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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Mil Planaltos

 

 

 

 

O livro foi publicado em 1980. Anuncia-se como volume II de O Anti-Èdipo – Capitalismo e Esquizofrenia, mas de facto excede largamente esse propósito. É em Mille Plateaux que os conceitos de “rizoma” e “desterritorialização” estão elaborados, mas a obra, uma das mais iluminantes e densas do pensamento contemporâneo, está também preenchida de observações estéticas. Em Portugal, e pela Assírio & Alvim, estava publicada a famosa introdução, Rizoma.
Durante anos – e como em nenhum outro caso – fui indagando pela posibilidade (pela necessidade) da sua tradução, foram-se sucedendo-se as conversas com o Manuel Rosa, o editor da Assírio, tentando saber do processo, dos prazos de tradução, do horizonte previsto de publicação. Até que há dias, o Manuel, com aquela sua particular dedicação a cada livro que publica – e este é dos mais arriscados de editar – a primeira coisa que fez mal nos encontrámos foi passar-mo para a mão. Eis agora nas livrarias portuguesas Mil Planaltos.
Sempre me chocou por exemplo o modo como esse livro teoricamente disléxico de tanta nomeada, a “vulgata” da anti-globalização que é o Império de Tonio Negri e Michael Hardt (e Negri tem textos de pensamento político bem mais substanciais), autenticamente “pilha” muito dos quadros conceptuais de Mil Planaltos, algo que, a meu conhecimento (mas posso desconhecer outras referências) apenas Slavoj Zizek notou, mas para no seu entusiasmo marxista pela panfleto objectar contudo ao “deleuzianismo”.
Sem querer de modo algum menorizar Guattari (de quem, nomeadamente, as observações sobre um “nova glaciação” após os entusiasmos militantes se vieram a revelar de extrema pertinância), de resto uma estratégia que foi seguida por vários contraditores, importa-me ainda assim neste momento assinalar outros dois pontos especificamente referentes a Deleuze:
1) A confirmação da extraordinária importância do seu “Post-Scriptum sobre as sociedades de controlo” (“post-scriptum” ao conceito de “sociedades disciplinares” de Foucault) incluído em Conversações (Ed. Fim de Século), quando somos referenciados por cartões ou plelo nosso rasto nas tecnologias electrónicas;
2) De devidamente assinalar que nenhum outro pensamento se tornou tão própriamente “rizomático” no campo estético como o seu, nas mais diversas àreas aliás. Por exemplo na música, já fiz aqui referência a um Bernhard Lang, de quem aliás o Remix recentemente gravou duas peças do ciclo DW, isto é Differenz/Wiederholung, referència explícita a Diferença e Repetição, ou Quad in Memoriam Gilles Deleuze de Pascal Dusapin, título evidentemente beckettiano, mas obra sobretudo referida ao texto de Deleuze sobre esse outro de Beckett, L’Epuisé – e obra que de resto o Remix interpreta a 29 de Março na Casa da Música e a 30 na Gulbenkian.
E muitos outros exemplos se poderiam citar, sem deixar de referir textos como Cinema 1  – A Imagem-Movimento e Cinema 2 - A Imagem-Tempo ou Francis Bacon: Logique de la sensation.
 
NOTA – Um miserável, que outro nome não tem, na posse de contactos de Manuel Rosa e sabendo de concretos movimentos seus ontem, fez telefonemas vários dando notícia de que ele teria morrido. Foram momentos de consternação para muitos de nós, e eu próprio involutariamente cheguei a aqui mesmo pôr a “notícia”, logo retirada quanto recebi informação desmentindo-a. Felizmente foi mesmo apenas uma vil atoarda, mas ainda assim uma explicação é devida.

 

 

Presenças de Beckett

 

 

 
“Esse est percipi”, “ser é ser apercebido”, postulou George Berkeley (1685-1753), eclesiástico e filósofo irlandês, filósofo do empirismo. O postulado foi retomado por outro irlandês, Samuel Beckett (1906-1989), na sua incursão cinematográfica designada tão só como Film – e genial filme de 22’ – como uma peça há que tão só se chama Play. Ainda que realizado por Alan Schneider (e com fotografia de um dos mestres maiores, o irmão de Dziga Vertov, Boris Kaufman – os filmes de Jean Vigo ou Baby Doll, Há Lodo no Cais e Esplendor na Relva de Kazan têm a sua impressão fotográfica), seria erróneo dizer que, como nas convenções de uma ficha técnica, Beckett teria sido o “autor do argumento” – a concepção é inteiramente sua, e para supervisar, ou para finalmente se encontrar com Busker Keaton, pois que é ele o protagonista, Beckett até viajou de Paris para os Estados Unidos.
Buster Keaton, de facto...
Muito falam Vladimir e Estragão enquanto esperam, esperam, À Espera de Godot, e a sua imobilidade não deixa de evocar a passidade do homem que nunca sorria...e nunca falou – e ainda mais evoca Keaton a ainda mais imóvel Winnie de Dias Felizes. São todos seres de linguagem e de circunstâncias que outros determinaram, existem, “são”, enquanto circunstãncias e percepções.
“Esse est percipi” – “mas como escapar às ‘felicidades do percipere e do percipi’ se pelo menos uma percepção existirá enquanto vivermos, a mais temível, a de si pelo próprio?”, perguntava a propósito Gilles Deleuze em Cinema I – A Imagem-Movimento. A questão é ontológica, e se é de alguma maneira questão fundamental do teatro de Beckett (Winnie ou Krapp), não menos é uma questão fulcral de cinema nos termos em que ele a delineou.
“O”, a personagem de Keaton, é alguém “em busca do não-ser, tentando escapar a percepções exteriores para caír na inexorabilidade da auto-percepção” (Beckett). “O” tenta assim escapar a “E”, a “e(ye)”, ao olho da câmara, que de facto é como uma outra personagem. Questão eminentemente de cinema, pois.
Film de Samuel Beckett e Alan Schneider é exibido hoje às 19h30 na Cinemateca Portuguesa, com Hautes Solitudes de Philip Garrel.
“Quad”
Uma outra presença de Beckett ocorre na magnífica exposição Um Teatro sem Teatro, patente no Museu Berardo: Quad (sobre a qual Deleuze escreveu um texto próprio, L’Epuisé), de resto numa apresentação bem mais interessante que a do écrã de televisão em que estava encerrada nessa outra recente exposição no Museu do Chiado, Centro Pompidou: Novos Media, 1965 – 2003.
Há Beckett e Bruce Nauman, Beckett que influencia Nauman, este que homenageia o outro em Slow Angle Walk (Beckett Walk), admirável percepção da lógica “coreográfica”, de organização do movimento, que há na obra do outro - não deixa aliás de ser espantoso que a obra de Nauman, de 1968, seja um ano anterior a Film, que entre “O” e “E”, tão extraordinariamente afirmaria essa lógica. De resto, acrescente-se, um recente intérprete de Acto sem Palavras em Nova Iorque foi...Mikhail Baryshnikov.
“Slow Angle Walk (Beckett Walk)”