Podia esperar-se – e, no caso, mesmo temer – que Carminogla desse mostras do seu virtuosismo vertiginoso e sentido exuberante da ornamentação, que o tornaram um intérprete emblemático de Vivaldi, mas que seriam despropositado nos Concertos de Mozart.
Isso não ocorre. É de ter em conta que a gravação ocorreu depois de três anos de trabalho comum. Se há uma espantosa facilidade, muito caracteristicamente italiana, no manejo do arco, e uma sonoridade luminosa, Carmignola, e com ele a direcção de Abbado, dão mostras de uma permanente invenção do fraseado mas também de uma linha ampla. A finura e a elegância do desenho, a sonoridade resplandecente e o subtil recurso a um vibrato muito controlado, tornam o entendimento excepcional, o pico sendo o Rondó do Concerto nº 5. Mesmo que se sinta que na Sinfonia Concertante (que é, repete-se, uma das grandes obras de Mozart), a co-solista Danusha Waskiewicz não está exactamente ao mesmo nível (e a este respeito convém lembrar que na mesma obra, e numa edição que tem também os cinco Concertos para Violino, um Isaac Stern teve como cúmplice um intérprete tão qualificado como Pinchas Zukerman), esta publicação, e esta surpreendente estreia de Abbado à frente de uma formação com “instrumentos de época”, é de facto excepcional.
Contrariamente ao disco dos Concertos, no das Sinfonias a Orchestra Mozart apresenta-se com instrumentos tradicionais, ainda que, seguramente, com cordas de tripa e com alguns instrumentos de sopro também de “época”.
“Cada coisa é o que é”, e por isso não se pode deixar, antes do mais, de notar a concretização. Não fosse o disco de René Jacobs com as mesmas Sinfonias nº 38 e 41, editado no ano passado, e este disco teria de ser citado como o mais notável registo recente de sinfonias mozartianas. Acontece que esse tal outro disco existe, como existem os de Harnoncourt com a Concertgebow. As comparações tornam ainda mais elucidativas algumas menores valias deste disco.
Diga-se que a escolha do programa é inteligentíssima, mostrando que Abbado fez uma funda redescoberta, uma reaprendizagem mesmo, da interpretação mozartiana. Faz todo o sentido incluir a Sinfonia nº 29, por assim dizer a primeira das sinfonias tardias, ou a observação que Abbado faz nas notas que o desenvolvimento do 1º andamento da “Haffner” prenuncia o primeiro tema do andamento final da “Júpiter”.
A variedade incisiva dos ataques é outro clara confirmação que em três anos Abbado e a Orquestra Mozart trabalharam aprofundadamente. No caso do maestro então, ele está literalmente “irreconhecível”, por comparação com todos os seus anteriores registos mozartianos. Tudo isto salientado como é devido, há também a dizer que o escrúpulo filológico que leva nomeadamente à observação de todas as repetições, e que faz em particular que o andamento inicial da Sinfonia “Praga” demore quase 18’, não deixa também de dar azo a que a tensão nem sempre seja constante, de resto nessa sinfonia como na derradeira “Júpiter”, e que haja um insuficiente relevo dos sopros.
É bem provável que, a existir apenas este disco das sinfonias, a reacção pudesse ainda assim ser mais entusiástica, tal o exemplo de inteligência e de autêntica “re-aprendizagem” por parte de Abbado. Mas não só essa escuta comparativa com Harnoncourt e Jacobs - e este último tanto mais quanto o programa coincide com o segundo disco do presente registo - elucida alguns limites, como sobretudo é o brilhantismo excepcional do disco dos Concertos de Violino que abre campo a que se considere que esta outra interpretação das sinfonias, notável que é, não atinge contudo os mesmos níveis.
Mas que fique bem claro que esse disco dos Concertos de Violino é doravante uma peça a considerar na discografia mozartiana em geral.
Claudio Abbado é um músico de excepção, não apenas pelas suas eminentes qualidades
interpretativas, mas também porque, tendo ainda ocupado os mais altos cargos institucionais, do Scala a Viena e à Filarmónica de Berlim, não se restringiu, contudo, ao repertório e práticas canónicas.
Relembro, entre outros factos, os concertos para os trabalhadores das fábricas que organizou nos anos 70, a fundação da Orquestra de Jovens Gustav Mahler ou a sua dedicação à nova música, em especial a sua relação próxima com Luigi Nono – e é uma memória das mais intensas a estreia de Prometeo la Tragedia dell’Ascolto de Nono, sob a sua direcção em Veneza, em Setembro de 1984 – e acrescento que outra das minhas mais fortes experiências musicais foi o Concerto em sol maior de Ravel, sendo solista Martha Argerich e com os jovens da Mahler, em Agosto de 2002, em Edimburgo, quando Abbado regressou ao pódio após uma doença que o manteve afastado durante dois anos.
Claudio Abbado completou 75 anos no passado dia 26 de Junho. Como vai sendo prática rotineira, a Deutsche Grammophon assinala o evento com algumas reedições e novas edições. Não creio que, no denso panorama das integrais das Sinfonias de Beethoven, aquela que Abbado realizou com os Berliner tenha um relevo de maior. Também quanto à integral dos Concertos para piano do mesmo Beethoven com Maurizio Pollini, haverá a dizer que o pianista tem outras interpretações com mais relevo desses mesmos concertos, uma anterior integral tendo como maestros Karl Böhm e Eugen Jochum – sendo que na longa colaboração e fraternidade de Pollini e Abbado mais há a recordar os Concertos de Brahms e Bartók, ou ainda e talvez sobretudo, a inusitada associação dos Concertos de Schumann e Schönberg.
Mas a DG tinha também anunciado para esta ocasião um dos projectos discográficos mais inesperados do ano: a associação de Abbado com Giuliano Carmignola para os Concertos de Violino de Mozart – o máximo expoente hoje da interpretação da escola violinística barroca italiana e um maestro do repertório sinfónico (e de ópera) dos séculos XIX e XX?!
O encontro tem uma história, não tanto o facto de há 30 anos atrás Carmignola ter integrado os Filarmonici do Scala sob a direcção do outro, mas a fundação de uma nova Orquestra Mozart por Abbado, em Bologna, em 2004 – e Bologna, como se sabe, é uma cidade do itinerário mozartiano, quando o então jovem Wolfgang Amadeus foi aí aluno do Padre Martini.
O caso não é único em rigor. Diferentemente da obstinada reserva às interpretações “de época” de em especial um Pierre Boulez, já um Simon Rattle – o sucessor de Abbado em Berlim – vem de há anos dirigindo também a Orchestra of The Age of Enlightment. Mas Abbado não iniciou uma colaboração com uma formação já existente, de novo fundou uma orquestra, votada especificamente a Mozart.
Os Concertos de Violino não são certamente o que de mais relevante Mozart, mas dois intérpretes em particular, Arthur Grumiaux e sobretudo Isaac Stern, guindaram-nos ao nível de presenças indiscutíveis numa discografia mozatiana.
Sendo publicada também um outro disco duplo, com cinco Sinfonias de Mozart captadas em alguns concertos da Orquestra Mozart, são neste caso uma útil informação as entrevistas com Carmignola e Abbado incluídas nos respectivos livretes. Enquanto o violinista cita Grumiaux e o seu professor Franco Gulli, o maestro fala de Rudolf Serkin e George Szell. Estas últimas referências justificam algumas considerações.
O problema dos concertos gravados por Serkin e Abbado é o próprio maestro, que de modo algum acompanha a linha desse supremo intérprete mozartiano que o pianista foi. Por outro lado, a referência a Szell é muito interessante: mais, a meu ver, que o inevitavelmente sempre citado Bruno Walter, creio que os grandes intérpretes tradicionais das sinfonias de Mozart foram sim Szell e Krips (e o caso muito particular de Fritz Reiner).
A evolução interpretativa de Abbado é flagrante nas suas sucessivas gravações das Sinfonias de Mahler, incomparavelmente mais impressionantes as mais recentes. Mas neste caso não se trata de “evolução” mas de uma inequívoca “transfiguração”: estas são interpretações mozartianas como nunca esperámos ouvir de um Abbado, tornando-o próximo do que com formações de instrumentos de época realizou um Frans Brüggen ou, mais recentemente, um René Jacobs, ou do que com todo o seu saber e experiência acumulada o que um Nikolaus Harnoncourt logrou obter de uma orquestra tradicional, a da Concertgebow de Amesterdão, essa, a orquestra, também literalmente “transfigurada” pelo maestro.
Estes dois discos são uma total surpresa, e em particular o dos Concertos de Violino mais a Sinfonia Concertante para violino e viola (esta, uma das grandes obras de Mozart) é excepcional.