Semele é uma das mais insólitas – talvez a mais insólita mesmo – obra de Haendel e uma das suas jóias maiores. Como venho referindo, três das oratórias, Semele. Theodora e Hercules não são bíblicas (e só a segunda é de tema cristão), podendo-se considerar autênticos dramme per mùsica, embora em princípio – Haendel já tinha abandonado os palcos cénicos – não destinadas a representação, o que todavia tem vindo a acontecer, com plena justificação, nos últimos anos.
Das três, Semele é cronologicamente a primeira – 1744 Como também já referi, o compositor já se dedicava de modo consistente à oratória desde Saul, em 1739. Não sabemos exactamente se ele terá tido consciência logo depois que Deidamia, de 1741, era a sua última ópera, mas o triunfo de O Messias, no ano seguinte, fê-lo dedicar-se ainda mais à oratória. Certo é que as rivalidades operáticas não o largaram: depois de ainda outra oratória, Sansão, de 1743, e de várias peripécias, incluindo problemas de saúde e financeiros do compositor, ele fez face aos imbróglios com uma obra “in the manner of an oratório” – “in the manner”, note-se bem, destinado ao concerto, mas não exactamente uma oratória, e com as bem patentes marcas de um consumado autor de óperas (é de lamentar que um livrete deste dvd inclua apenas um texto do encenador sem quaisquer notas sobre tão peculiar obra).
A sua escolha foi das mais singulares: uma peça do dramaturgo da Restauração William Congreve, uma comedy of manners, uma comédia sexual, e de que maneira! Em toda a obra de Haendel Semele rivaliza apenas com Agrippina e Giulio Cesare na sensualidade e carácter lúbrico – e é aparentemente uma oratória! Semele é um dos grandes papéis haendelianos, e há também o de Juno, nomeadamente com a famosa ária Hence, Íris, hence away!.
A certa altura da sua carreira, a Bartoli fez saber do seu interesse em gravar um recital dedicado a Haendel. Quando por circunstâncias inesperadas ela cantou na Òpera de Zurique a oratória romana La ressurezione dirigida por Marc Minkowski, pensou-se (escrevi-o a altura) que esse recital se aproximava. Afinal fizéramos em conjunto um mais original trabalho, dedicado apenas ao período romano do compositor, e também dos seus coevos Alessandro Scarlatti e Caldara, o magistral Opera Proibita, “ópera disfarçada” (porque interdita nos Estados Papais) em oratórias e cantatas.
O intendente Alexander Pereira tornou a Ópera de Zurique numa das mais reputadas da Europa. É lá, e apenas lá, que Cecilia Bartoli canta regularmente em cena. Em rigor, esta Semele não é uma “produção” daquele teatro. A encenação de Robert Carsen data de 1996, e foi originalmente concebida para o Festival de Aix-en-Provence (foi Minkowski que então dirigiu), na mesma altura, se bem me lembro, que Peter Sellars e Wiliam Christie faziam em Glyndebourne a sua extraordinária realização de Theodora. O toque e os tiques de Carsen estão bem patentes: as cadeiras semi-voltadas de costas para o público, como na Tosca apresentada no ano passado no São Carlos que foi um dos seus primeiros trabalhos, os tapetes vindos directamente da sua anterior encenação em Aix, essa admirável, do Sonho de uma Noite de Verão de Britten (existe em dvd, captado no Liceo de Barcelona), mas a realização nem por isso deixa de ter o seu charme.
É pela Bartoli que nos precipitamos para este dvd, e ela é magnificente, strepitosa. Ei-la de novo com “ópera disfarçada”, mas desta vez aliando o esplendor vocal à inteligência dramática e cénica, tão magistral na deslumbrante agilidade como na arte do abandono em Endless pleasure, Oh Sleep (divino pianíssimo!) ou With Fond Desiring.
Não é surpresa que os parceiros sejam poucos mais que comparsas. Anton Scharinger (Cadmus) e Birgit Remmert (Juno) são erros de casting, quando ambos já deram provas suficientes noutros repertórios, havendo a agravante da segunda não ter meios para cantar Hence, Íris, hence away, Isabel Rey (Íris) é frágil embora cenicamente versátil, Liliana Nikiteanu (Ino) está mesmo desfasada. Quanto a Charles Workman (Júpiter), tão notável intérprete de tragédies lyriques, de Rameau ou Gluck, tem uma bela linha de canto mas escasseia-lhe a autoridade e a virtuosidade do papel.
A Wiliam Christie já se lhe ouviram em Haendel direcções mais vigorosas (é mesmo um especialista), o que é tanto mais estranho, quanto La Scintilla, o agrupamento barroco da Òpera de Zurique, tem melhores capacidades do que aqui deixa ouvir de modo um pouco aquém da beleza plástica da obra, como é estranho que, sendo Christie um consumado director de vozes, se mostre ainda assim incapaz de moldar a vocalidade de vários (quase todos) os solistas. É a presença em cena da Semele da Bartoli que tudo transfigura.
A Semele conta com um dos registos mais “anómalos” da discografia haendeliana, com Kathleen Battle (sim, essa, imagine-se!), Marilyn Horne e Samuel Ramey, com uma orquestra “moderna”, a English Chamber Orchestra, e direcção de John Nelson (DG). Em termos musicais globais é essa a gravação a reter. Mas, e apesar de todas as reservas, esta memorável interpretação da Bartoli, a possibilidade de dispor de uma realização cénica de tão insólita obra e, ainda, o facto de com esta ficarem disponíveis em dvd produções teatrais de todas as três oratórias não-biblícas de Haendel, faz com que não se possa deixar de considerar este registo – e de, com prudência ainda, o recomendar.
Mortal amada e amante de Júpiter, Semele perde-se pela ambição desmedida de alcançar a divina imortalidade. Quanto à Semele da Bartoli, essa é mesmo divinal.
No dia do derradeiro concerto de Alfred Brendel, em Viena
A capa desta caixa, aliás as capas, exterior e interior, bem como as fotos do livrete, induzem em erro: são fotos recentes de Alfred Brendel, quando as gravações registadas nestes cinco dvds datam de há 30 anos, isto é de meados dos anos 70.
Devidamente estabelecidos os factos, estes, longe de diminuírem o valor do testemunho, pelo contrário tornam-no mesmo mais precioso – ouso mesmo dizer, pelas razões que explicarei, como um dos intrinsecamente mais valiosos testemunhos de arte pianística publicados em dvd, e que só em dvd podiam ser publicados, malgrado a mediocridade da realização televisiva.
Recordo que Brendel iniciou a sua carreira em 1948. Desde cedo, é certo, dedicou-se a Beethoven e Mozart (e continuo a ter – como tive aliás ocasião de lhe dizer – uma intensa relação afectiva com os seus primeiros registos de concertos do segundo, os discos que na adolescência me fizeram verdadeiramente descobrir Mozart, e no tocante a este compositor ainda, continuo a pensar que o seu disco em duo com outro pianista, hoje pouco lembrado, Walter Klien, é uma peça a considerar na discografia geral do autor), afinal os dois compositores entre outros canónicos, mas é curial também lembrar factos que hoje muitos nos podem espantar, como que a sua 1ª gravação foi do Concerto nº 5 de Prokofiev, que se dedicou aos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky ou a Islamey de Balakirev, em suma a um repertório virtuosístico, ainda que o inevitável Liszt fosse já então por ele abordado numa perspectiva mais abrangente e menos puramente de fogos de artificio – para se ter a concreta noção pode-se ouvir a recente colectânea completa das gravações, a preço muito acessível, “Young Brendel”.
Mas nos anos 70, Alfred Brendel “reinventou-se” ou consagrou-se como o Brendel que tanto viríamos a admirar, e a este respeito é pertinente abrir um horizonte mais geral.
De facto não foi assim há tanto tempo, 30 anos, mas hoje é de tal modo uma evidência que tendemos a obliturar a contextualização de um facto da maior importância para a arte pianística e para a arte da interpretação musical: nos anos 70, dois pianistas, Alfred Brendel e Maurizio Pollini operaram por assim dizer um “corte epistemológico”, com interpretações muito mais “pensadas” analiticamente e, quando caso, fundadas em pesquisas musicológicas. A contextualização e identificação deste “corte” de tão vastas consequências suscita aliás duas questões colaterais: 1) dificilmente é apenas coincidência que tenha ocorrido no momento de eclosão da “nova música antiga”, filológica e historicamente fundada, e 2) ambos os pianistas se interessaram também por música mais recente no tempo, sendo mesmo que os dois, Brendel e Pollini, foram quais “apóstolos” do Concerto de Schönberg, Pollini tendo-se também dedicado mesmo à música contemporânea (Stockhausen, Nono) que se Brendel não praticou seguiu curioso nalguns casos, como o dos Estudos de Ligeti.
Haverá sempre quem toque ainda como se esta mutação não tivesse existido mas, directa ou indirectamente, a maioria dos pianistas posteriores, dos actuais pianistas portanto, é devedor deste decisivo “corte epistemológico” operado há 30 anos por Brendel e Pollini – por isso parece uma evidência quando afinal esta radical alteração foi ainda há relativamente pouco tempo.
O repertório em que os dois pianistas eminentemente assinalaram um tal “corte” foi o ciclo beethoveniano e as obras de Schubert.
Claro que no tocante a Schubert havia o exemplo precursor de Arthur Schnabel, desde os anos 30, tinha havido Wilhelm Kempf e sobretudo o maravilhoso Rudolf Serkin, mas é importante frisar que Brendel e Pollini iriam, facto inaudito, colocar as tão contestadas ao longo do tempo três últimas Sonatas de Schubert ao nível das suas homólogas de Beethoven – Brendel afirma aliás essa sua convicção nesta série, no dvd 4, na apresentação da Sonata D. 958, a 1º das três últimas.
Vamos então aos factos: estes cinco dvds recolhem um conjunto de 13 programas feitos para a Rádio de Bremen em associação com uma produtora televisiva, em meados dos anos 70, como se disse, e para além da qualidade das interpretações, por vezes excepcional, como as da Sonata D784, da op. 42 D 845, da op. 53 D 850 “Gastein”, da D. 894, da D. 959 ou dos Impromptus, é uma lição analítica absolutamente magistral
Iimporta aliás notar que no momento porventura mais elucidativa do projecto, a introdução à penúltima Sonata D. 959, Brendel explica com assinalável clarividência as razões da “démarche” : “sempre me preocupei em saber o que distingue uma obra-prima das obrras de um compositor menor”. Como se “racionaliza” essa diferença (e uma tal “racionalização” foi crucial ao tal “corte” por isso mesmo “epistemológico”)? Daí surgem a explicação e os detalhes.
Diria mesmo mais: a disciplina de “análise musical” é muitas vezes árida, mais, o seu uso na música contemporânea tornou-se muitas vezes um exercício de legitimação que quase se diria dispensar o real acto de concretização da obra, de a tornar pública através de uma real interpretação. Ao longo das introduções, mas em particular neste momento no último dvd introduzindo a Sonata D. 959 dir-se-ia que a lição de Brendel é tal modo elucidativa que mesmo os alunos de “análise musical” lhe deviam atender.
Este documentário é verdadeiramente precioso, porque tem uma única presença real, a do próprio Olivier Messiaen, dele e das suas obras.
São dos mais qualificados os intérpretes que vemos e ouvimos, Yvonne Loriod, Pierre Boulez, Pierre-Laurent Aimard, Seiji Osawa ou José van Dam, todavia, contrariamente a usos mais habituais em documentários, eles não dão outro testemunho senão o da sua condição de intérpretes. Pesem ainda algumas imagens originais, como a desse Monte Messiaen no Utah, em homenagem ao facto desse vasto e impressionante espaço ter inspirado a Messiaen uma das suas obras maiores, Des Canyons aux étoiles, ou então imagens de interpretações das obras, com destaque para as da célebre produção da ópera Saint François de Assise em 1992, em Salzburgo, encenada por Peter Sellars (espectáculo deslumbrante, memória pessoal fortíssima, que essas imagens reavivam), pesem essas imagens ou algum uso, parco, da “voz off”, o essencial é uma montagem de documentos de arquivos com Messiaen, captados entre 1965 e 1987. É a sua presença a razão de ser do documentário.
Há momentos verdadeiramente extraordinários, do ponto de vista de elucidação das características que sabemos terem sido as suas, como toda a parte inicial sobre os pássaros e a ornitologia ou o extracto de uma aula em que Messiaen debate com os seus alunos logo a obra que mais decisivamente o marcou, o Pelléas et Mélisande de Debussy. Há o modo como ele fala da sua fé, das cores, do Oriente, da sua posição de organista ou dos instrumentos de percussão.
O documentário intitula-se Liturgia de Cristal, que é citação do 1º andamento do Quator pour la fin du Temps, referido à passagem do Apocalipse em que fala de um anjo “e sobre a sua cabeça estava o arco-íris”; é justamente a noção das cores de Messiaen que melhor transparece. Notem-se a propósito três afirmações: “Posso ser tonal, modal, tudo o que quiserem, de facto sou sobretudo um colorista”; “sou compositor, ritmista, ornitólogo”; “os pássaros são artistas que são como eu sensíveis à cor”.
Mas além dos pássaros havia a Fé, ou melhor a crença religiosa católica (“croyant”, repetia ele insistentemente), factor que em si mesmo não é dado musical. Como o documentário explica, a sua posição de organista na Igreja da Sainte Trinité em Paris foi o modo concreto de, como músico, participar na liturgia, mas o órgão em si mesmo foi também o seu “laboratório”, o instrumento em que praticou e experimentou durações, cores e ressonâncias.
Não houve apenas o cristal, houve os vitrais de cores de música, as catedrais sonoras e os grandes espaços que Messiaen ergueu.
Ter um tão elucidativo documento sobre tão singular e genial é facto precioso – de conhecimento indispensável mesmo.
A prática cada vez mais corrente de recurso á edição de discos “live” permite-nos com frequência reavivar também momentos privilegiados da memória do espectador. Por definição, é o “live” a base da edição em dvd de óperas, e tanto mais ocorre então o reavivar de memórias, com a possibilidade acrescida de transmitir a outros os dados da memória e do reencontro.
Eis agora editada uma minha muito grata memória, o Tristão e Isolda encenado por Heiner Müller, a última grande recordação que guardo do Festival de Bayreuth.
Para já, a rememoração, com a crítica então publicada.
ISOLDA ENTRE RUÍNAS
À saída, terminada a representação, os comentários incidiam sobretudo na encenação. O tom, em geral de desaprovação, era partilhado por um espectador, que no entanto acrescentava: “mas não pateei”. Não lhe tinha faltado o desejo, percebia-se, mas prudentemente recordou-se que “também o Anel de Chéreau foi tão pateado e agora é considerado um clássico”. Este ano o Festival de Bayreuth é “ohne Ring” sem a tetralogia O Anel do Nibelungo. Para os mais devotos wagnerianos, será sempre a experiência de uma falta. Pior ainda, a nova encenação deste ano de Tristão e Isolda foi confiada a Heiner Müller, no passado de todo alheio a Wagner e até, supremo horror!, terão pensado alguns, vindo de uma Alemanha que foi “de Leste”.
A pateada era previsível, mas, como prudentemente sugeria o tal espectador, tradição de pateadas não falta em Bayreuth, muitas vezes para com produções depois recordadas como marcos da história do festival, caso da tal Tetralogia do centenário, a de Chéreau e de Boulez, objecto de um clamoroso protesto na estreia para vir a ser saudada com uma hora de aplausos quando da despedida, quatro anos volvidos. A inovação provoca resistências, mas na continuidade anual dos festivais gera uma nova tradição.
Era justamente a mesma equipa Chéreau/Boulez, que se esperava para um novo Tristão, os rumores tendo mesmo chegado a apontar para 1991. Afinal foi dois anos mais tarde, o maestro e depois o encenador tendo-se apartado do compromisso que veio a recair em relações próximas, Müller (apontado como autor, com Boulez, de uma ópera a vir) e Barenboim (com o qual Chéreau já trabalhou num Wozzeck e que reencontrará no ano próximo em Salzburgo para o Don Giovanni). (*)
Daniel Barenboim é o elemento da continuidade, já que se estreou em Bayreuth há 12 anos, por coincidência numa situação paralela, um ano “ohne Ring” (terminado o de Chéreau/Boulez) em que a nova produção foi o Tristão (**) que dirigiu, sendo depois responsável musical de um outro Ring, o que no ano passado se completou. Heiner Müller é a novidade, e tanto mais quanto o dramaturgo pouco se tem dedicado à encenação, a não ser dos seus próprios textos, e nunca antes tinha experimentado a ópera. Semi-novidade é o elenco, com alguns dos cantores mais presentes em recentes edições do festival, mas novos vindos a estes papéis como os protagonistas, Siegfried Jerusalem e Waltraud Meier, Tristão e Isolda.
Ansiedade e geometria
Não por acaso, a pateada seria menor no final que após o Acto II, quando era máxima a desorientação dos espectadores habituados à imagem romântica da noite de amor de Tristão e Isolda. Tão resolutas manifestações a dois terços do caminho traduzem a decepção por não se encontrar o já conhecido, que para se compreender a novidade é necessário esperar pelo fim do trajecto.
O encontro Wagner/Müller era intrigante. O resultado é caracteristicamente “mülleriano”. O autor de A Missão, de Morte na Germânia ou de Quarteto de novo imaginou em cena, por interposto Wagner, as ruínas de uma expectativa, um velho mundo em destroços mas ainda suficientemente opressor para fazer desmoronar a possibilidade de uma outra vida. Dois conceitos são fulcrais ao entendimento de Müller: “angst” e “geometria”.
O mundo em que habitam Tristão e Isolda é fechado, claustrofóbico. O cenário básico de Erich Wonder é um cubo, rigorosamente ordenado no Acto I com o espaço de Isolda delimitado ao nível inferior, no Acto II o encontro dos amantes ocorrendo entre referências militarizadas, com centenas de couraças depositadas, formando quadrados e triângulos. As alterações neste espaço são mínimas, apenas as que decorrem de telas (cada acto abre com um ecrã branco) e da prodigiosa luminotecnia de Manfred Voss, de dominante vermelha no Acto I e azul no II.
Elemento ainda mais intrigante nesta equipa é Yohji Yamamoto. O costureiro japonês desenhou figurinos negros, o carácter marcial e frio pretendido por Müller sendo reforçado por enigmáticas armações que as personagens trazem aos ombros, próteses impostas por uma ordem, das quais Tristão e Isolda se libertam quando, bebido o filtro mágico pela primeira vez, se contemplam em êxtase, instaurando a desordem.
O filtro, justamente. Brangânia mudou-o, dando a beber o filtro do amor em vez do da expiação e morte. A troca determina as subsequentes peripécias dramáticas, diferindo o momento da morte, mas o dado fundamental que Müller retém é o recurso de Isolda a um elemento mágico, de uma outra ordem, e a determinação com a qual ela o compartilha com Tristão. Ela é a figura central, o corpo em “angst”, inquieto, ansioso, que detém o recurso mágico, um instrumento da vingança. A troca dos filtros abrirá afinal a demonstração de que a ânsia amorosa não pode ser consumada naquele mundo e, se modifica as vias da expiação, não deixará de vir a propiciar o triunfo de Isolda, a sua vingança.
A perdição consumada
Paradoxal vingança , pois que sobre Trsitão, que a tinha enganado, Isolda triunfará precisamente porque lhe suscita a paixão, o sofrimento e a expiação.
No Acto III, o domínio de Tristão é um castelo em ruínas. Do cimento das paredes (esse cimento característico na obra de Müller) cai o estuque, os destroços acumulam-se. E é então que Siegfried Jerusalem, tardiamente vindo a Tristão, supera os limites evidenciados no Acto II, convocando todas as suas capacidades, desafiando o corpo que Müller quis prematuramente envelhecido, numa grande cena de sofrimento e delírio. Mas o mais surpreendente é a chegada de Isolda. À imagem tradicional a morte de amor, qual orgasmo “post mortem”, substitui-se majestaticamente uma figura erguida à frente da cena e o enunciado final da perdição: se lhe foi impossível consumar a paixão naquele mundo, Isolda vingou-se trazendo a ruína e redimindo Tristão. É ela, prova então feita, o centro do drama.
Corpo e voz da mais admirável interpretação dos anais de Bayreuth nos últimos anos, a de Kundry no Parsifal, Waltraud Meier corria risco considerável como Isolda, em temerária passagem de “mezzo” a soprano. Nos agudos, ou no balbuciar deles, se ouve o risco, mas a determinação, ansiedade e erotismo da sua presença tornam esplendorosa esta Isolda que consigo arrasta Tristão — o protagonismo sendo aliás reforçado pelos limites do Mark de John Tomlinson e da Brangânia Uta Priew, aos quais se preferirá o Kurwenal de Falk Struckman e em duplo desempenho como Melot e marinheiro, de uma das raras revelações recentes de Bayreuth, Pol Elming.
Na sua presença continuada Daniel Barenboim confirma um equivoco que está a ser sistemático em Bayreuth, na escolha dos directores musicais. No seu Tristão, como no Anel, há acasionais momentos interessantes, sobretudo os mais líricos e os “pianissimi”. Mas Barenboim não domina os grandes arcos wagnerianos e as sonoridades que ele obtém são frequentemente ásperas. O seu mérito, inegável, é o de ter sido “o garante” desta equipa, a ele se tendo reunido de novo o par Jerusalem/Meier (que dirigiu já como “Parsifal” e Kundry , recem-vindo) , Heiner Müller, aquele por quem o escândalo chegou mas que afinal veio trazer a Bayreuth uma inteligência cénica que não se encontra noutras produções.
Mesmo que, talvez por menor experiência, falte ainda a Müller concretizar melhor a proposta, designadamente no trabalho com os actores/cantores, a depuração quase minimal ou as luminosidades do seu trabalho não deixam de invocar o exemplo pioneiro de Wieland Wagner. E se Müller e um Bob Wilson (noutras paragens encenador de Parsifal — para o qual, em Bayreuth, foi vetado pelo maestro James Levine — e do Lohengrin) (***) fossem afinal os prossecutores desse momento de inovação a que, por obra de Wieland Wagner, chamou “nova Bayreuth”?
“Público”, 11-08-93
(*) Como se sabe, Patrice Chéreau e Pierre Boulez reencontraram-se no ano passado numa produção de Recordações da Casa dos Mortos de Janácek, recentemente editado em video e de que aqui em breve falarei. Também no ano passado, em Dezembro, Patrice Chéreau encenou por fim o Tristão, justamente com direcção de Barenboim, na abertura da temporada do Scala. O Wozzeck de Chéreau/Barenboim, que já havia sido editado em dvd, acaba de ser reeditado, e esperemos que seja também lançado em Portugal.
(**) Essa outra produção de Tristão e Isolda, encenada por Jean-Pierre Ponelle, e com René Kollo e Johanna Meier, foi também editada em dvd, e iguralmente a abordarei em breve
(***) Entretanto Wilson encenou O Anel, co-produção da Ópera de Zurique e do Châtelet.
com Dmitri Hvorostovsky, Renée Fleming, Ramón Vargas
encenação de Robert Carsen
direcção de Valery Gergiev
produção da Metropolitan Opera House
2 dvds Decca/Universal
Chega presto este registo das representações no Met em Fevereiro do ano passado, facto que provavelmente se prende com a política encetada pelo novo “general manager” Peter Gelb (que fora responsável pela Sony Classicals Records) no sentido de nova formas de difusão – sinal dessa política foi o início de transmissões televisivas directas em alta-definição para um conjunto de salas de cinema com equipamento digital, e que inclusive já abrange mesmo salas europeias.
Nos arquivos, encontro a crítica de Anthony Tommasini no “New York Times” de 12-02-07, “Star power, Charisma and Ardor in ‘Onegin’”. “Star power” pois: estreias no Met de Hvorostovsky e Gergiev nesta ópera, estreias aí de duas vedetas, Fleming e Vargas, numa ópera russa.
A encenação é de Robert Carsen e data de 1997. Mas uma tão forte aposta do Met não teve mesmo assim o próprio encenador a dirigir o “revival”, sinal suficiente do “sub-sistema Carsen”, que muito produz e vai entregando a assistentes os cuidados de reposições. É uma encenação bastante mais depurada que o habitual, por vezes com o espaço vazio, dependendo fortemente de um admirável trabalho de luzes do grande Jean Kalman, mas ainda assim com esses sinais tão distintivos de Carsen que são as cadeiras (basta atentar ao Acto I da Tosca ainda em cena no São Carlos), só que desta feita com uso inteiramente justificado nas cenas de baile.
Por falar em bailes – o espectáculo é-nos introduzido por Mikhail Barashnykov, como que a reforçar a associação “Tchaikovski-ballet”, o que no caso é inteiramente descabido, mas é não deixa de indiciar uma concepção vigente no Met, de “star power” também, e de um luxuoso “charisma”. Todavia, por entre tanto luxo, não se deixa também a notar a falta concreta de um encenador na direcção dos actores/cantores, quer no tocante ao modo como Fleming sobrecarrega a sua composição da jovem Tatiana no Acto I, quer nos esgares de Hvorostovsky no Acto III.
Fleming sobrecarrega pois – a sua voz cremosa e sensual é adequada no Acto III, mas desajustado no I., em especial na grance cena de Tatiana, a da carta. Diga-se ainda assim que não é só ela, pois que a Olga de Elena Zaremba é uma matrona. A grande surpresa é o sensibilíssimo Lensky de Ramón Vargas, um tenor que se iniciou no repertório bel-cantista e tem vindo a evoluir para papéis mais líricos.
Ainda assim, inevitavelmente, os atractivos maiores são as presenças dos dois russos, Gergiev e Hvorostovsky, com uma direcção ardente do primeiro e, pesem ainda os tais esgares, o segundo no seu papel de eleição – e se existe um dvd do Kirov (Kirov ainda, antes de voltar à designação de Mariinsky) com Sergei Leiferkus, é inteiramente justificado que possamos enfim possuir ter o registo do incomparável Onegin actual que é Hvorostovsk registo em dvd, que em cd já existia, com um memorável confronto com o Lensky de Neil Shicoff, na gravação dirigida por Semyon Bychkov (Philips).
com Catherine Malfitano, Bryn Terfel, Richard Margison
Encenação de Nikolaus Lehnoff
Orquestra da Concertegebow de Amsterdão
Riccardo Chailly
Realização de Misjel Vermeiren
DVD Decca/Universal
Esta é uma Tosca de antologia, uma das grandes realizações da ópera de Puccini e um dos mais exaltantes dvds de ópera!
Em 1992 Catherine Malfitano e Bryn Terfel afrontaram-se numa memorável encenação da Salomé de Strauss – em 92 e depois, que a produção viajou muito a seguir à estreia no Festival de Salzburgo, na que foi então um dos mais exaltantes momentos da minha experiência de espectador. Seis anos depois encontraram-se novamente nesta Tosca, na Ópera dos Países Baixos, em Amesterdão.
A aproximação justifica-se e não só pelos dois cantores, ainda que nestes termos particulares por causa deles. Cinco anos apenas separaram as duas obras: a Tosca é de 1900, a Salomé de Richard Strauss de 1905. Ambas são ópera de um erotismo lascivo e de uma sensualidade inebriante. Ora, esta é uma Tosca em que o choque erótico, ou mesmo descaradamente sexual, é apresentado de modo selvático e em rigor mesmo de bestialidade.
O Scarpia de Terfel é o inverso complementar do seu Jokanaan da Salomé: é um “selvagem”, só que no caso um torcionário que usa o poder sem escrúpulos no intento de alcançar o objectivo de posse sexual, enquanto o outro era o objecto do desejo de Salomé.
Lehnoff e os seus colaboradores imaginaram uma dança sexual e mortal – dança de Eros e Tanatos, à maneira do que de modo tão exponencial ocorre na Salomé. Os espaços dos três actos são claustrofóbicos, armadilhos mortais – “todes kammer”, “câmara da morte”, explica mesmo Lehnoff no documentário em extra. De uma turbina sobressai uma hélice, omnipresença ameaçadora, que em vez de sugerir um ventilador e ar mais reforça a angústia.
Neste quadro, o afrontamento de Tosca e Scarpia é a dança mortal dos sentidos, que os que intérpretes conduzem ao paroxismo. A interpretação de Terfel – que se estreava no papel – é absolutamente colossal E se a Tosca de Malfitano não tem a estatura das maiores, Olivero ou Kabaivanska para além do caso à parte de Callas, e é mesmo estridente, a sua passionalidade é de um domínio quase histérico (em que portanto mesmo as estridências não destoam), mais fazendo a tal aproximação à Salomé. Decididamente secundário face a um tal confronto de “monstros” – “monstros sagrados”, o que ainda mais salienta a coerência de leitura da obra – é o Cavaradossi de Margison, que no entanto não decepciona, enquanto raras vezes se poderam assim notar as personagens secundárias de Angelotti e Spoletta, este qual chefe de um bando de vampiros, de “nosferatus”, acólitos do sedento Scarpia – e, tanto mais a propósito, é preciso acrescentar que a realização televisiva é invulgarmente atenta.
Mas há ainda outro protagonista nesta realização magnífica: a superlativa direcção de Chailly à frente de – ponto capital – uma Orquestra da Concertgebow que confere à partitura a sua luxúria sensual. Desde que deixou a direcção do Teatro Comunal de Bologna e rumou para Amesterdão, e mais recentemente para Leipzig, Chailly dirigiu ópera poucas vezes, por razões que aliás ele refere no documentário extra – cada vez que dirige é de um empenhamento estenoante e é difícil encontrar o equilíbrio que busca entre tradição e renovação. Mas se de quase cada vez que o fez atingiu patamares de excelência, desta vez a sua direcção é mesmo magnificente.
Diga-se de novo: esta é uma Tosca de antologia, uma das grandes realizações da ópera de Puccini e um dos mais exaltantes dvds de ópera!
Há uma forte tendência portuguesa, e sobretudo lisboeta, a reagir a qualquer imagem de "nós" devolvida pelo exterior. Como escrevia Eduardo Prado Coelho na sua crónica a propósito de Masurca Fogo, "algum público sentiu-se visado no seu estatuto de sublime alfacinha, porque havia homens marialvas, pedaços de fruta pelo chão, a estupidez televisiva, tudo coisas que de um modo ou de outro já aparecem noutros espectáculos de Pina Bausch, mas que ganhariam uma conotação negativamente portuguesa". No desejo (e felizmente que ele existe) de cosmopolitismo e na recusa do very typical, há por vezes tendência a negar as marcas de uma diferença.
Mas há aqui um outro equívoco: Pina Bausch não faz "retratos" de cidade. Com inconfundível génio, ela inspira-se no seu sentir de um lugar, torna-o numa coisa mental que transfigura em transbordante energia dos corpos.
"Quando é que saberemos encontrar no olhar dos outros o que há de puro e expansivo no nosso olhar?", perguntava Prado Coelho. Retirando o "quando", é caso para dizer que houve alguém que soube: Fernando Lopes ao realizar Lissabon, Wuppertal, Lisboa, um documentário que acompanha o trabalho de criação de Masurca Fogo desde o workshop inicial em Lisboa até à estreia em Wuppertal.
Coisa curiosa: Fernando Lopes é o cineasta que melhor sabe filmar Lisboa; e, no entanto, compreendendo o que no trabalho de Pina Bausch há de coisa mental e gesto físico, concentrou-se completamente nos interiores, no trabalho concreto (com a única excepção, o único plano que me suscita reserva no filme, de uma tertúlia taurina). Claro que os bailarinos estão presentes, mas não como, por exemplo, em Un jour Pina a demandé de Chantal Akerman. Eles não explicitam o trabalho com ela, que domina calma e soberana, maga, deusa, feiticeira - e é óbvio que Lopes se deixou enfeitiçar.
E, no entanto, é interessante notar que o olhar dele está lá. Desde Belarmino que há na sua obra uma musicalidade que em momentos de Nós por cá Todos Bem e Crónica dos Bons Malandros aponta explicitamente num sentido coreográfico. O domínio da montagem, magistralmente patente em Uma Abelha na Chuva,revela-se de novo em Lissabon, Wuppertal, Lisboa - e que incrível terá sido montar num espaço de tempo curtíssimo 45 minutos de muitas horas de registo.
Se calhar é mesmo o seu filme mais belo desde Uma Abelha na Chuva. Pelo menos foi o que mais me tocou, talvez porque ele tenha sido tocado pela graça de Pina Bausch. E como Masurca Fogo é uma obra esfuziante e eufórica, assim o filme nos deixa felizes, ao poder, pela sua visão, compartilhar da experiência transfiguradora de uma arte sublime.
“Público” 16-05-98
Lissabon, Wuppertal; Lisboa foi agora de novo editado em dvd pela Midas, com depoimentos de Maria João Seixas e Augusto M. Seabra
Berlin Alexanderplatz estreou no Festival de Veneza de 1980 – na minha memória pessoal também o momento em que conheci Rainer Werner Fassbinder. Logo depois, no entanto, quando da sua exibição televisiva, em episódios semanais, a obra foi violentamente atacada. Mesmo se em parte as reacções negativas tiveram origem na declarada hostilidade das publicações do grupo Axel Springer, contra o qual Fassbinder tinha tomado posição, como muitos outros artistas e intelectuais alemães, não custa admitir que, apesar da opção sistemática por enquadramentos aproximados mais conformes ao “pequeno écrã”, a lógica narrativa centrífuga da obra é de molde a provocar desorientação e irritação num público televisivo formatado por códigos “mainstream”.
(Note-se que uma mesma apologia da banalidade é retomada na mais recente diatribe do prof. Vasco Correia Guedes, vulgo Pulido Valente, justamente contra Berlin Alexanderplatz, na “Atlântico” deste mês, declarando-o representativo de “todos os vicíos do cinema independente”, nomeadamente por ser lento, o que podendo ser de pasmar vindo do argumentista de um filme tão académico e soporífero como Aqui d’El Rey! – ou Lieutenant Lorena na sua versão de série televisiva -, até abre hipóteses de um indirecto elogio).
Todavia é também indiscutível que um dos aspectos capitais da obra, a (magnífica) fotografia extremamente sombria e com tons degradados de Xavier Schwarzenberger, exige a maior definição da projecção cinematográfica e não deixa de colocar problemas ao visionamento num ecrã televisivo.
Há precisamente um ano atrás, no Festival de Berlim, foi apresentada a versão restaurada da obra. Recentemente, com base nesse trabalho restaurado, a Prisvídeo lançou a obra no mercado português, numa caixa de 6 dvds – edição preciosa, completada com dois relevantes complementos de enquadramento histórico, mesmo que ainda assim se possa notar a falta de mais algum aparato crítico, um livrete inclusive, que neste caso seria bem justificado.
Sucede que agora, a partir de hoje, em epílogo ao ciclo integral, a Cinemateca Portuguesa também apresenta Berlin Alexanderplatz .
Continuo firmemente convicto que a projecção em sala é uma condição ontológica do cinema. Não invalida isto as muitas possibilidades de acesso e de revisão fornecidas pelas edições em dvd. Mas mesmo a própria visão em dvd, que é de uma outra ordem (até porque raramente concentrada e na totalidade da sequència temporal) pode ter uma diferente intensidade de aproximação se houver uma memória concreta da experiência em sala.
Para os que não conhecem Berlin Alexanderplatz nos termos em Rainer Werner Fassbinder concretamente concebeu essa peça central da sua obra, “um filme em 13 partes e um epílogo”, é pois tanto mais importante esta oportunidade agora na Cinemateca, para depois sim retornar à edição em dvd, que neste imenso mosaico há por certo tanta coisa para ainda descobrir e a que retornar.
Berlin Alexanderplatz
Cinemateca Portuguesa: segunda 11, partes 1 e 2; terça 12, 3, 4 e 5; quarta 13, 6, 7 e 8; quinta 14, 9, 10 e 11; sexta 15, 12 e 13; sábado 17, epílogo – sempre às 22h.
Quando em Outubro passado apresentei JLG/JLG : Autoportrait de Décembre no ciclo “Diários e Autoretratos” integrado no DocLisboa, desde logo chamei a atenção para a feliz coincidência propiciada pela apresentação de Scenário du film “Passion” na exposição “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” no Museu do Chiado. Eis então que as felizes e frutíferas coincidências se sucedem, e de Godard surgiram entretanto editados no mercado português, e entre outros, os dvds de Paixão, Eu vos saúdo Maria e as Histoire(s) du Cinéma, o primeiro pela Universal, os segundos pela Midas.
“Moi, je suis une image”, disse Godard em entrevista aos “Cahiers” (nº316, Outubro de 1980), quando do seu dito “regresso ao cinema” com Sauve qui peut (la vie), depois do período “militante” e do vídeo. O autor que, mais que qualquer outro, sempre pautara a sua obra pelo duplo imperativo da homenagem (a dedicatória à Monogram Pictures de “série b” logo em O Acossado) e da ruptura, e que convocara mesmo um dos mestres maiores, Fritz Lang, para o porventura seu filme máximo dos anos 60, O Desprezo, confrontava-se pois com o sua próprio estatuto icónico.
Assinalada retrospectivamente a devida importância dessa declaração e dessa entrevista (há um texto magnífico de Raymond Bellour incluído em L’Entre-Images, ed. La Différence, 1990), convirá então sobretudo assinalar dois eixos, ou talvez antes três.
O primeiro eixo é uma tendência à auto-exposição e a auto-análise filmíca, apenas com paralelo noutro autor a que curiosamente Godard nunca foi em especial afecto, Orson Welles, o Welles de Filming Othello e de F for Fake, Welles que todavia representa na história do cinema, e na história da recepção pública da arte cinematográfica, uma das figuras por excelência do “demiurgo”, a outra sendo Hitchcock.
As figuras da auto-exposição na obra de Godard desde então são de diverso tipo, incluíndo a derrisão auto-paródica, tão tocante no tão pouco-amado Soigne ta droite, catastrófica no malfadado King Lear, como a declarada auto-exposição nos casos de Scenário du film “Passion” e JLG/JLG : Autoportrait de Décembre (“autoportrait, pas une autobiographie”, esclarece ele, de algum modo num impulso paralelo ao de Roland Barthes por Roland Barthes). Mais genericamente, a enunciação do “Eu” inscreve-se numa explicitação do estatuto do discurso culminando nas Histoire(s) du Cinéma.
Dir-se-á também, segundo eixo, que de “Moi, je suis une image” decorre uma muito particular apropriação do mote de Rimbaud “Je est un Autre”: Godard “é” uma pessoa e um significante, Godard “é” JLG/JLG, “JLG” e “JLG”, Jean-Luc Godard e as “imagens de JLG”, a pessoa de Jean-Luc Godard no seu jogo com o cinema e as imagens “de Godard”.
Insisto: assinalada retrospectivamente a devida importância dessa declaração e dessa entrevista quando de Sauve qui peut (la vie), ganha outra nitidez o passo seguinte, ou melhor, os passos imediatamente seguintes, os de Passion e Scenário du film “Passion”, isto é, de um filme em torno da rodagem de um filme (como O Desprezo) e do singularissimo e extraordinário caso de um ensaio que, ao contrário do que o título Scenário du film “Passion” faz supôr, não foi a apresentação de um projecto mas uma análise posterior – é um filme “aprés” e “d’aprés”.
Mas com Passion e o seu trabalho de estúdio em torno dos “tableaux vivants” a partir de Delacroix, El Greco, Rembrandt, Goya ou Ingres, Godard confrontou-se directamente não apenas com a matéria da “criação artística” mas também com a da iconologia, do “museu imaginário” e da memória da arte. Daí que eu tenha feito a ressalva de que a partir da declaração “Moi, je suis une image” há sobretudo dois eixos que convirá assinalar, ou talvez antes três. O terceiro será então o da iconologia e, a ele associado, o da criação, ou antes, da criação e da Criação.
Em Scenário du film “Passion” Godard confronta-se directamente ainda com um outro quadro, com a imagem de um outro quadro, o “Baco e Ariana” de Tintoretto, como se confronta com a imagem de Hanna Schygulla no seu próprio filme Passion. Repare-se bem como se acerca delas, todavia na impossibilidade da relação fisíca com o “interior” dessas imagens. “Flash-forward” então para Eu vos saúdo Maria e Joseph – a mão de Joseph - que se acerca do ventre de Marie, todavia na impossibilidade fisíca e racional de se abeirar do seu “interior”, no mistério de uma concepção, qual interrogação agnóstica sobre a Criação e a Imaculada Conceição, esta uma iconologia retomada em Passion segundo El Greco.
Com Passion se iniciou portanto uma aventura iconológica que se aproximou explicitamente da iconologia católica em Eu vos saúdo Maria (ou a descoberta por um homem de cultura protestante, um criador de imagens, dessa iconologia católica), percurso conducente às Histoire(s) du Cinéma ou mesmo às “histoire(s) de l’art”, atendendo nomeadamente ao transcendente (e entenda-se este termo em todo o seu sentido) The Old Place feito para o MoMA (dvd ECM, distribuído pela Dargil), o que fez Jacques Rancière dizer haver mesmo em Godard uma “religion de l’art”.
Scenário du film “Passion”, esse intento de “voir le passage de l’invisible au visible”, foi afinal também o “número zero” das futuras Histoire(s). Paradoxal e extraordinário projecto: retornar à obra própria já criada, para colocar uma hipótese alterando os termos da lógica factual: .”Si l’invisible était visible qu’est-ce qu’on pourrait voir? Voir un scènario”, num jogo especulativo e auto-especulativo - “começo a pensar que para descrever a realidade é preciso descrever a metáfora”. É um retorno à obra e à criação por parte do próprio demiurgo, do paradoxal demiurgo, não para dizer como fez, mas para estabelecer uma relação, um jogo, “un jeu”, com essa obra feita: “Voir. Et tu te retrouves, et je retrouve, retrouve, recherche.. .je me retrouve devant l’invisible”.
“Visible, invisible”, “je, tu” – “Je est un Autre” nesse jogo entre o visível e o invisível, o que é matéria icónica e o que é da ordem do Mistério, “Je est un Autre”, “L' Autre du Je(u)”.
Extraordinária obra este Scenário du film “Passion”, ponto nodal entre Passion, Je vous Salue Marie, JLG/JLG : Autoportrait de Décembre e as Histoire(s) du Cinéma.
Takeshi Kitano é um dos mais importantes autores recentes japoneses, totalmente desconhecido em Portugal, a não ser pela sua participação, no papel do Sargento Hara, em Furyo de Nagisa Oshima, cujo título internacional era uma frase por ele pronunciada: Merry Christmas Mr. Lawrence.
Actor e"entertainer" televisivo, Kitano atingiu a celebridade nos anos 70, como parte de um duo, os “Beats” - “Beat” Takeshi é o nome pelo qual continua a ser reconhecido pelo público japonês. Mas em 1989 Kitano haveria de surpreender tudo e todos com The Violent Cop, filme por ele protagonizado e dirigido, espécie de Dirty Harry/ Clint Eastwood japonês, obra de uma surpreendente mestria, em que o género de filmes de gangsters, dos yakusa japoneses, era o veículo para um relato de auto-destruição.
Se Kitano, ainda que operando dentro de uma tradição japonesa, tinha como parentes cinematográficos não só Eastwood como Jean-Pierre Melville (será um acaso que o mais importante título do realizador francês, Le Samourai, tivesse uma referência japonesa?), os sucessivos filmes mostrariam uma cada vez maior auto-destruição da sua "persona", como em Boiling Point, abstendo-se mesmo de aparecer em A Scene at the Sea, filme praticamente sem palavras, tendo como personagens principais dois adolescentes surdos-mudos.
Mas a reapropriação/descontrução mais admirável dos códigos dos filmes de yakusa ocorreria com Sonatina, em que a personagem de Kitano é conduzida ao suicídio. Como Eastwood, Kitano é um grande actor/autor que, trabalhando dentro das regras da indústria, soube afirmar uma personalidade fortíssima. Laborando dentro dos códigos de géneros específicos faz implodi-los. Talvez por isso Quentin Tarantino considere que ele e Kitano têm uma comum aproximação ao cinema.
Publicado no Catálogo do Festival Monumental-95
Takeshi Kitano foi um dos autores que tive a oportunidade de introduzir em Portugal, sempre no pressuposto de que a actividade crítica pode prosseguir na programação, que ao crítico cabe também “descobrir” e, tanto quanto possível, tentar apresentar concretamente em público as suas escolhas, ser “le passeur”, como dizia Serge Daney.
Se Kitano se veio depois a tornar-se mesmo num “autor de culto”, esses dois filmes nunca vieram, no entanto, a ser estreados comercialmente. Passados 12 anos, eis que são enfim editados em dvd pela Prisvideo, aliás pouco tempo depois de uma outra edição, da Midas, com A Scene at theSea/ Um Lugar à Beira-Mar e Getting Any/ Estás-te a Safar?, este já desse mesmo ano de 1995.
Com o posterior e fabuloso Hana-Bi, permanecem ainda estes primeiros filmes como os seus melhores – e são também uma declaração ética.
À falta da visão em sala, que é o espaço constituinte do cinema, possibilitam todavia os dvds a revisão, quando não às vezes mesmo a descoberta. E se Takeshi Kitano tem recentemente podido aparecer cada vez mais como um autor “cansado”, num exercício constante da auto-derisão que já se confunde com a mera paródia de si próprio, estes primeiros filmes eram já a declaração de uma estética de “haiku” cinematográfico, entre o confronto violento e do silêncio.