Como é óbvio, e ainda que numa página pessoal, não farei comentário crítico a este disco de obras de António Pinho Vargas. Ainda assim, três notas:
1)Se aceitei escrever as notas ao disco foi também porque já me tinha pronunciado criticamente sobre todas as três obras, sendo que considero Six Portraits of Pain e Acting Out duas das composições mais relevantes do autor, com Monodia e a ópera Os Dias Levantados; por razões várias, que em parte se podem deduzir do próprio texto para o livrete, Six Portraits of Pain é uma obra que muito em especial me toca, e que, tendo sido encomendada pela Casa da Música para a sua inauguração, passou de algum modo despercebida nas “festividades” e “solenidades” que então ocorreram (contudo, para o disco, e ao contrário do que sucede com as outras duas obras, em captações “live”, não foi utilizado o registo da estreia, mas antes feita uma nova gravação de estúdio).
2)Creio, todavia, que não se pode deixar de salientar a entrega de todos os solistas, Ansi Kartunnen em Six Portraits, Elisabeth Davis e Miguel Henriques em Acting Out.
3)Em qualquer caso, e para além de todas as apreciações, há por certo um aspecto que importa assinalar: se com as obras de autores portugueses contemporâneos ocorre redobradamente uma ausência de “vida própria”, isto é, para além da situação genérica de com mais frequência as apresentações se limitarem às estreias faltam de forma dramática modos de circulação de partituras e de discos, este cd tem fazer notar uma suplementar valia da Casa da Música, com as obras interpretadas pelos seus dois grupos residentes, o Remix Ensemble e a Orquestra Nacional do Porto – e esse é um facto mesmo muito importante.
Six Portraits of Pain, Acting Out, Graffiti (Just Forms)
Anssi Kartunnen, Miguel Henriques, Elizabeth Davis
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Franck Ollu, Martin André, Baldur Bronnimann
Numérica
O compositor, sujeito e historicidade
A personalidade artística de António Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.
A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover – tendência hoje cada vez mais insistente em autores que integram nos seus processos composicionais os sedimentos de uma escuta conceptualmente mais ampla -, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.
O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade, tem contudo outras implicações, a saber, uma aguda percepção teórica da historicidade e das diferentes inscrições sociais de práticas e formas musicais, e uma não menos aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.
A noção de “pulsão”, ou mesmo de “pulsação” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.
Intuitivamente também que o tenha sido, Pinho Vargas não deixou de absorver ao seu modo particular a influência de compositores que, tendo sido eles próprios pianistas, elaboraram uma escrita para o instrumento mais vincadamente também percutiva, motriz e “organicista” (nesse sentido físico e pulsional) como Prokofiev e sobretudo Bártok - dado que aflora especialmente em Acting Out.
Retomando as inscrições iniciais de um discurso já autónomo que são Monodia – quasi um requiem e Noturno/Diurno, não menos curial é ter presente o que o autor escreveu sobre a primeira dessas peças: “Uso uma simples sucessão melódica e um gesto musical lírico e consonante – mas que prazer nestas palavras – como ponto de partida da peça. Ela é excessiva, tensa, às vezes quase insuportável. Escrevi uma pequena teoria do grito mas perdi o papel”. O gesto da liberdade, ou antes, da emancipação – e da emancipação enquanto constituição de um sujeito autor de discurso próprio – assinala-se na associação “lírico e consonante – prazer”, o segundo termo introduzindo assim também nos dispositivos pulsionais um princípio, o princípio do prazer precisamente, enquanto por outro lado se assinala “tensa[ão]/grito”.
É particularmente interessante notar que essas duas obras matriciais, que aliás têm relações muito próximas, evocam de modo quase irresistível o primeiro Schönberg, ainda proto-expressionista, e o do sexteto Noite Transfigurada e do Quarteto nº2.
Sabendo-se como Schönberg representou e representa o paradigma do que Richard Taruskin designou por “falácia poiética”, isto é, uma auto-legitimação do artista pela qual o mais importante da obra reside na sua própria feitura, nas marcas da autoria, concepção correlativa à hegelinização da história da música e dos atributos dos “heróis do seu devir progressivo” (e tanto mais “heróicos” quanto enfrentando hostilidade de recepção pública, como tão em particular no caso de Arnold Schönberg), uma tal aproximação numa perspectiva pós-moderna poderá ser surpreendente.
Mas, justamente, falamos de um Schönberg de algum modo ante-schoenberguiano, em termos de sistema e profetismo, em que particularmente se assinalam a “tensão/grito”, o proto-expressionismo mas seguramente em qualquer caso uma marcada expressão. A analogia profunda de Pinho Vargas com essa matriz é essa de expressão, nos termos de uma “stimmung” e mesmo de uma angústia (o grito), de uma “angst”.
Parafraseando e invertendo os termos do conhecido livro de Harold Bloom A Angústia da Influência, dir-se-á que de modo recorrente se encontra disseminada nas obras de Pinho Vargas – e certamente nas três incluídas neste disco, mesmo que por modos muito diversos – uma “influência da angústia”, como inerente ao sujeito, na sua personalidade e historicidade.
Daí também que nestas três obras, mais marcadamente – como é óbvio – nas duas que implicam explicitamente solistas, Acting Out e Six Portrait of Pain, disseminadamente em Graffiti [Just Forms] em particulares destaques instrumentais ao longo das suas secções, haja “dramatis personae”.
Não se trata apenas de um problema de estrutura, mas ainda de uma questão de sujeito, de sujeito do discurso, que se diria mesmo ontológica, com esta ressalva de não pouca importância: como está implicado no uso de um termo do vocabulário da psicanálise para título de uma peça, Acting Out, o indivíduo já é de si uma “dramatis persona” e um espaço de conflitualidade e tensões.
Se atentarmos à estrutura da obra, com as suas secções de “antecedentes” e “respostas”, e ao próprio jogo entre o piano e a percussão e destes com a orquestra, compreender-se-á a referência psicanalítica “na sua conexão com a transferência [do recalcado]".
Numa fase mais recente, Pinho Vargas incluiu na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik: “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”.
Esse texto não diz respeito à condição da pessoa, mas sim do “artista”. Por certo que, nessa afirmada consciência, nesse “curso de decepções”, ocorrem condições concretas – da percepção de “uma inutilidade da arte e da música no quadro do espaço tempo em que vivo”, afirma.
Six Portraits of Pain, para violoncelo e largo conjunto instrumental, encomenda da Casa da Música para a sua abertura pública, é a obra dessa inquietação, dessa dor tornada constituítiva à melancolia do artista (“Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito” – Thomas Bernhard). Mas não menos é a afirmação da possibilidade de, pela “coisa-em-si”, pela obra, ter uma experiência estética que também exista autonomamente do tempo e espaço das suas condições materiais de gestação, a possibilidade de uma suspensão e uma “ucronia”, para além do tempo.
Com os textos de outros, em diálogo “ucrónico” com eles, o que Pinho Vargas delineia é uma possibilidade de reinscrição do sujeito como matéria da própria música. É um trilho pessoal e no entanto próximo do de outros, em reconsideração dos paradigmas de inscrição do sujeito.
Não é fortuito que o compositor esclareça que o primeiro texto que escolheu e “de certo modo, o mais importante porque (me) lançou para a questão fundamental da liberdade de pensamento, da arte, da política e das diversas repressões que marcam as suas histórias” tenha sido colhido em A Filosofia Crítica de Kant, obra em que Deleuze nos situa na “revolução coperniciana” do filósofo alemão, a faculdade de conhecer como legislador, o primado do sujeito, a sua emancipação: Kant, pois, em vez de Hegel – e da hegelinização da história da música.
Six Portraits of Pain é um novo modo de ”acting”, introspectivo, não sem paralelos e também elucidativas dissemelhanças com o de Acting Out.
A obra não é apenas um diálogo entre o violoncelo e o conjunto mas tem também diversas “dramatis personae” que se destacam, sendo de realce o “concertino” que se forma entre o violoncelo e dois violinos.
A sonoridade grave e nobre do violoncelo, como também o uso do instrumento em toda a sua extensão, são particularmente vibrantes no “macro-retrato”, o percurso em que o sujeito se delineia afinal. E poderá parecer surpreendente, mas não tanto na tentativa de leitura que aqui se ensaia, que de novo surja nesta obra a reminiscência da Noite Transfigurada de Schönberg.
A estrutura de Graffiti [Just Forms] é diferente pela marcante presença de um acorde de base, qual risco inicial, impulsivo (ou, ainda, pulsional), do próprio gesto de grafitar. O “rasgo” desse acorde-gesto (“rasgo” como noutro momento “grito”) traz consigo os elementos potenciadores da forte saturação da obra. Sucede isso também porque, em analogia ainda com o gesto de grafitar, o compositor usa materiais de base relativamente esquemáticos, ou melhor dizendo, de “traço grosso”, para ir introduzindo outras possibilidades, de rupturas abruptas, de timbre, de registo, de sobreposições.
Depois de Acting Out, com as suas ressonâncias psicanalíticas, e do “acting in[ner]” melancólico de Six Portaits of Pain, Graffiti [Just Forms] é uma possibilidade de “re-enactment” tentando delinear uma mais lata homologia, considerando não apenas a historicidade dos materiais musicais mas também as condicionantes sociológicas de formulação de discurso no quadro concreto de uma situação semi-periférica como a de Portugal, com todas as suas limitações estruturais, que fazem de algum modo que as possibilidades dessa formulação possam ser Just Forms [Graffitis].
Augusto M. Seabra
Extractos do texto escrito para o livrete desde disco.
Quando da apresentação, também no São Luiz, de uma anterior obra de Luís Tinoco, já essa sobre textos de Terry “Monthy Python” Jones, Histórias Fantásticas, que especialmente saudei, tive ocasião de relembrar Zapping, esse brilhante objecto paródico, com uma deslocação rápida de materiais musicais, como se fossemos sintonizando sucessivos postos radiofónicos, nos quais ouvíamos designadamente duas obras que também integravam o programa do concerto em que foi estreada, a Sinfonia nº102 de Haydn e a Sinfonia nº39 de Mozart – é, por assim dizer, uma obra “em situação”. E escrevi então que, apesar de se poder temer um carácter circunstancial, isto é, que supunha uma diferença acrescida entre percepção e compreensão da obra, pois que implica no ouvinte o quadro paródico, Zapping afinal deixara marcas, sendo com Sundance Sequence uma das obras de Tinoco que Histórias Fantásticas evocava.
Já agora também me ocorre que quando da estreia de Zapping escrevi que a obra era brilhantemente representativa de um aspectos mais notórios da condição pós-moderna, as práticas de “paródia” – a serem entendidas não só ou nem tanto no sentido humorístico corrente, mas no de trabalho explícito sobre referências e materiais anteriores.
Há uns tempos atrás, num encontro casual com Luís Tinoco – mas que não por acaso ocorreu quando ambos nos debruçávamos numa discoteca sobre as estantes de jazz –, disse-lhe que tinha acabado de ler no programa do Festival Musica de Estraburgo de 2007 um texto falando de “composição pós-pós-moderna” e que imediatamente me ocorrera também ele.
Por isso, trago também para aqui os termos desse texto de Antoine Gindt: “Segundo alguns, continua a haver duas filiações musicais na Europa: os herdeiros de Schönberg e portanto de uma vanguarda globalmente atonal, e os prossecutores de uma tradição mais académica na qual orquestração rima com harmonia.. Mas eis que surge, ao lado deste debate vetusto, uma tendência que reclica e reintegra materiais mais heterogéneos da história recente da música: será zona de margens, ‘no music’s land’ ou futuro da composição pós-pós-moderna?”
Curiosamente em contraste com um caso como o de Emmanuel Nunes (por este ser compositor em destaque no mesmo festival), Gindt falava de uma nova geração “para a qual o material também provém de um potencial mais largo de potencialidades já manufacturadas, mais imediata e directamente reconhecíveis, colhidas no banco mundial de sons, um mundo em reciclagem permanente, porque à distância e facilmente disponível. A citação pela colagem e ainda mais a impressão sonora constituem novos utensílios para o compositor”. E falava de autores que recusam a separação estrita entre “high art” e “low art”, de uma geração que adoptou a heterogeneidade colhendo também as influências e heranças do jazz e do rock, compositores como Heiner Goebbels, Fausto Romitelli, Bernhard Lang, François Sarhan e Oscar Bianchi – elenco em que se podem incluír também o notável Bruno Mantovani e, creio bem, Luís Tinoco.
A biografia de um autor, de um qualquer autor, não é a “chave” de interpretação da sua obra, e ainda mais em música. Mas também há dados biográficos que podem ser esclarecedores quando algumas características se tornam manifestas. Cabe assim recordar que para além da sua formação clássica, Luís Tinoco também cresceu no meio do jazz, por via do seu pai, José Luís Tinoco (de resto também um dos notáveis “song-writers” portugueses), e praticou ele mesmo o jazz, como cabe recordar que antes de optar pela composição e a Escola Superior de Música tinha primeiro frequentado a Escola Superior de Teatro e Cinema.
Terry Jones e Luís Tinoco
Evil Machines é de algum modo uma obra eminentemente cinematográfica. Se em Sundance Sequence o “script” era por assim dizer virtual, embora importante à narratividade da obra, agora o gesto foi mesmo o de pôr um texto em música, de o “musicar”. Já escrevi, logo após a estreia da obra, que enquanto Terry Jones se lhe refere mesmo como “ópera”, Tinoco mostra-se mais circunspecto na caracterização, correctamente a meu ver, a designação mais pertinente sendo a que consta do próprio espectáculo, “fantasia musical”.
Uma ópera é (também) estruturalmente organizada pela música. Uma “fantasia musical” como esta, mesmo totalmente cantada, trabalha de modo heterogéneo as sugestões do texto, por exemplo dando-lhe a imediata concretização sonora, por exemplo integrando também a citação parodiada como a de “God Save the King”.
É inegável que os muito fantasistas e delirantes figurinos de Vin Burnhan são o dado mais imediato da realização. Mas a caracterização das personagens e situações são indissociavelmente matéria do libreto e da música.
Tinoco não temeu que Evil Machines se aproximasse do modelo do “musical”, embora de escrita mais complexa – e essa atitude é mérito seu, sinal de uma liberdade criativa em que os compartimentos da “high art” e da “low art” já não são estanques.
Aqui e além reaparece a influência de John Adams – justamente exemplo de uma situação composicional sem essas compartimentações - que tão importante é noutra obra de Tinoco, Round Time (que pode ser ouvida no seu sitío, www.tinocoluis.com), a pulsão jazzistica é recorrente, as invenções tímbricas muitas, a escrita vocal é ágil. Só num momento, “We Have All Monsters”, me parece que o compositor cedeu a uma facilidade de “canção”, porventura também porque esse é um momento de “moralidade”.
Cabe falar ainda também de um notável elenco, quase todo jovem ou relativamente jovem, com o evidente destaque desse talento consumado que é a soprano Ana Quintans, mas também, entre outros, de dois cantores que aqui confirmam serem casos a justificar atenção, o tenor Fernando Guimarães e o barítono João Merino. E há a notar que está patente o trabalho de “coaching”, que é mais que escorreita a pronúncia inglesa deste elenco português.
Mas cabe sobretudo falar de um exemplar trabalho de equipa, do entendimento Terry Jones-Luís Tinoco, dos contributos também da direcção musical de Cesário Costa, à frente da Orquestra Metropolitana de Lisboa, ou do delineamento coreográfico de Paulo Ribeiro, do trabalho de produção que implicou esta aposta do director artístico do São Luiz, Jorge Salavisa, de um espectáculo com um valor tal que a sua “exportação” nada teria de surpreendente.
Antipode, Trois Poèmes de l’Orient, Forgotten Places, Sundance Sequence, Invention on Landscape
Eileen Hulse
Lontano, Odaline de la Martinez
CD Lorelt
Luis Tinoco é um dos mais brilhantes e inventivos compositores portugueses. Invention on Landscape, uma das obras incluídas neste disco, é particularmente sintomática, de modo explícito, de uma sua característica distintiva: Tinoco é um construtor de paisagens musicais. O seu pensamento é fundamentalmente harmónico, delineando subtis curvas de mobilidade e texturas, mas também com uma forte noção concreta do “som”, dessas texturas que compõem as paisagens no tempo, e com um sentido narrativo muito particular.
De resto, atentando ainda aos títulos, poderá notar-se que não é só Invention on Landscape, mas também Antipode e Forgotten Places, mesmo Trois Poèmes de l’Orient sobre poemas de Pessanha (embora esta se me afigure a obra menos convincente do presente conjunto), que têm essa noção evocativa de espaços e paisagens – espaços imaginários de paisagens musicalmente construídas.
Músico também de formação jazzística, Tinoco tem igualmente uma notável sentido da pulsão e é plausível que essa marca de formação seja vectorial ao seu notório pendor por instrumentos de palheta, clarinetes e saxofones.
Se há marcadamente nele um pensamento harmónico, não é em sentido estático, mas no dessas curvas de mobilidades e texturas, com as quais se prendem o sentido não só da pulsão como também da narratividade. Uma obra como Sundance Sequence, que tem um autêntico “script” (a que se deverá atender no sentido evocativo de situações, que não propriamente descritivo), revela também uma ironia muito peculiar, diria mesmo hilariante na utilização paródica de referências, como a harmonização “hollywoodiana” de excertos de Rituel de Boulez ou na reestruturação ao modo da “escola de Darmstadt” de excertos de Ritual de Chick Corea (outro exemplo brilhante desta sua capacidade de trabalhar com originalidade o segundo grau é o uso de materiais da Sinfonia nº102 de Haydn e da Sinfonia nº39 de Mozart em Zapping).
Umas das vantagens de um disco deste como é a de possibilitar um retrato mais próximo do autor. E, nesse sentido, esta reunião de obras, em cuidadadas realizações, não só confirma as razões do interesse que o trabalho composicional de Luís Tinoco vinha suscitando, como configura sem margem para dúvidas uma personalidade de vincadas características próprias.
A edição foi apoiada pela Gulbenkian e pelo Instituto Camões. A recepção crítica é que lamentavelmente foi quase nenhuma. E após uma importação inicial, o cd já nem está em distribuição no mercado português – mas se é lacuna sintomática, também se pode supri-la com facilidade no mercado electrónico.
Ontem estreou em Lisboa, no Teatro Municipal São Luiz, o brilhante e divertidíssimo Evil Machines, que o autor do texto e encenador, o celebrado Terry Jones, que integrou os Monty Python, refere mesmo como “ópera”, o compositor Luís Tinoco mostrando-se mais circunspecto na caracterização, correctamente a meu ver. Fique pois a designação que consta do próprio espectáculo, “fantasia musical”.
Em breve, no próximo dia 25, ocorrerá a estreia em São Carlos de Das Märchen de Emmanuel Nunes. Lá mais para o fim do ano, aguarda-se na Culturgest a nova ópera de António Pinho Vargas, com libreto de José Maria Vieira Mendes.
Mas note-se também o que ocorreu ao longo do ano passado, ou para usar critérios mais pertinentes, no ano passado e no decurso da temporada anterior, 2005/2006, isto é, nos últimos 16 meses.
Sucessivamente estrearam: A Little Madness in the Spring, um tríptico de Pinho Vargas, Frédéric Durieux e ìris ter Schiphorst; Itinerário do Sal de Miguel Azguime; Reset de Vasco Mendonça; A Montanha de Nuno Côrte-Real e Metanoite de João Madureira; O Rapaz de Bronze, também de Nuno Corte-Real; enfim, W, de José Júlio Lopes. E no elenco dos factos deve ainda referir-se que chegou a estar anunciada mas não se efectivou por ora a estreia de O Sonho de Pedro Amaral, tendo contudo o autor feito a apresentação de um excerto da ópera.
A lista parece suficientemente eloquente de que também aqui e agora é manifesta a nova actualidade de um género que tanto foi proclamado como “morto”, entrem ou não numa categorização estrita de “ópera” as diversas obras referidas – as quais, em qualquer caso, são todas integralmente de teatro musical, e não “teatro musical” no sentido mais restritivo e específico, característico de um Mauricio Kagel ou de um Georges Aperghis.
É certo que a característica social e simbólica de distinção e ostentatória do género também é um fantasma não-ausente. Infelizmente, o modo como evoluíu o processo de apresentação de Das Märchen, com as intrigas do compositor junto do poder, e o directo, directíssimo envolvimento desse mesmo poder político, do actual dueto do Ministério da Cultura, nesse processo, são prova acabada de como o prestígio simbólico da ópera, e os seus custos de produção também, a tornam propícia a exemplos de espectáculo majestático.
A um outro nível, a dupla operação A Montanha /Metanoite, no Fórum Cultural “O Estado do Mundo” da Gulbenkian, foi também uma operação ostentatória e desastrosa. Digamos que foram mais as duas óperas “comemorativas” do 50º aniversário da Fundação e condenadas a por aí se ficarem, sendo o desastre em especial notório no tocante à de Côrte-Real; entre outros motivos, como depois ficou claro, essa amarga decepção ocorreu também porque não era de facto cabalmente exequível que o autor estivesse em simultâneo dedicado ao processo de composição de duas óperas, essa e O Rapaz de Bronze, sendo ainda para mais que foi ele próprio o libretista de A Montanha, a outra ópera sendo muito mais interessante, entre outros motivos, porque de facto tinha devidamente um libreto, de José Maria Vieira Mendes.
Como não pode deixar de se notar também, esta significativa sucessão de novas óperas e obras de teatro musical é, todavia, um facto quase publicamente ignorado. Pode ser que me tenha escapado alguma referência (pode ser, ainda que duvide), mas só me recordo de ter lido críticas às duas obras que estrearam na Casa da Música, A Little Madness in the Spring e O Rapaz de Bronze, e ambas de um crítico também compositor, Fernando Lapa.
Não sei ou não, esse sim é um facto de que duvido, se na imprensa portuguesa ainda existe “crítica musical”. Não creio é que uma tendência tão insistente e importante possa deixar de ser assinalada. E, a propósito, não menos foi lamentável que quando da estreia de W a Culturgest tenha anunciado um suposto colóquio internacional, que contudo foi confidencial, “Next Opera Next”, co-organizado pela “Coisa-em-Si”, a produtora do próprio José Júlio Lopes, e o CESEM, o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa – e que, provavelmente, foi mais uma manifestação “para si mesmos”, entrópica, dos senhores musicólogos “cesemianos”, dado a acrescentar, na repartição das competências, à tendência ao desaparecimentos de críticas na imprensa.
É pois tempo de falar concretamente de obras novas, de Evil Machines, mas também de recordar alguns percursos recentes.