A Culturgest tem vindo a apresentar uma série de recitais que constituem uma proposta de programação musical que pela sua originalidade, fora dos parâmetros canónicos, importa assinalar e saudar: músicos a solo, interpretando obras do período barroco e modernas e contemporâneas.
O ciclo abriu a 9 de Janeiro com essa singularíssima intérprete que é a pianista Joanna MacGregor, que interpretou alternadamente Prelúdios e Fugas de Bach e Chostakovich e depois obras de compositores brasileiros (Villa-Lobos mas também Egberto Gismonti, Edu Lobo, Baden Powel e Tom Jobim) mais um arranjo de seis temas de Astor Piazzola. Curiosamente, e apesar de serem peças de O Cravo Temperado tocadas num piano moderno, achei-a mais convincente em Bach que em Chostakovich, neste faltando a aspereza, mas segunda parte estiveram em destaque as características mais peculiares de MacGregor, que foi sobretudo magnífica na transcrição do admirável tema que é Trevo de Gismonti. Foi um recital empolgante.
Seguiu-se em Fevereiro o violinista David Grimal, concerto a que infelizmente não pude assistir, que entre as Partitas nº 1 e 2 de Bach tocou Kontrapartita, Chaconne de um dos mais assinaláveis compositores franceses contemporâneos, Brice Pauset. E ontem foi a vez de Tatjana Vassilijeva, vencedora do Concurso Rostropovich e detentora já de um notável curriculum.
Do conhecimento discográfico deduz-se que Vassiljev é especialmente notável no reportório moderno e contemporâneo, não tanto no barroco e clássico, o que se confirmou no recital. A sua interpretação da Suite nº3 de Bach incomodou pelo vibrato e foi monótona pelo carácter seco, com escassa caracterização particular de cada uma das danças. Mas em contrapartida a violoncelista foi notável nas obras de Cassadó, Dutilleux e Kodály.
Gaspar Cassadó é sobretudo conhecido enquanto violoncelista, mas, tal como outro, Pablo Casals, foi também compositor. A Suite para Violoncelo Solo segue as linhas fundamentais do folclorismo espanhol de Granados, Álbeniz e Falla. Nela, Vassiljeva demonstrou um agudo sentido rítmico comunicando o carácter das danças. Seguiram-se duas das obras máximas para violoncelo do século XX, as Trois Strophes sur le nom de Sacher de Henri Dutilleux (um grande compositor, tão pouco ouvido em Portugal) e a Sonata de Kodaly. Foi nestas obras que Vassiljeva mais se distinguiu, magnífica mesmo na Sonata para violoncelo solo de Kodály, com ampla sonoridade e uma perícia técnica de excepção.
O ciclo prosseguirá com a cravista Ana Mafalda Castro, tão raramente ouvida em recital a solo. Repita-se pois que pela singularidade da proposta de programação e dos intérpretes, esta iniciativa da Culturgest é um ciclo a assinalar.
É importante assinalar que se avizinham dias de música excepcionais – e não, não me refiro aos Dias da Música no CCB, em relação aos quais, além de o programa não me suscitar particularmente, permanece a minha reserva ética de princípio sobre uma iniciativa que, por vontade majestática de António Mega Ferreira, veio substituir a Festa da Música, a extensão em Lisboa da “Folle Journée” de Nantes, dela retirando todavia o figurino da sucessão de concertos de 45 minutos. Refiro-me sim a eventos da temporada da Gulbenkian, concretamente do ciclo Grandes Orquestras, e do programa “Música e Revolução” da Casa da Música.
Excepcional é a possibilidade de ouvir, no Coliseu dos Recreios, apenas com três dias de intervalo, as duas mais reputadas orquestras juvenis, mas atenção, juvenis e contudo de grande nível, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler, que foi o modelo, e, pela primeira vez em Portugal, àquela outra que foi formada tendo a Mahler como modelo, a venezuelana Orquestra Juvenil Simón Bolívar, com o seu electrizante director, Gustavo Dudamel.
Para mais, hoje, terça-feira, às 21h, os Mahler tocam Mahler, a Sinfonia nº3, o que é caso simbólico, sob a direcção de Ingo Metzmacher, enquanto no sábado, 25 de Abril, à mesma hora, os Bolívar interpretam nem mais nem menos que a obra entre todas “revolucionária”, A Sagração da Primavera de Stravinsky, esse “sacre” latino-americano que é Sensemayá de Silvestre Revueltas, e fieis às suas origens, mas pode-se que também mais de cor local “folclórica”, Santa Cruz de Pacairigua de Evencio Castellano.
A Casa da Música vem organizando à volta do 25 de Abril, o ciclo de “Música e Revolução”, o seu único exemplo de programação verdadeiramente transversal. Este ano, o terceiro do ciclo, e se bem que o acontecimento de maior importância vá ser, a 2 de Maio, uma obra que surge lateralmente à temática, Gruppen (enfim!) de Karlheinz Stockhausen, de 1956/57, o leitmotiv é o Maio de 68. Ora, facto também ele absolutamente de excepção, as duas grandes obras do ano de 1968, e de algum modo sintomáticas dessa conjuntura cultural, Sinfonia de Luciano Berio (que, de resto, entre muitas outras citações, do Maio parisiense ou de O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss, é um testemunho da reapreciação de Mahler, e uma homenagem, com a longa citação do Scherzo da Sinfonia nº2) e Stimmung de Stockhausen, serão ouvidas em dias sucessivos, respectivamente sexta às 21h e sábado às 18h.
Merece ainda referência, de tal modo é intrigante e original, o projecto musical e poético Caldo Dísio/ Desejo Ardente, proposta do violetista Christophe Desjardins e do filólogo Frederico Sanguinetti, na Culturgest, sexta e sábado 21h30. Conhecemos Desjardins como um grande intérprete de música contemporânea (tem um maravilhoso dedicado a obras de Berio e Feldman). Neste caso a sua viola dialogará com poemas medievais e renascentistas, de Dante, Boccaccio e outros, recitados por Sanguinetti.
Este é um espectáculo insólito, inteligentíssimo e brilhante. Tim Etchells, o director da conhecida companhia britânica Forced Entertainement foi convidado pela plataforma Victoria de Gent (Bélgica) a fazer um espectáculo com 16 crianças, entre os 8 e os 14 anos. Não se trata no entanto de teatro infantil, nem de exploração como território infinito de virtualidades, mas destina-se sim a adultos e é como um jogo de espelhos: as crianças devolvem aos adultos os discursos que eles têm para com elas e o modo como com elas se comportam.
Quando está em exibição esse grande filme que é Entre les murs/A Turma de Laurent Cantet é deveras interessante notar que uma outra obras participam da lógica de um match: no filme isso ocorre entre o professor e alunos, no espectáculo entre o palco e esse contracampo que é plateia dos adultos: não por acaso a cenografia é a de ginásio, e não por acaso toda a primeira parte do espectáculo (cerca de 30’) é dita em homofonia à boca de cena, frontalmente para os invisíveis adultos, as crianças relatando-lhes (recordando-lhe) o que eles lhes dizem e fazem.
Quando dizem, por exemplo, “Vocês ensinam-nos a escolher bem as palavras”, mais notório é que o processo de aprendizagem, de transmissão de saber, é também processo de dominação, de que aqui se devolve a imagem, no jogo.
Jogo, também “play”. Espectáculo à parte, That Night Follows Day não deixa de ter uma reconhecível “marca Forced Entertainement” – e acrescento mesmo, é muitíssimo mais interesssante que os dois espectáculos que a companhia apresentou no Alkantara 2006, The World in Pictures e Exquisite Pain. Pelo jogo, pelo fragmento e a repetição (“vocês…”, “vocês…”) até à possibilidade infindável – como em And On The Thousandth Nigth (Culturgest, 2002) – afinal, sendo que se “tthat night follows day”, também “that day follows night”, e por aí adiante…