 

Apoteose para P. T. Anderson

“There Will Be Blood”
 
 
A estreia hoje nos Estados Unidos de There Will Be Blood de Paul Thomas Anderson, numa “limited release” só em Los Angeles e Nova Iorque para o filme ser qualificável para os óscares, suscitou um delírio crítico como há muito não ocorria.
 
Inspirado em Oil de Upton Sinclair (e só o facto de alguém se lembrar de Upton Sinclair nos dias que correm já é surpreendente), de facto só na sua primeira parte, ou três capítulos iniciais, o filme relata a saga de um “capitalista da fronteira” (Daniel Day Lewis), prospector de ouro, cuja sorte muda quando do “boom” do petróleo no Sul da Califórnia na última década do século XIX.
 
Se apesar das diferenças de época não seria difícil advinhar paralelismos com O Gigante de Georges Stevens, tendo de resto grande parte da rodagem ocorrido na mesma zona de Marfa, no Texas, a lista de referências colhida nas críticas do “New York Times”, do “Los Angeles Times”, da “Slate” e do “Village Voice” é exponencial: Greed de Stroheim, Citizen Kane de Welles, O Tesouro da Sierra Madre de Huston, Chinatown de Polanski e até a abertura de 2001 de Kubrick!
 
Mesmo com delírios, de qualquer modo sinais das fortes paixões que o filme suscita, o que importa ressaltar é, além da ansiedade acrescida pelo filme, a autêntica consagração do autor de Magnólia, esse que é o mais singular dos actuais “wonderboys” do cinema americano (Quentin Tarantino, David Fincher, Gus von Sant ou Todd Haynes).
 
“California Burning” é o sugestivo título da crítica de Jim Hoberman no “Village Voice” (sim, depois de Magnólia, há novamente uma catástrofe de ecos bíblicos). E falando ainda do acolhimento crítico, os californianos foram os mais sensíveis, em concreto os críticos de Los Angeles que o votaram “melhor filme do ano”.
 
Houve mesmo uma espécie de divisória “West Coast”/”East Coast”, já que os críticos de Nova Iorque, Washington e Boston optaram por No Country For Old Men dos Coen, adaptado de Cormac McCarthy, os de Nova Iorque tendo ainda assim dividido láureas entre dois: melhor filme, realização, argumento e actor secundário (Javier Bardem) para No Country, melhor actor (Daniel Day Lewis) e fotografia (Robert Elswit) para Blood.
 
 
 
 
“No Country For Old Men”
 
 
A notar, pese ainda a divisão de favores críticos entre uma costa e outra, é a coincidência dos dois filmes terem contudo sido rodados na mesma zona do Texas (e a mansão usada para os interiores de There Will Be Blood já tinho sido cenário dos Coen em The Big Lebowski!), o que é importante enquanto indicador de um dado fundamental: um e outro retomam o grande espaço e a mitologia americana.
 
Era tempo de haver algo assim (de se criarem expectativas para algo assim), quando o grande imaginário americano parecia confinado ao mais solitário dos solitários, Terence Mallick (também esse citado a propósito de There Will Be Blood), e quando a indústria cinematográfica está dependente das pipocas, ou das “franchisings”, com os  nº3 ao cubo, O Homem Aranha 3, Shrek the Third e Os Piratas das Caraíbas 3 que, juntamente com Transformers, foram os raros “blockbusters” do ano.
 
Entretanto, e falando em acolhimento críticos, houve de algum modo um eixo Los Angeles-Nova Iorque para Juventude Em Marcha de Pedro Costa, exibido no circuito paralelo. Depois dos críticos de L.A. o terem votado “melhor filme independente/experimental”, nos “ten bests” dos críticos do “New York Times” (em que há a prática bem mais límpida e salutar de cada um indicar as suas escolhas, em vez de uma votação corporativa), Manohla Darlis, depois de indicar There Will Be Blood e Zodiac “ex-equo” como os seus favoritos, continua a bater-se pelo filme de Costa, o único não-estreado comercialmente que fez questão de reter na lista: “This movie has not been picked up by an American distributor, making it hard for even intrepid filmgoers to see. If it makes it to DVD, I promise to let you know” – se alguém estiver interessado em tomar nota…
 
Só para não haver confusões a propósito destas várias “escolhas críticas”, recorde-se que Cartas de Iwo Jima de Clint Eastwood é um filme de 2006.