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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

O BCP, a sua medalha de mérito e o mecenato dela

 

 

Em plena tormenta, o BCP teve pelo menos um momento de reconhecimento, uma comenda mesmo.
 
No passado dia 12, a ministra da Cultura, Profª Isabel Pires de Lima, teve à noite uma agenda preenchida: antes de se dirigir à Gulbenkian, para a ante-estreia de Cristovão Colombo – O Enigma de Manoel de Oliveira, nos 99 anos do cineasta, foi à Gala do Millennium BCP, “Mecenas Exclusivo do Teatro Nacional de São Carlos”,  galardoar a instituição bancária com a medalha de Mérito Cultural, “pelo seu contributo para o reforço do tecido cultural e a formação de públicos em Portugal” – e essa foi a razão, de imperiosa agenda, pela qual ficou adiada para o dia seguinte a inauguração da nova livraria Byblos. Com o acto de medalha, quis o Ministério da Cultura, esclareceu o próprio em comunicado, prestar uma “simbólica homenagem a uma entidade empresarial privada que coloca a Cultura no centro da sua participação cívica”.
 
O Millenium BCP constitui um caso particularmente relevante de mecenato, nalguns casos até com uma presença que, embora por responsabilidades compartilhadas, se torna agressiva: que páginas de cultura e crítica no caderno Actual do “Expresso” tenham o patrocínio de uma instituição financeira é facto por demais insólito. Ainda assim, é óbviamente mais que desejável a existência de  mecenas, e não só por motivos financeiros – tudo o que fôr no sentido de diminuir a estrita dependência do aparelho burocrático do Ministério da Cultura é auspicioso. E os casos prosseguidos e bem sucedidos de mecenato devem tanto mais ser assinados quanto não são de votar ao esquecimento contra-exemplos, como o fim dos Concertos PT/ Em Órbita, que eram um sucesso, e que a empresa então presidida por Miguel Horta e Costa decidiu abruptamente acabar.
 
Mas a comenda, há que dizê-lo, teve o seu quê de hipócrita, e tanto mais nas circunstâncias em que foi entregue, a Gala do “Mecenas Exclusivo”.
 
O Millenium BCP é o mecenas principal de actividades do Ministério da Cultura, e tanto mais o é este ano, num apoio que atinge os 2  milhões de euros: a 1 milhão para o São Carlos e 600 mil euros para o Museu Nacional de Arte de Antiga e 200 mil para o Soares dos Reis, objectos de protocolos, acrescem 200 mil euros, mais outros 200 mil a serem entregues em Janeiro, para a “jóia da coroa” de Isabel Pires de Lima, a exposição do Hermitage.
 
Sem o apoio do Millenium BCP, o regular funcionamento do São Carlos, como de resto o novo dinamismo que o Museu de Arte Antiga teve durante a direcção de Dalila Rodrigues, seriam sériamente afectados. Isso não obsta a que a fórmula de “mecenatos exclusivos” para as grandes instituições públicas, criada na parte final do consulado de Manuel Maria Carrilho, dando ainda estabilidade de financiamento, seja bastante problemática, quando não seriamente contestável.
 
Até por ter ocorrido no São Carlos o exemplo original convirá atentar ao caso. Em 1993, tinha sido criada a Fundação de São Carlos, entidade de direito privado e utilidade pública, em que ao Estado estavam associadas empresas como a RTP, RDP e PT. É um facto que a Fundação estava falida e era largamente uma entidade fictícia. Ainda assim, a “re-estatização” do Teatro, pelo Decreto-Lei 88/98 (que vigorou até à recente criação da aberrante OPART E.P.E. pelo Decreto-Lei nº160-2007 de 27 de Abril), de resto no momento em que a tendência de grande parte dos teatros congéneres europeus ia no sentido precisamente da transformação em Fundações, colocava problemas entre a exacerbada retórica do diploma e as limitações de dotação orçamental, ou seja, a necessidade de, não obstante, encontrar parceiros externos. Carrilho encontrou esse parceiro no BCP e o mecenato teve um preço – a gala anual reservada do “mecenas exclusivo”, isso que é como a récita comprada por uma empresa, verdadeira singularidade que desconheço em qualquer outro teatro público de ópera.
 
Ressalvando devidamente que o Millenium BCP é um caso relevante de actividade mecenática, não deixa de ser deveras extraordinário que a senhora ministra da Cultura tenha ido medalhar a instituição com o Mérito Cultural designadamente “pelo seu contributo para a formação de públicos em Portugal” numa récita para público exclusivo e, de resto, numa instituição, como o Teatro Nacional de São Carlos, onde a formação ou renovação de públicos vai sendo nenhuma, antes pelo contrário (e sei do que falo, porque também frequento outros teatros de óperas), e isto até quando o superintendente-geral, o secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, tem como tese de doutoramente um estudo sobre “O Teatro de São Carlos na mudança dos sistemas sociocomunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias” – a precisar por certo de urgente opúsculo complementar.
 
Mas o o mais grave, e que cabe assinalar à margem desta medalha de Mérito Cultural, é que as políticas governamentais no sentido do enquadramento do mecenato estão cada vez mais afunilada com um único fito: conseguir dos privados as verbas complementares às próprias actividades do Ministério da Cultura. E tanto mais é assim quanto, quase sem ninguém se aperceber, e contrariando uma vez mais as perspectivas enunciadas no próprio programa do Governo, sucedeu antes ter sido revogado o Estatuto do Mecenato. A ministra da Cultura medalhou o “mecenas exemplar” quando neste momento, à face da lei, “mecenas” é coisa que não existe.

Uma Nota a umas notas de programa

 
Longe de mim pretender um discurso de “mestre-escola” ou de Mestre de Escola sobre as notas de concerto(s) – nada disso. Mas o texto do compositor Pedro Amaral inserido no programa do concerto “Os Novos Austríacos” merece um comentário.
 
Discípulo ilustre de Emmanuel Nunes, de facto o único, isto é, o único que atingiu estatuto próprio, Amaral vem, diria que determinadamente, afirmando a sua geneologia. Assim, por exemplo, já o ouvimos dirigir obras de Stockhausen ou Boulez, com até um momento marcante, quando de Hymnen do primeiro, mas também, há poucas semanas na Culturgest, numa desastrosa interpretação de Le Marteau sans maitre do segundo. Mas Pedro Amaral vem também construíndo a sua geneologia em notas de programas da Gulbenkian, por exemplo a propósito de Peter Eötvös, ou neste caso.
 
Austríacos? Logo tem de vir a história da “Primeira” e da “Segunda Escola de Viena”, dos mestres Haydn e Schönberg e dos grande discípulos Beethoven e Webern – mas também, e claro, como parte desta narrativa, e seu outro "momento heróico", a questão de Darmstadt. De facto é a questão de como a “vanguarda” de Darmstadt fixou, diria mesmo “congelou”, há mais de 50 anos, uma concepção da História da Música, uma concepção de um formalismo tautológico, a que no fundamental Pedro Amaral permanece fiel (notar-se-á por exemplo que nesta concepção um Mozart é, bem, apenas um membro menor de uma primeira trindade vienense).
 
Acontece que justamente com alguns destes “novos austríacos”, Neuwirth e Lang, há mutações, que no texto de Pedro Amaral até estão indiciadas, mas que são mesmo mudanças de paradigma e de inscrição cultural.
 
Por exemplo, Amaral fala de factores “extra-musicais” em Neuwirth; mas como é que pode ser ignorado a presença na sua obra de atitudes na descendência do “accionismo vienense” dos anos 60, a sua vocação também para instalações sonoras (como, na última Dokumenta de Kassel, ...miramondo multiplo... – título afim de Spazio Elastico, como se poderá notar – com um vídeo de uma partitura sendo escrita e a audição de textos de Walter Benjamin e Hannah Arendt), como é que pode ser ignorado que as suas obras de teatro musical, como a que Amaral aponta enquanto “sua obra de referência”, Bählammans Fest, têm sido escrito com Elfried Jelinek (sim, a laureada do Nobel), com o que isso supõe de posicionamento ético-crítico, perante a “cultura austríaca” inclusive?
 
Mais surpreendente ainda: como se pode ignorar que a referência maior e absolutamente marcante do percurso composicional de Bernhard Lang é uma obra de filosofia, Diferença e Repetição de Gilles Deleuze?
 
Não escrevo esta nota para apontar “erros” ou mesmos lapsos – se bem que o da relação Lang/Deleuze me deixe estupefacto. Pedro Amaral é alguém cuja trajectória sigo com atenção e interesse. O seu discurso nestas notas e noutras é articulado. O que discuto é os termos desse discurso, uma concepção unívoca da História da Música, uma concepção entrópica em termos estritos de materiais musicais – e com isso uma específica perspectiva, a meu ver limitativa, sobre a música contemporânea. E é isso que creio ser matéria de um debate público e pertinente.