Andreas Staier é um dos mais notáveis músicos actuais, intérprete inteligentíssimo e executante de excepção, virtuose exímio do cravo e do pianoforte. Para um cravista da sua craveira, fez-se longamente esperar a gravação do maior monumento escrito para o instrumento, as Variações Goldberg, o Clavierbüng IV. Quando as interpretou em 2000 em Queluz, no âmbito dos sempre saudosos Em Órbita / Portugal Telecom, e por interessante que a sua interpretação tenha sido, e foi, não deixou de se pressentir que faltava maturar uma concepção. Mas creio que nenhum de nós suporia que fossem precisos 10 anos para finalmente a gravação ser publicada.
Desde a Ária inicial pressentimos que este é um caso à parte. Evidentemente que na rica discografia da obra há um caso entre todos de excepção, as duas gravações de estúdio de Glenn Gould, aliás entre si tão diferentes de modo extremo. Mas se há Hantaï (outro caso de duas diferentes gravações), Lars Ulrik Mortensen, Koriolov, Perrahia, Scott Ross, Céline Frisch, etc., há que dizer que esta gravação é, de outro modo, também um caso à parte. Como é óbvio todas as grandes gravações são singulares, mas esta é radical nas suas opções.
Dir-se-á que há uma desconstrução da obra, e que embora a interpretação seja historicamente muito fundada (é ver e ouvir as explicações de Staier no dvd que acompanha o cd), é também resolutamente moderna. Não por acaso, a editora solicitou textos para o livrete, em concreto sobre a interpretação, a dois compositores contemporâneos, Isabel Mundry e Brice Pauset, e embora Staier respeite a letra e a forma da partitura ocorre-nos, como gesto, a orquestração por Anton Webern do Ricercare da Oferenda Musical.
Desde logo, esta interpretação soa diferente, e de que maneira! A razão está no instrumento, o exuberante, colossal e monstruoso cravo, com dezasseis pés, construído por Anthony Sidey segundo um modelo Hass de Hamburgo, de 1734 - Hamburgo 1734, assim se intitulava precisamente o espantoso recital com que Staier nos deu a conhecer o instrumento. Uma dúvida nos ocorre todavia: se o intérprete utilizou de novo o instrumento noutro magnífico recital, dedicado aos Early Works de Bach, é esse instrumento o mais adequado para uma obra, como as Variações Goldberg, que no entanto até lhe é mais próxima em termos cronológicos que os tais Early Works?
Captado de um modo a pôr em relevo a sua imensa sonoridade, de resto com uma ressonância dos baixos mesmo algo incomodativa, o instrumento tem uma variedade de registos que o aproximam do órgão, mas não sem que por vezes a clareza das vozes deixe de ser “esmagada”.
Com ataques clamorosos (Variação X, XVI), com uma variedade imensa de registos e de agógica, esta é uma interpretação monumental que atinge o paroxismo na célebre Variação XXV, que aqui nada tem do “espressivo” mais habitual, antes pelo contrário, num tempo lento sublinha esse carácter monumental, naquele que é o mais crítico ponto da interpretação.
Árias de “Serse”, “Teseo”, “Giulio Cesare”, “Admeto”, “Hercules”, “Semele”, “Imeneo”, “Ariodante” e “Amadigi”
Joyce diDonato
Les Talens Lyriques, Christophe Rousset
Virgin
A meio-soprano norte-americano Joyce DiDonato começou por se notabilizar em papéis rossinianos, no Barbeiro de Sevilha e na Cenerentola. De Rossini a Haendel foi um passo, o que se compreende, porque dadas ainda notórias diferenças, como os affetti da estética barroca próprios às óperas do caro sassone, ambos são os grandes mestres (eles sim, se bem que possamos acrescentar Vivaldi) do que é efectivamente o bel canto, o canto ornamentado – e não, como erroneamente (não me canso de o repetir) se repete, os compositores do primeiro romantismo, Bellini e Donizetti, já de canto spianato (de linha aplanada), embora ainda com alguns resquícios “belcantistas”.
Em 2004, DiDonato estreava-se em Haendel num delicioso disco de duetos operáticos com Patrizia Ciofi, “Amor e gelosia” (Virgin), imaginativamente organizado e dirigido, surpresa, por Alan Curtis – ele que por hábito tão académico é. Entretanto cantou em cena esse grande “papel” que é a Dejanira do Hercules, uma das tais oratórias não-biblícas de Haendel, verdadeiros dramme per mùsica, que têm vindo a ser representadas com alguma regularidade. A sua voz também tem vindo a evoluir, mais aguda, entre o mezzo e o soprano, e de facto até gravou mesmo uma parte de soprano, outro papel handeliano, o de Alcina na ópera homónima, gravação que aliás acaba de ser lançada – a extensão e facilidade da sua voz são aliás bem patentes neste disco.
Falei dos affetti barrocos. DiDonato não só escolheu Haendel para o seu primeiro recital, como um tipo de árias particular, de um affetto específico, o furore, mostrando os seus formidáveis meios. Todavia é preciso fazer algumas precisões: escolheu a cantora aproximar-se de uma maior caracterização de duas personagens, a Medea de Teseo (tenha ela oportunidade e que espantosa maga deve ser) e a Dejanira de Hercules, com várias árias de uma e outra, sendo que Dolce riposo da primeira e Then I am lost… da segunda não são árias de furore. Por outro lado, e apesar da secção central, é duvidoso que o famoso Scherza infida de Ariodante caiba no objectivo programático – é mais um lamento. Ora, contradição, a interpretação dessa ária, superlativamente admirável, é o pináculo do recital, enquanto no papel que mais se esperaria de DiDonato, o Where shall I fly? de Dejanira (e que por alguma razão encerra o programa), porventura por marcas da experiência cénica, é de um exagero de efeitos de todo despropositado.
A escolha do programa é interessantíssima, mesclando trechos de obras mais conhecidas com outras que o são muito menos. A robustez da voz e a facilidade da emissão impressionam, mas ainda mais a inteligência do rubato e do fraseado, sobretudo da conclusão das frases, e da coluratura (embora com alguns gorgejos dispensáveis), a eloquência (Hence, Iris hence away da Semele, mesmo que não faça esquecer a histórica interpretação de Marilyn Horne), a formidável autoridade (Orride larve…/Chiudetevi miei lumi do Admeto), tudo isso tornam marcante esta estreia em recital de Joyce DiDonato, confirmando-a sem margem para dúvidas como uma intérprete haendeliana a considerar. Infelizmente, e não é pequeno pormenor, o acompanhamento de Les Talens Lyriques e Christophe Rousset é só isso, “acompanhamento” sem chama dramática.
Pelas objecções apontadas também me deixa algo reservado o imenso furor em torno deste recital, que de qualquer modo, é óbvio, não pode deixar de ser um disco recomendado.
Um dos acontecimentos mais relevantes no domínio interpretativo da música barroca nos últimos 15 anos foi a chegada tardia – muito posterior aos austríacos, ingleses e flamengos – mas clamorosa dos agrupamentos italianos, renovando profundamente o nosso entendimento da época musical que se estendeu de Monteverdi a Vivaldi. Eis que se diria que, pronto, nestes 250 anos da morte do compositor é chegado a sua altura de partirem “ao assalto” do “Haendel italiano” e “italianizante”. Mas calma…
No dia 11 de Janeiro passado ocorreu em Lisboa um dilema handeliano: sendo escassos os concertos comemorativos anunciados pelas instituições musicais portuguesas, logo dois calhavam no mesmo dia e chegavam a sobrepor-se: uma das melhores intérpretes actuais de Haendel, a contralto Marijana Mijanovic, apresentou-se na Gulbenkian; estava esse concerto a terminar e já começava no CCB o de Il Giardino Armonico, com alguns dos Concertos Grossi op.6. Infelizmente o recital de Mijanovic foi um desastre, por a cantora estar em más condições vocais, cortando inclusive uma ária do programa – mais valia ter cancelado o concerto. Entretanto, no que me toca perdi o outro evento, de que me chegaram relatos entusiásticos, deixando-me pesaroso por não ter assistido. Afinal…
Conta-se que na estadia romana de Haendel, quando da sua primeira oratória, Il trionfo del tempo e del disingano, Corelli, concertino, se terá voltado para o autor e dito a propósito da abertura: “Meu caro saxão esta música é no estilo francês [as aberturas de Haendel são sempre em estilo francês] que não entendo”. E logo o caro sassone escreveu em seu lugar uma sonata em estilo corelliano.
Haendel chegou a Inglaterra como compositor de óperas “italiano”, e “italianas” foram também outras obras que aí escreveu. É óbvio que os Concerti Grossi op 3 e op. 6 seguem o modelo de Corelli. É assim lógico que agrupamentos especializados no barroco italiano os abordem – mas atenção, o Haendel propriamente da estadia em Itália já tem sido abordado por intérpretes transalpinos: Alessandrini gravou, e admiravelmente, o tal Il trionfo del tempo e del disingano, Fabio Bonizzoni e La Risonanza estão a fazer na Glossa, como já foi dito, uma notável série das cantatas italianas.
Importam estas precisões tais as pretensões que Giovanni Antonini afirma no livrete, não se coabindo mesmo de criticar o “estilo seco de certos agrupamentos, e nomeadamente algumas falanges inglesas e holandesas”. Bem, é caso para dizer que depois de ouvir Il Giardino Armonico o desejo é o de voltar a escutar o brilhantismo e fluidez da Academy of Ancient Music dirigida por Andrew Manze (Harmonia Mundi).
E, no entanto, o triplo disco até abre de modo prometedor com um majestoso Concerto nº 1. Mas rapidamente vem ao de cima o gosto forte dos contrastes – o exagero mesmo –, da acentuação dos primeiros tempos e dos golpes das arcadas dos milaneses, desfigurando as frases. Se o ripieno é sólido, o concertino é terrivelmente desconexo.
Já o Largo do Concerto nº 2 deixa antever essa desconexão. A partir daí não pára. A Polonaise do Concerto nº3 é transformada numa espécie de “Alla Rustica” de teatralidade sem nexo, o Larghetto e staccato inicial do Concerto nº 5 é a viva demonstração da incompreensão do estilo haendeliano, etc. Surpreendentemente o grupo italiano só dá mesmo um ar da sua graça no menos italiano dos movimentos, a Hornpipe do Concerto nº 7. Sobretudo, tudo ou quase é interpretado da mesma maneira, terrivelmente monótono.
Já alguém sugeriu que, por certo involuntariamente, a aliás mirabolante imagem de capa deste álbum, com o grupo fora de um autocarro que parece ter problemas técnicos, é uma inesperada metáfora da “avaria” que o próprio disco é no percurso de Il Giardino Armonico, uma tremenda decepção.
Nota – Dada a inflação de lançamentos e eventos handelianos, também muito haendeliana andará esta página. Apesar de chegarem novos lançamentos quase todas as semanas, tentarei contudo variar da circunstância comemorativa.
"O melhor disco" do ano são afinal dois, ou antes três, dado que o segundo é duplo. São os primeiros volumes de antologia que esse admirável intérprete que é Mathias Goerne dedicará ao "lied" de Schubert, em volumes cada um deles com pianista diferente (excepto os ciclos que serão os três com Christoph Eschenbach), para já com Elisabeth Leonskaja, Helmut Deutsch e Erik Schneider. Absolutamente superlativo.
E os outros por ordem cronológica, com um recital no fim:
Dufay - Supemum est mortalibus bonum - Cantica Symphonia
Heavenly Harmonies - Obras de Tallis e Byrd - Stilo Antico
Harmonia Mundi
Bach - Obras de Juventude - Andreas Staier
Harmonia Mundi
Bach - Partitas 2, 3 & 4 - Murray Perrahia
Sony
Vivaldi - As Quatro Estações - Amandine Beyer e Gli Incogniti
Zig-Zag Territoires
Geminiani - Sonatas para Violoncelo - Bruno Cocset, Luca Pianca & Les Basses Réunies
Alpha
Bethoven - Sinfonias e Aberturas - Anima Eterna, Jos van Immerseel
6 cds Zig-Zag Territoires
Chopin -OPP.33-36, 38- Maurizio Pollini
DG - dist. Universal
Janácek - As Excursões do Senhor Broucek - Jan Vacík, BBC Singers, Orquestra Sinfónica da BBC, Jiri Belohlávek
2 cds DG - distr. Universal
Schoenberg, Sibelius - Concertos de Violino - Hillary Hahn, Orquesta Sinfónica da Rádio Sueca, Esa-Pekka Salonen
DG - dist. Universal
Michael Levinas (n. 1949) - Les Nègres - Solistas, Grand Théatre de Genève, Orquestra da Suissa Romanda, Bernhard Kontarsky
(Sysiphe) - não distribuído em Portugal
Bruno Mantovani (n. 1974) - Le Sette Chiese - Streets - Éclair de Lune - Ensemble Intercontemporain - Susana Mälkki
Measha Brueggergosman - Surprise, obras de Satie, Schoenberg e William Bolcon
DG
A ordem usual das coisas teria sido a de já ter escrito sobre estes e outros discos e proceder agora à escolha. Assim, será o contrário, e os objectos de escolha terão prioridade nas abordagens críticas. As escolhas de dvds surgirão também.
Comecemos o dilúvio de edições discográficas dedicadas aos dois compositores mais celebrados deste ano com a Edição Haendel da Harmonia Mundi. A concepção é atraente e pertinente com duas caixas de árias, uma das óperas, outra de oratórias e ainda uma outra de concertos. O design é imaginativo e prático, as notas dos livretes são mantidas, bem como os textos, exceptuados os libretos de óperas – remetidos para a internet, como vai sendo cada vez mais hábito. E, claro, o preço é económico.
A mais valia decisiva é no entanto que a Harmonia Mundi possuía em catálogo algumas excelentes gravações haendelianas, e uma mesmo, o Giulio Cesare dirigido por René Jacobs, que em 1991 teve um efeito deflagrador, e abriu decisivo caminho à nova consagração das óperas de Haendel.
Duas caixas se impõem de imediato pela coerência: a das óperas, o citado Giulio Cesare, Rinaldo e Flavio (obra menos conhecida, grandíssima interpretação), dirigidas por René Jacobs, mais um bónus, algumas árias cantadas pelo próprio Jacobs, numa caixa de 9 cds, e a dos Concertos, Concerti Grossi op. 3 & op. 6 e Concertos para Órgão op. 4, com a Academy of Ancient Music, formação haendeliana emérita, dirigida do cravo (op. 3) e do órgão (op.4) por Richard Egarr, e pelo concertino Andrew Manze (op.6), numa caixa de 4 cds – e se iremos ao longo do ano fazendo aproximações à hoje riquíssima discografia de Haendel, quer-me parecer que esta caixa dos concertos virá a ter papel cativo nas escolhas, donde se deduz que é a de maior relevo nesta edição da HM.
Jacobs ainda dirige as oratórias, Saul e o inevitável O Messias (4 cds), que essa não se impõe, o que poderá surpreender, mas é razão de um Messias decepcionante.
Finalmente as duas caixas de árias, uma um projecto coerente mas de resultado desequilibrado, outra uma reunião de discos díspares, mas de grande qualidade. A primeira repropõe o projecto das “Arias for…” concebido por Nicholas McGegan, que teve a importância histórica de, a partir de 1987, abrir todo um capítulo, até muito para lá de Haendel, de retomar o perfil de determinado intérprete histórico (digamos que recitais como a homenagem de Cecília Bartoli a Maria Malibran e de Juan Diego Florez a Rubini se vieram inscrever nessa tendência). Acontece que musicalmente se impõem apenas as árias para a Durastanti com a grande Lorraine Hunt, e para Montagnana, com David Thomas, sendo pálido o disco de Lisa Saffer consagrado à Cuzzoni e – preço do pioneirismo, até porque foi justamente o primeiro – é francamente insatisfatório o de Drew Minter com as árias para o célebre castrato Senesino.
Em contrapartida é dispare mas francamente notável nas realizações individuais o volume (de 4 cds, como o anterior) de “Famous Árias”, com recitais de Dorothea Röschman (o disco indispensável para as árias alemãs), Lorraine Hunt, Andreas Scholl (o célebre recital “Ombra Mai Fu”) e Mark Padmore.
Erich Gruenberg, Gervaise de Peyer, William Pleeth, Michel Béroff
EMI
Já agora, cabe assinalar o reaparecimento no mercado de umas das grandes interpretações do Quator pour la fin du Temps. Com efeito, na 20ª série de (re)edições dos “Great Recordings of the Century” da Emi, marcando aliás o 10º aniversário desse selo de prestígio, surge uma interpretação do Quator gravada em 1968, e “liderada” pelo então jovem Michel Béroff, à época recém-laureado do Concurso Messiaen, com um curioso e talvez algo extravagante “trio” de músicos britânicos, Erich Gruenberg, William Pleeth e Gervaise de Peyer – este o mais célebre dos clarinetistas incluídas na discografia da obra, e todavia talvez destes quatro intérpretes aquele cuja adequação é mais discutível.
Em qualquer caso, aí está nos escaparates, e é sem dúvida uma das três ou quatro grandes interpretações da obra, como haverá ocasião de analisar num sobrevoo dessa discografia. Em complemento, uma obra chave, Chronochromie, numa interpretação dirigida por Antal Dorati, com a Orquestra da BBC – e se bem que haja claramente uma interpretação superior desta obra, a de Boulez com a Orquestra de Cleveland, a aproximação de duas obras tão eminentemente fundadas também nas singularidades de cores, da “chromie”, não deixa de ser interessante.
La Transfiguration, Couleurs de la cite celeste, Oiseaux exotiques, Visions de l’Amen, Des Canyons aux étoiles…
Reinbert de Leeuw, Yvonne Loriod, Pierre Boulez…
6 cds Montaigne Naïve, dist. Andante
O centenário de Messiaen deu origem à publicação de algumas volumosas edições: a “Complete Edition” da Deutsche Grammophon (32 cds), a “Anniversary Box” da Emi (14 cds) ou duas caixas da Decca, “Orchestral and Chamber Works and Song Cycles” (6 cds) e “Piano and Organ Music” (7 cds). Nenhuma dessas se encontra no mercado português. Há ainda, inevitavelmente, uma edição da recordista das caixas super-económicas, a Brilliant Classics, muito parcial, com as integrais das obras de órgão e piano mais as melodias (17 cds) e uma caixa de “Orchestral Works” da Hanssler (8 cds), que essa ainda deve aparecer no mercado nacional. Mas diga-se, de resto, que a discografia de Messiaen, numerosa e com escolhas de qualidade para todas as suas obras de relevo, não o justifica como compositor a adquirir “de atacado”.
No mercado português encontra-se sim uma valiosa caixa de seis cds dos discos Montaigne, ou quatro cds dois dos quais duplo, de grande relevo – e em relação à qual, de qualquer modo, existem os discos separados.
Ausentes estão as duas obras mis célebres, o Quator pour la fin du Temps e a Turangalîla-Symphonie, e isso, que pode parecer uma falta, é indirectamente um valor acrescentado a esta caixa. Com efeito essas duas obras, a Turangalîla sobretudo, têm por si só discografias de relevo (que aliás a seu tempo se comentará), e como tal esta caixa não colide com essas nem com as mais significativas obras para piano, os Vingt regards sur l’Enfant Jésus, ou para órgão, o Livre d’orgue ou o Livre du Saint-Sacrement.
Os discos Montaigne são o repositório de registos de concertos no Théâtre des Camps Elysées em Paris (o local da famosa estreia da Sagração da Primavera) situados na avenida com o nome do filósofo, e dedicam-se à publicação de obras do século XX, e ora também XXI. Messiaen não podia estar ausente.
Quanto ao roteiro é o seguinte: 1) La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ, a obra que a Gulbenkian encomendou a Messiaen, estreada a 7 de Junho de 1969 no Coliseu dos Recreios, pelo Coro e Orquestra da Rádio de Hilversum, direcção de Reinbert de Leeuw disco duplo; 2) Sept haikai, Couleurs de la cité celeste, Un Vitrail et des oiseaux e Oiseaux Exotiques por Yvonnne Loriod e o Ensemble Intercontemporain dirigido por Pierre Boulez; 3) Visions de L’Amen por Maarten Bon e Reinbert de Leeuw, e 4) Des Canyons aux étoiles… pelo Asko Ensemble e Schönberg Ensemble, direcção de De Leeuw, disco duplo.
Embora o conjunto seja bastante apreciável, não deixa de ser desigual, pelo que, se a caixa tem um respeitável valor em si mesma, é curial ter presente que há a possibilidade de obter separadamente os discos.
Aquele que menos se impõe, face à proeminência dos registos dos próprios Messiaen e Loriod e de Martha Argerich e Alexandre Rabinovitch, é o das Visions de l’Amen. Creio também, no tocante a Des Canyons aux étoiles…, que não me canso em sublinhar ser uma das obras maiores do autor, que a prodigiosa sugestão da vastidão dos espaços é mais bem lograda na integração de Myung-Wha Chung (DG) que nesta de De Leeuw. Inversamente penso agora que a interpretação de De Leeuw da Transfiguration se impõe como aquela que põe em relevo os traços mais originais e caracteristicamente “messiaenescos”, mais que as de Dorati e Chung. Enfim, o disco com Yvonne Loriod, a mulher do compositor, e o Ensemble Intercontemporain dirigido por Boulez é certamente uma das grandes peças da discografia do autor, com interpretações antológicas das Couleurs de La Cité Celeste e de Oiseaux exotiques.
Katharine Fuge, Robin Tyson, Steve Davislim, Stephen Loges (cd1)
Joanne Lunn, Daniel Taylor, Paul Agnew, Panajotis Iconomou (cd2)
Monteverdi Choir, English Baroque Soloists, John Eliot Gardiner
Cds Soli Deo Gloria, dist. CNM
Como se sabe, a integral das cantatas litúrgicas de Bach por Gardiner, em curso de edição, é o registo de um projecto único na sua desmesura: em 2000, nos 250 anos da morte do compositor do compositor, mais exactamente desde o dia de Natal de 1999, Gardiner e os seus músicos efectuaram uma peregrinação que não se limitou aos locais que tinham sido os do compositor, na Turíngia e na Saxónia, mas foi mais vasta, tendo inclusive passado pelo Porto, e concluindo-se em Nova Iorque.
As cantatas foram interpretadas no dia do calendário litúrgico a que se destinavam, e esse acto foi, diz Gardiner, a “raison d’être” do projecto. Mesmo que novos dados de edição tenham sido utilizados, não se tratou de maneira nenhuma de um projecto eminentemente musicológico – aliás, desde logo, e ao contrário dos princípios filológicos admitidos, Gardiner sempre usou coro misto, o seu Monterverdi Choir, nas interpretações bachianas.
Gardiner pretendia também captar a emoção de um concerto, mesmo que por razões de segurança as gravações fossem de facto efectuadas imediatamente antes – supondo-se contudo que o fulgor de uma noção de urgência ficasse registado. Mas um tal desmesurado projecto foi – e é no seu eco discográfico – forçosamente irregular, desde logo pela constante mudança de solistas. Acresce que, como podemos verificar, a qualidade das gravações em si mesmas não é brilhante.
Quem não esteve pelos ajustes foi a editora na qual Gardiner era no entanto uma das cabeças de cartaz, a DG/Archiv: alguns volumes ainda saíram com esse selo, mas depois veio a ruptura e Gardiner criou a sua própria editora, Soli Deo Gloria. Mas, já agora, também não se percebe muito bem a ordem de publicação dos volumes, como se pode verificar pelos presentes.
O vol. 23 reúne cantatas para o Primeiro Domingo depois da Páscoa, Nach dir, Herr, verlanget mich, BWV 150, Halt im Gedächtnis Jesum Christ, BWV 67, Am Abend abr desselbigen Sabbats, BWV 42 e Der Firied sei mit dir, BWV 158, e para o Segundo Domingo Depois da Páscoa, Du Hirt Israel, höre BWV 104, Ich bin ein guter Hirt BWV 85 e Der Herr ist mein getreuer Hurt, BWV 112; o vol. 3 cantatas para o Quarto Domingo depois da Trindade, Ein ungerfärbtGemüte BWV 24, Barmherzigges Herze der ewigen iebe BWV 185 e Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ BWV 177 e para o Quinto Domingo Depois da Trindade; Gott ist mein König BWV 71, Aus der Tiefen rufe ich, Herr, zu dir, BWV 131, Wer nur lieben Gott lässt walten, BWV 93 e Siehe, ich will viel Fischer aussenden BWV 88; o vol. 25 cantatas para o Quinto Domingo Depois da Páscoa, Wahrlich, wahrlich, ich sage euch BWV 86, Bisher habt ir nichts gebeten in meinen Namen BWV 87, In allen meinen Taten, BWV 97, e para o Domingo depois da Ascensão, Sie werden euch in den Bann tun I, BWV 44, Nach dir, Herr, verlanget mich, BWV 150 e Sie werden euch in den Bann tun II e ainda um moteto de Johan Christoph Bach (primo) Fürchte dich nicht.
Por esta altura da peregrinação, em termos discográficos, as características estão já suficientemente definidas, e dir-se-ia que o termo que o termo que ocorre é o de "graciosidade", mesmo de certo modo “brilhantismo”, mas em modos mais profanos que em rigor litúrgicos: Gardiner está no seu melhor em cantatas festivas como a BWV 71, no vol. 3, sempre que o ritmo é de dança, ou nos coros fugados. Paradoxo maior para um projecto de cantatas, são as cores dos English Baroque Soloists que sobressaem, às vezes os oboés, outras as flautas, outras ainda, mais raras, as trompetes, mesmo nalgumas ocasiões as cordas, e imagine-se que no Monterverdi Choir as vozes femininas, filologicamente desajustadas, se sobrepõem às masculinas.
O vol. 3 é um dos melhores já publicados e não necessariamente pelos nomes mais sonantes de solistas – de facto Kozená até se apresenta com falta de fôlego e Stutzman com algumas inflexões amaneiradas, embora sempre impressionante de timbre. Mas há um notório dramatismo e esplendor, sobretudo na BWV 24, os tenores Agnew e Von Rensburg são pertinentes e o baixo Harvey mesmo eloquente.
Em contrapartida, o vol. 23, pesem ainda os belos momentos do cd 1, como os coros finais da cantata BWV 150, ou as interpretações do baixo Stephen Vercoe ao longo do volume, é arruinado pela flagrante mediocridade do contratenor Norbert Towers e do tenor Norbert Meyn no cd 2.
São ainda os desequilíbrios dos solistas que marcam o vol. 25, no cd1, com uma sofrível soprano, Katharine Fuge, e um surpreendente tenor (e surpreendente neste reportório), Davislim, no cd 1, enquanto no 2 Daniel Taylor e Agnew são excelentes.
Tudo ponderado, o vol. 3 é das melhores introduções às características desta integral de Gardiner.
No 1º aniversário da morte de Karlheinz Stockhausen
Stockhausen
Stimmung
Theatre of Voices, Paul Hillier
Harmonia Mundi
Stimmung é uma das mais fascinantes e encantatórias composições de Stockhausen.
A obra começou a ser escrita nos Estados Unidos, depois de uma viagem pelo México, Havai e Califórnia, em 1968. O facto está longe de ser menor. Por um lado, e ainda que a ambição de cosmogenia de Stockhausen estivesse já patente numa obra de pouco anterior, Hymnen (1966/67), que por sua vez tão influente seria nos grupo de rock “psicadélico” (Pink Floyd, etc.), é Stimmung que anuncia a viragem no sentido do misticismo, absorvendo influências extra-europeias – mesmo que, diferentemente de John Cage, Stockhausen tenha permanecido, ponto importante, um mestre-compositor, um demiurgo sim, mas no sentido da tradição europeia -, misticismo que se tornaria decisivo, não sem muito ganga “kitsch” também, no monumental ciclo Licht, encetado em 1977, com as suas sete “óperas”, uma para cada dia da semana, a que ainda se seguiria um outro ciclo, Klang, para as 24 horas do dia.
Ainda que muitas das palavras escritas tivessem sido retidas pelo seu valor fonético (outras são nomes mágicas, e uma, a do “modelo” 28 – a obra engloba 51 “modelos” - é uma prédica, “Langsamen…”), não é certamente por acaso que uma dessas seja “hippy” – 1968 na Califórnia , onde Stockhausen ensinou no Mills College, foi o momento de apogeu dos “flower people”. Mas, mais importante, e tenha sido caso de conhecimento directo ou não, Stimmung liga-se à tendência minimal que já despontava, depois do seminal In C de Terry Riley, de 1964 – e a obra constrói-se a partir de um si bemol, não de um “acorde de si bemol”, mas de 16 notas a partir dos harmónicos dessa outra, polar. Por sua vez Stimmung iria ter uma enorme influência nos sucessivos minimalistas (mesmo em Steve Reich, diga ele hoje o que disser) e muito em particular nos trabalho vocais de Robert Ashley e de Meredith Monk – e se pensarmos no que uma Björk por sua vez deve a Meredith Monk, o lastro continua.
“Stimmung” é aliás uma palavra que significa quer “afinação”, quer “disposição” ou “humor” em sentido lato – além de evocar “Stimme”; voz. De certa maneira Stimmung no mais genérico sentido de “disposição” ou “humor”, de “l’air du temps”, é uma das mais representativas obras dos anos finais da década de 60. Mas num outro sentido, é uma obra trans-histórica.
Os seis cantores, três masculinos e três femininos, dispõem-se ao centro, sentados no chão com as pernas cruzadas, “à oriental”, com o público à volta, cada um deles com um microfone. Ocorre virem por sua vez para trás do público – Stimmung é uma cerimónia, um ritual, mas também uma prodigiosa invenção de uma nova vocalidade, como no maneirismo o tinham sido os madrigais de Gesualdo (e de Luzzaschi) e depois o foram os de Monteverdi – e era esse o reportório do grupo que solicitou a obra, o Collegium Vocale Köln. A obra dá campo à livre escolha dos intérpretes, é aleatória, e mesmo, prosseguindo os princípios de música intuitiva que Stockausen tinha já praticado em Aus den Sieben Tagen (imediatamente anterior, obra “libertária", de Maio de 68!), ainda que num quadro mais prescrito, apela às suas reacções imediatas, à reacção a um som, a uma vibração.
Cada interpretação de Stimmung é assim diferente – pelo menos, certamente, cada uma por intérpretes diferentes. Em Portugal, em Lisboa, houve duas realizações inolvidáveis: uma, em 1972, pelos criadores da obra, o Collegium Vocale Köln, no Instituto Alemão dos tempos áureos, dirigido por Curt Meyer-Claison, outra no Festival Música Viva em 2006, na Sala do Capítulo do Mosteiro dos Jerónimos, por estes mesmos e excelentes Theatre of Voices dirigidos por Paul Hillier (que será o maestro titular do novel Coro da Casa da Música).
A proliferação de gravações “live” está também a alterar alguns dados da escuta. Por mim, ironizando, costumo dizer que ainda terei de arranjar uma estante para discos e dvds em que “compartilho” da respiração de fundo, isto é, de concertos ou espectáculos de ópera em que estive presente. Mais latamente, a memória concreta suscita um suplemento de emoção na escuta.
Este caso é diferente – fatalmente, estou em crer, pelas características da obra. Reouvida agora, a versão (porque cabe falar em “versões” e não apenas em “interpretações”) do Theatre of Voices parece-me menos incisiva, de algum modo mais macia, que a dos Singcircle dirigidos por Gregory Rose, em que Paul Hillier aliás era um dos participantes (Hyperion). Mas porque cada versão é diferente, cada uma se justifica.
E o caso é também diferente de outras audições porque requer condições especiais, de preferência na penumbra, tomando os devidos cuidados (com os telefones etc.) para não haver interrupções
Carolyn Sampson, Robin Blaze, Gerd Türk, Peter Kooij
Bach Collegium Japan, Concerto Palatino, Masaaki Susuki
Sacd Bis
Cantatas vol. 38
Ich habe genung
Cantatas 52, 55, 58, 82
Carolyn Sampson, Peter Kooij, Gerd Türk
Bach Collegium Japan, Masaaki Susuki
Sacd Bis
A seu tempo, a integral das cantatas litúrgicas de Bach dirigidas por Nikolaus Harnoncourt e Gustav Leonhardt na Telefunken (e recentemente reeeditada numa única caizxa) foi uma ousadia inaudita, o maior projecto da história da produção discográfica. Agora, proliferam os ciclos de integrais.
Ouçam-se Gardiner e Koopman, preste-se sobretudo atenção ao mais recente Sigiswald Kuijken, mas é sabido que o ciclo que se tem mostrado consistentemente a mais alto níveis é o Bach que vem do Japão!
Estes são os dois mais recentes volumes, ou quase – pois para ser exacto já foi também editado o 40, todavia ainda não disponibilizado no mercado português. E tome-se bem nota na sua identificação ao número, já que, incrivelmente, ou por falta de imaginação no princípio único de apresentar como capa uma foto de Susuki, pois no caso elas são idênticas.
O vol. 38 compõe-se de cantatas a solo, Falsche Welte, dir trau ich nicht, BWV 52, para soprano, a célebre Ich habe genung, BWV 82 para baixo, Ich armer Mensch, ich Sündenknecht, BWV 55, para tenor e Ach Gott, wie manches Herzeleid, BWV 58, para soprano e baixo. Um tal programa tem desde logo uma dificuldade, Ich habe genung precisamente, obra indelevelmente marcada pela maravilhosa gravação de Max von Egmond, dirigida por Franz Brüggen, com Brune Haynes no oboé. Peter Kooij é, como é usual, notável, mas está longe, muito longe, de se equiparar. Também o outro cantor que tem vindo a ser peça fundamental do ciclo, o tenor Gerd Türk mostra-se mais ágil que propriamente inspirado na BWV 55. Resta Carolyn Sampson. Ela é absolutamente radiosa na BWV 52, que de resto, logo desde a sinfonia inicial, é a única cantata deste registo em que por inteiro se reconhecem os mais altos valores que têm norteados a integral Suzuki, com o seu sentido da declamação e da articulação, a agilidade rítmica e a fluência. Mas Sampson decepciona também pela falta do fervor pietista na ária “Ich bin vergnügt in meinem Leiden” da BWV 58.
De outro nível é o vol. 39 – isto, apesar de neste termos de novo de aturar (pouco, felizmente), esse caso incompreensível que é o do contra-tenor Robin Blaze, exemplo do que a escola britânica pode ter de mais insuportavelmente amaneirado.
Estes volume reúne cantatas escritas em 1725, Also hat Gott die Welt geliebt, BWV 68, Er rufet seinen Schafen mit Namen und führet sie hinaus, BWV 175, Gottlob! num geht das Jahr zu Ende, BWV 28 e Sie werden euch in den Bann tun, BWV 183.
Exceptue-se pois Blaze, e diga-se que neste disco Suzuki renova a sua capacidade de beleza sonora, o sentido rítmico e a invenção do contínuo, o fervor do coro. Em particular admirável é a cantata inicial, a BWV 68, com um magnífico coral de abertura e a virtuosidade da ária para soprano “Mein gläubiges Herze”.
A ter de fazer escolhas nesta integral – que, repito, é daquelas em curso, a que mais persuasivamente se impõe no seu projecto de “integral”- este vol. 39 é por certo um dos que cabe reter.