Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Haendel, heróis e heroínas

 

 

 

 
Haendel morreu célebre há 250 anos, e celebrado continuou a ser, historicamente o primeiro compositor de posterioridade ininterrupta, isto é o primeiro de quem as obras nunca deixaram de continuar a ser interpretadas e festejadas. E, no entanto, situação paradoxal, talvez nenhum outro compositor, à excepção de Mahler, “deva” tanto ao registo fonográfico. Contrariando a imagem do autor de uma solitária obra-prima, O Messias, contrariando a ideia de pompa que em Inglaterra se perpetuou em realização massivas com coros que por vezes chegavam às centenas de pessoas, não apenas de O Messias como de Judas Macabeu, Israel no Egipto, Joshua, Saulou Solomon, agora podemos reapreciar Haendel porque num período recente de cerca de 25 anos foram sistematicamente sendo disponibilizadas gravações que fazem com que hoje estejam editadas as suas 38 óperas e 26 oratórias – e, acrescente-se, um dos mais apelativos projectos editoriais em curso, na Glossa, é uma integral das cantatas italianas.
 
Atente-se aos números, 38 óperas e 26 oratórias. São a demonstração eloquente do género de predilecção do compositor. O alemão Händel desembarcou em Inglaterra em 1710, como compositor de ópera italiana, ópera séria evidentemente, já com a aureola dos sucessos de Rodrigo eAgrippina, e triunfou no ano seguinte com Rinaldo, primeira das seis “óperas mágicas” (Teseo, Amadigi, Orlando, Ariodante e Alcina são as outras), da ópera e da maquinaria e dos encantamentos e prodígios, que constituem a apoteose de toda a estética barroca da ilusão. E prodigioso compositor que num ano, em 1724/25, apresenta de seguida três grandes obras-primas, Giulio Cesare, Tamerlano e Rodelinda.
 
E compositor que escreveu para algumas das maiores vozes de então, o Senesino, a Cuzzoni, a o Bordoni ou a Durastanti, Mantagnana ou Anna Maria del Prado – donde desde logo se infere que para interpretar Haendel são precisas grandes vozes, grandes intérpretes, é preciso ter a noção clara da vocalidade; e assim também hoje, em tanto graças ao disco,podemos ter a percepção rigorosa de que ele foi um mestre do que é de facto o “bel canto”, o canto ornamentado e virtuosístico na expressão dos “affetti”. Na verdade a oratória, mais concretamente a oratória inglesa (já que no período romano compusera Il trionfo del Tempo e del Disingano e La Resurezione), surgiu a Haendel quase por acaso, com a Esther de 1732, escrita para o domínio privado de um protector, o Duque de Chandos, apenas ganhou relevo depois de apresentações públicas do Saul de 1739, e apenas se consagrou no entendimento do próprio autor com o triunfo do Messias em 1742, sucedendo-se à derradeira das óperas, a Deidama do ano anterior. Há certamente belíssimos “heróis” e “heroínas” em oratórias como Saul, Semele, Hercules, Belshazzar, Theodora ou Jephta, mas, pelos óbvios motivos expostos, é fundamentalmente nas óperas que se encontram os exemplos maiores.
 
 
 
 
São extractos de um texto sobre Haendel, Heróis e Heróinas em linha no sítio do Serviço de Música da Gulbenkian.

 

Purcell,uma discografia

 

 

 

Comecemos pois a discografia por aí, por Dido & Aeneas, obra muitas vezes gravada e em que várias grandes intérpretes se distinguiram. Mas, pesem ainda Tatiana Troyanos, Anne Sophie von Otter, Della Jones, Lorraine Hunt, Susan Graham e outras, houve uma intérprete de excepção na dimensão trágica do papel: Janet Baker, na sua primeira gravação, de 1962, dirigida por Henry Lewis (Decca).. Como concepção global são marcantes duas outras gravações, em tudo opostas, a aproximação à ópera para meninas de Andrew Parrott com Emma Kirkby e a mais terrificante das feiticeiras, Jantina Noorman (Chandos), e o fausto e dramaticidade de Christopher Hogwood com a Academy of Ancient Music e outra protagonista de excepção, Catherine Bott (Oiseau-Lyre).
Mas o teatro musical de Purcell está longe de se resumir à singularidade de Dido & Aeneas.
 
 
 
 
Extractos de Purcell, uma discografia, em linha no sítio do Serviço de Música da Gulbenkian

 

 

 

 

 

Purcell, sociologia de um génio

 

 

Henry Purcell (1659-1695) de quem ora celebramos os 350 anos do nascimento, constitui um daqueles casos da história da música a propósito do qual ocorre o intento de Norbert Elias sobre Mozat, “sociologia de um génio”. Génio precoce e de vida breve, 36 anos, e caso único de génio na música britânica entre o maneirismo da “idade de ouro” elisabetiana e jacobita e o século XX. Só esses três factos, a genialidade do designado “Orpheus Britannicus”, a brevidade da vida e o seu estatuto de caso isolado, são suficientes para o reconhecer mesmo entre os mais singulares autores da história da música europeia.
 
Mas Purcell foi também fruto de um quadro histórico e de circunstâncias várias. Quando nasceu vigorava ainda a “commonwealth” do puritano Cromwell, de um rigor e severidade tais que mantinha fechados os teatros. Mas logo no ano seguinte o pretendente Stuart regressa e é coroado como Carlos II – era a “Restauração”, época de faustos e prazeres. A Chapel Royal é restabelecida e para ela Henry Purcell entra muito jovem como menino do coro. As mortes sucessivas dos mestres de capela Henry Cooke e Pelham Humphrey levaram ao cargo o mentor de Purcell, John Blow. A voz tendo mudado, Purcell permaneceu no entanto ao serviço da capela como copista e organista, em contacto por certo com o compositor mais célebre da altura, Matthew Locke. Quanto este por sua vez morre, em 1677, Purcell torna-se “composer-in-ordinary” dos violinos da capela real, os “Four and Twenty Fiddlers” instituídos por Carlos II à imagem dos “24 Violons du Roy” do seu protector de exílio, Luís XIV. Eis então Henry oficiando em compositor escrevendo “anthems” (hinos religiosos), acolhendo o influxo italiano mas também estabelecendo um laço com a tradição perdida do maneirismo com as “arcaìzantes” e extraordinárias Fantasias for the Viols.
 
Em breve se dedica também a escrever música para o teatro, a arte mais celebrada da Restauração. A sua reputação estava consagrada quando compõe para a coroação do novo rei, Jaime II, em 1685. O catolicismo deste e a perspectiva de nascimento de um herdeiro estarão na origem da revolução de 1688 que leva ao poder Maria e o seu marido Guilherme de Orange. A Queen Mary virá a ser a grande protectora de Purcell e se o autor se destacará como compositor de Odes estas tanto serão dedicadas à padroeira da música, Santo Cecília, como à Rainha, nos seus aniversários.
 
Na corte de Luis XIV tinham os Stuarts exilados conhecido o novo género da “tragédie lyrique”, contraponto francês à recusada ópera italiana. Mas por sua vez o género francês não teve acolhimento em terras britânicas. Em vez disso, e na sequência da tradição da “masque”, floresceu um teatro musical, ou antes meio falado e meio musicado, de que Purcell será o mestre esplendoroso. Mas este génio tão peculiar ainda fará uma obra de todo singular, uma ópera mesmo, uma ópera de câmara, Dido & Aeneas, provavelmente para um colégio de meninas, a escola de Josias Priest, que a posteridade consagrará como a sua obra mais celebrada, e se tornará mesmo – paradoxo para com as suas origens num terreno sem ópera – na mais representada de todas as óperas barrocas.

 

Memória de Berlim e do muro - I

 

 

 

 
 
 
Pavana para uma Berlim defunta
 
 
Vai fazer agora dez anos [fez agora vinte anos] que, com júbilo, soubemos a notícia da queda do Muro de Berlim. Os cidadãos de Berlim Leste e da Republica Democrática Alemã iam finalmente poder respirar a liberdade e escapar-se das malhas opressivas do socialismo real. O que no júbilo do momento não intuímos é que acabava também uma parte da História e das nossas vidas, dos que moravam lá ou que, como eu, muitas vezes lá iam, desses que tínhamos a vivência de Berlim Oeste, cidade cercada por muro e arame farpado, ilha rodeada de comunismo por todos os lados.
 
Como era essa vivência? Frenética, respirando sofregamente cada dia e ainda mais cada noite, como se pudessem ser os últimos das nossas vidas, já que se existia à face do planeta um ponto em que a realidade dos blocos antagónicos e da possibilidade de guerra nuclear era bem perceptível, esse ponto era Berlim.
 
Íamos até à esquina de Friedrichstrasse e Ecktrassse, ao “Checkpoint Charlie”, posto fronteiriço entre os sectores americano e soviético, onde, com um carimbo no passaporte, podíamos passar de um lado para outro da cidade dividida. Íamos até ao bairro pobre de Kreuzberg, junto a esse edifício de Siza Vieira, bem junto ao muro, onde alguém escrevera “Bonjour Tristesse”.
 
Procurávamos os rastos de Berlim de antes da guerra. De dia, os rastos da metrópole cuja vivência Walter Benjamin relatara em Infância Berlinense“Não encontrar o caminho numa cidade não é muito importante, mas perder-se numa cidade, como as pessoas se perdem numa floresta, exige prática... Aprendi essa arte muito tarde”. À noite, os rastos dos “cabarets”, das Marlenes Dietrich e Sallies Bowles que Christopher Isherwood narrara em Goodbye Berlin (base de Cabaret, o espectáculo teatral e depois o filme).:
 
Como eram intensas as noites de Berlim Oeste! Íamos ao Hebbel e à Schaubünhne, dois dos mais importantes locais de actividade teatral do mundo, ao “Terzo Mondo”, uma taberna grega que era ponto de encontro de cinéfilos e de convívio de imigrantes do Sul da Europa (até gregos e turcos confraternizavam), ao Metropol, uma antiga igreja de que se mantinha a fachada mas que no interior se transformara em templo de rock, ou a discotecas, clubes ou cervejarias de Kreuzberg. Eram longas noites, e quando a madrugada chegava, sabíamos que tínhamos conseguido viver mais um dia.
 
Por vezes passávamos para o lado de lá, à superfície, em “Checkpoint Charlie”, ou subterraneamente, na estação de metro de Friedrichstrasse. Então, íamos até ao mais jovem e intelectual bairro de Berlim Leste; Pranzlauerberg.. Eventualmente subíamos ao alto da torre das telecomunicações em Alexanderplatz, o único ponto em que se avistava todo a grande cidade, como se não houvesse Oeste e Leste, como se não houvesse um céu também dividido — Der Geteite Himmel, título de um romance de Christa Wolf, esse onde Wenders pôs anjos em Der Himmel über Berlin/O Céu Sobre Berlim  que por cá se chamou As Asas do Desejo. Por mim, ia frequentemente à Komische Oper, ali tão perto do muro e da Porta de Brandenburgo, ver espectáculos com encenações de Walter Felsenstein, Joachim Herz ou Harry Kupfer.
 
Depois veio o júbilo e toda essa imensa alegria, dos que a Leste se tinham manifestado proclamando “wir sind der volk/ nós somos o povo”, e dos que a Oeste os acolhiam, até saudando esses muitos poluídores Trabants, os quase arqueológicos carros da RDA, cheios de gente que vinha respirar a liberdade e começar a descobrir o consumismo ocidental nos grandes armazéns do KaDeWe. E, inversamente, passámos a ir de Oeste a Leste sem guardas-fronteiriços a espreitarem-nos de alto a baixo, já sendo solicitados para um pequeno tráfico de cigarros americanos, dólares ou marcos ocidentais, junto à estação de metro de Alexanderplatz, ou dentro dela.
 
E depois a RDA desapareceu e Berlim passou a ser uma única cidade, com esse imenso deserto onde antes o muro se erguera, em Postdamerplatz, bem no centro da cidade, em “Berlim-Mitte”; e depois, nesse mesmo local começou o estaleiro das grandes construções, como a torre da Daimler-Benz, projectada por Renzo Piano, um dos pólos de um triângulo que hoje inclui também a cúpula transparente, desenhada por Norman Foster, do velho Reichstag de tão sinistras memórias (hoje resgatado e sede do Parlamento da nova Alemanha una e democrática) ou a espectacular Passage interior de Friedrichstrasse, devida a Jean Nouvel, que com o Museu Judaico de Daniel Liebeskind são referências obrigatórias nesse grande museu de arquitectura que é a nova Berlim.
 

 

Memória de Berlim e do muro - II

 

 
 
Mas o muro desapareceu mesmo? Ao longo de dez anos não temos deixado de nos interrogar sobre o Mauer am Kopf, o “muro na cabeça”, essa divisão mental e cultural que ainda permanece entre os wessies, os do Oeste, e os ossies os de Leste, estes inclusivamente exibindo marcas do exército soviético e daquela estética oficial da RDA que, na sua mistura de prussianismo e estalinismo, era ainda mais tenebrosa que a da União Soviética — e esses são sinais visíveis da ossienostalgie, da nostalgia pela velha RDA, campo onde manobram e se alimentam os comunistas mas também a extrema-direita.
 
Sucede que agora às noites podemos ir ao cosmopolita “Newton Bar”, ao pé de Friedrichstrasse, mas não longe dali fica o “Tresor”, discoteca instalada um antigo “bunker”, onde alternam noites jovens e “techno”, festas durante o Festival de Cinema e celebrações da velha RDA.
 
E é percorrendo hoje as ruas e sobretudos os locais nocturnos de Berlim que nos sucede ter não nostalgia mas melancolia (“exactamente porque o carácter melancólico é perseguido pela morte, são os melancólicos que melhor sabem decifrar o mundo”, escreveu Susan Sontag no seu ensaio sobre Walter Benjamin, Sob o Signo de Saturno), melancolia por essa Berlim Oeste que, afinal, também ela acabou com a queda do muro e a reunificação.
 
Berlin bleit doch Berlin, Berlim continua a ser Berlim; mas será a mesma? Não, já não é, porque felizmente o muro abateu-se e com ele o socialismo real, mas não deixemos de estar atentos ao muro que permanece nas cabeças e não queiramos recalcar a melancolia que também envolve a nova condição de uma cidade una e democraticamente regida.
 
As noites de Berlim já não acabam freneticamente numa giga, essa dança rápida com que habitualmente se concluem as suites, mas com pavanas por uma vivência defunta — e sendo a pavana uma dança cerimoniosa é também a nossa cerimónia dos adeuses.
 
 

“Público” de 11 de Novembro de 1999

 
 
 
 

Haendel, glória e reapreciação - III

 

 

Há por vezes uma perniciosa tendência para estabelecer associações e/ou oposições, como Haydn/Mozart, Verdi/Wagner, Bruckner/Mahler ou Schoenberg/Stravinsky. Assim sucede também com Bach/Haendel.
 
Nascidos no mesmo ano de 1785 são efectivamente esses dois (mas poder-se-ia acrescentar Vivaldi, porque não?), os grandes mestres finais do barroco. Mas a grandeza de Bach é ímpar e dispensa comparações.
 
Homem do mundo, cosmopolita, Haendel pode ser observado noutra perspectiva, inclusivamente não apenas de música mas de história de arte. As suas seis “óperas mágicas”, Rinaldo, Amadigi, Teseo, Orlando, Ariodante e Alcina (as três últimas baseadas no Orlando Furioso de Ariosto), com as suas maquinarias, são a apoteose do barroco, do seu teatro dos prodígios e da estética do maravilhoso
 
Esse é o núcleo axial, embora haja também outras óperas admiráveis, da conhecida e superlativa Rodelinda à quase desconhecida Partenope passando pelo Giulio Cesare, Tamerlano, Agrippina ou Serse. E, é óbvio, há as oratórias, mas não apenas O Messias, Saul, Salomon ou Israel no Egipto – há a praticamente derradeira e em especial comovente Jephta como há as oratórias do período romano, Il Trionfo del tempo e del disingano e La Resurrezione, como há ainda o caso à parte das três oratórias não-biblícas, Theodora, Semele e Hercules, autênticos dramme per musica à sua maneira (e que, de facto, têm sido encenadas – com o lançamento agora da Semele com Cecilia Bartoli, há mesmo dvds de todas as três), ou essa obra extraordinária Ode Pastoral e meditação que é L’Allegro, Il Penseroso ed Il Moderato, baseado em Milton. Como há os Concerti Grossi ou as Cantatas do período romano, algumas delas seguramente obras-primas, como La Lucrezia (uma notável série dedicada a essas cantatas italianas, dirigida por Fabio Bonizzoni, está a ser editada pela Glossa).
 
Glória a Haendel, Aleluia.

 

Haendel, glória e reapreciação - II

 

 

 

Em Junho de 1920, o Prof. Oskar Hagen dava início em Göttingen a um festival Händel (que ainda existe), apresentando Rodelinda, ópera que não subia à cena desde…1736 – e de facto nenhuma ópera de Haendel era representada desde 1754, ou seja, o “Haendel operático” já estava esquecido ainda em vida do autor. Era a estupefacção: Haendel “também” tinha composto óperas? Mas em 1922, o mesmo Hagen publicava uma edição de Giulio Cesare, com diversas transposições para vozes graves – até aos 50 e mesmo 60, barítonos como Walter Berry e Dietrich Fischer-Dieskau cantaram o papel titular tornando o Cesare na única ópera do autor vagamente conhecida, de resto de Haendel se retendo apenas O Messias, a Música Aquática e os Royal Fireworks e um espúrio “Largo”, que de facto é um larghetto, Ombra mai fu, o canto elegíaco a um plátano de Serse na ópera homónima.
 
Mas entretanto também ocorriam os primórdios da chamada “música antiga”. Com Alfred Deller ressurgiam os falsetistas ou contra-tenores. Em 1954, Deller gravou uma integral de uma ópera, Sosarme, para concluir que tanto como a sua voz se adequava a Purcell era desajustada para Haendel. Já do lado de lá do Atlântico o outro contra-tenor, Russel Oberlin, gravava um marcante recital no bicentenário da morte – recital que, atenção, acaba por ser reeditado pela Decca. E havia as cantoras, algumas.
 
Nesse mesmo de 1959, a estação de rádio de Colónia, a WDR, organizava uma versão de concerto da Alcina, com Joan Sutherland (e, em papel transposto, Fritz Wunderlich, o luxo), com um dos primeiros agrupamentos de instrumentos de época, a Capella Coloniensis – e, facto pouco conhecido, seria por representações da Alcina que a Sutherland ganharia o cognome de “La Stupenda”.
 
E Teresa Stich-Randall dava voz a Rodelinda e surgiam as incomparáveis meio-sopranos Marilyn Horne, Maureen Forrester, Teresa Berganza e Janet Baker.
 
Mas ainda em 1959, no tocante à musicologia, Edwar Dent publica Handel’s Dramatick Oratórios and Masques e abre caminho a outra revelação: há mais, muito mais, e do mesmo nível, que O Messias e Israel no Egipto. No ano seguinte foi a vez de Rudolf Ewerhart dar a conhecer o “fundo Santini” conservado na Biblioteca de Münster, dando início à revelação do período romano de Haendel.
 
 
O conhecimento musicológico foi aos poucos criando as premissas de uma reapreciação. Em 1985, o ano do tricentenário do nascimento, Christopher Hogwood, intérprete e estudioso (Handel – Thames and Hudson, 1988), proclamava que o músico “era por vocação um homem de teatro”. Nesse mesmo ano tal vocação dramática era corrobada por uma gravação maravilhosa da Alcina, com Arleen Auger (ah, que memórias dela nesse papel!) dirigida pelo recentemente falecido Richard Hickox. Mas já em 1976, John Eliot Gardiner com o seu maravilhoso Monteverdi Choir e uma então designada Monteverd Orchesta (com instrumentos clássicos, antes da formação dos English Baroque Soloists) registara prodigiosamente uma obra do período romano, o Dixit Dominus; nem ele próprio, em posterior nova gravação, repetirá tal prodígio. A reapreciação e redescoberta de Haendel começavam efectivamente.
 
Há 15 anos atrás constava eu de que das 40 óperas de Haendel, 23 estavam editadas em cd. Hoje todas as óperas estão gravadas (se bem que algumas entretanto indisponíveis), bem como aliás as oratórias.

 

Haendel, glória e reapreciação - I

 

 

No dia dos 250 anos da morte do compositor

 

 

 

 
Morreu célebre George Frederic Haendel (1685-1759). A sua vida tinha sido de contrastes: sucessos e contrariedades, revezes e falências mesmo no seu género de eleição, a ópera, criação pelo fruto das circunstâncias e mesmo quase por acaso de um género nacional, a oratória inglesa, por este compositor alemão, imbuída de influência italiana, sensível à francesa e que se tinha adaptado também à tradição inglesa remontando a Purcell.
 
Se foi celebrado em vida, tanto que lhe foi erigida uma estátua nos Vauxhall Gardens, Haendel foi o primeiro compositor da história da música europeia de quem as obras nunca deixaram de ser executadas. Mozart fez arranjos de O Messias e Acis e Galateia, foi sob a influência das suas oratórias que Haydn compôs A Criação e As Estações, Beethoven reverenciava-o e se a geração romântica, toda votada ao culto do “redescoberto” Bach o ignorou, o jovem Brahms compôs as Variações e Fuga sobre um Tema de Haendel.
 
O alemão que na sua estadia italiana de 1706-10 absorvera em Roma com prodigiosa rapidez e invenção as influências de Corelli e Alessandro Scarlatti, e que triunfara ainda com duas óperas, Rodrigo em Florença e Agrippina em Veneza, chegara a Londres em 1711 exactamente para fazer triunfar a ópera italiana com Rinaldo. 30 anos depois Deidamia foi a última das 40 óperas que escreveu – 40, note-se bem!
 
Embora não sendo em rigor caso único (Vivaldi também foi várias vezes compositor e empresário), Haendel inseriu-se como sujeito autónomo na sociedade mercantil – e, assim, por protectores importantes que também tivesse tido, foi ele de facto o primeiro compositor emancipado, antes de Mozart se libertar do arcebispo Coloredo e de Beethoven se constituir como paradigma, como o quis a persistente tradição humanista, de resto retomada pela narrativa adorniana do modernismo (Adorno, de resto, era anti-haendeliano).
 
Mas ser empresário supôs investimentos, estar dependente de sucessos e insucessos (e com o correr do tempo cada vez mais de insucessos) e mesmo rivalidades ferozes, enquanto se ia constatando a resistência dos ingleses à ópera italiana, parodiada na Beggar’s Opera de Gay e Pepusch.
 
Tinha ele absorvido também como se disse a tradição inglesa remontando a Purcell, odes, anthems e masques. Foi como uma semi-teatral masque, uma representação religiosa de um drama bíblico de texto inspirado em Racine, que Esther foi apresentado em 1732, em Cannons, a propriedade de um dos protectores de Haendel, o Duque de Chandos. Algum tempo depois, e à revelia do compositor, a obra foi apresentada em Londres, com sucesso. Enfim, o próprio Haendel decidiu ser ele a organizar uma apresentação em concerto.
 
Tinham-se sucedido Deborah e Athalia, mas era ainda a ópera que ocupava Haendel. Enfim em 1739, com Saul, iniciou uma actividade consequente de autor de oratórias. De 1741, como já se disse, data a última ópera, Deidamia; no ano seguinte foi o triunfo em Dublin de O Messias.
 
É “esse” Haendel, o de O Messias, de Joshua, de Judas Maccabeus, de Israel no Egipto, que será massivamente celebrado, por vezes com coros de centenas de elementos, na imediata posterioridade e ao longo do século XIX.
 
Até que…
 
 
 
 
 
 
 

 

Ano Händel e Haydn

 

 

Em 1815 um grupo de comerciantes de Boston fundava a Handel and Haydn Society. É uma data de não pequena importância na história da interpretação musical e das práticas de concerto: essa sociedade foi a primeira instituição musical especificamente votada para o repertório do passado, ainda que um passado muito recente, no caso de Haydn, falecido apenas seis anos antes.
 
Como nunca é de mais lembrar, até à primeira década do século passado as práticas de concerto e de ópera incidiam sobretudo em obras então “contemporâneas”, só depois da ruptura modernista e da primeira grande catástrofe, a Guerra de 14-18, se estabelecendo a dicotomia entre o “cânone clássico” e a “música contemporânea” – paradoxalmente, a criação da Sociedade Internacional de Música Contemporânea, logo ocorrida num futuro “santuário” da tradição, em Salzburgo, e no momento em que efectivamente começava o célebre festival, em 1922, essa fundação, com o objectivo de divulgação, não deixou de no entanto contribuir para a “demarcação” de um campo à parte.
 
É certo que a reverência para com autores pretéritos, Bach ou Beethoven, se estabelecera já ao longo do século XIX – mas justamente os primeiros modelos foram Haendel e Haydn.
 
Note-se que no caso de Haendel de que se tratava era das oratórias, que por sua vez haviam influenciado Haydn nas suas estadias londrinas, levando-o a compor A Criação e As Estações. Era aliás a essas obras que a Handel and Haydn Society se votou.
 
Curiosamente, mas não tanto casualmente, a instituição que selou a associação dos dois compositores seria também, mais de 150 anos volvidos sobre a sua criação, uma das pioneiras nos Estados Unidos dos novos entendimentos da “música antiga e barroca”.
 
Se há razão para recordar esta história no início de 2009 é porque um dos traços culturais contemporâneas, e das práticas culturais institucionais, é o culto da efeméride. Em 2009 assinalam-se os 250 anos da morte de Haendel e os 200 anos da morte de Haydn. Também ocorre, é certo, o bicentenário do nascimento de Mendelssohn, ou seja, entramos no ciclo da “geração romântica” (Schumann e Chopin no próximo ano, Liszt em 2011), mas não será difícil prognosticar que serão Händel e Haydn os destaques.
 
Sendo inelutável este culto da efeméride, que aliás se vai estendendo a todos os domínios, não é menos certo que por vezes esse proporciona situações de programação e de edições discográficas interessantes. A ver vamos.

 

Duplo centenário (Messiaen - VIII, Elliot Carter - II)

 

 

 
Olivier Messiaen
Oiseaux Exotiques, Chronochromie, Et expecto ressurrectionem mortuorum
Elliot Carter
Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto, Three Occasions for Orchestra
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Stefan Asbury, Franck Ollu
Casa da Música, 12 e 13 de Dezembro
 
 
Olivier Messiaen nasceu a 10 de Dezembro de 1908, Elliot Carter um dia depois. Ao longo do ano, os respectivos centenários têm sido assinalados, compreensivelmente com maior incidência o do compositor francês. Não obsta a que este dia único de intervalo entre o nascimento de um e de outro sugeria também a possibilidade de uma celebração conjunta.
 
É um outro activo a assinalar à Casa da Música ter organizado um programa de concertos comemorativo deste “duplo centenário”, sendo que no caso o facto é assinalável mesmo no panorama internacional. Celebrar conjuntamente os dois compositores implica também as suas diferenças, muitas, e eventuais aproximações. Esse é um primeiro ponto. Um segundo diz concretamente respeito a estes concertos.
 
Uma das valias da Casa da Música, como amiúde tenho assinalado, é contar com a Orquestra Nacional do Porto e o Remix Ensemble como agrupamentos residentes. Já no programa “Música e Revolução” deste ano (o ciclo especial da Casa em torno da data do 25 de Abril, embora abordando latamente o conceito de “revolução), a que infelizmente não pude assistir, foram programados concertos tendo o Remix na 1ª parte e a ONP na 2ª, com “troca” de maestros, nesse caso mesmo os directores titulares de uma e outra formação, respectivamente Peter Rundel e Christopher König (em rigor na altura ainda maestro titular indigitado), ou seja Rundel, maestro do Remix, também dirigiu a ONP, e König, maestro da ONP, também dirigiu o Remix. Um mesmo procedimento, mas com maestros convidados, ainda que presenças regulares, foi seguido agora.
 
No concerto de dia 12, Asbury, que foi o primeiro director do Remix, dirigiu essa formação na 1ª parte com Oiseaux Exotiques de Messiaen e Tempo e Tempi e Réflexions de Carter e na 2ª parte Ollu dirigiu a ONP em Chronochromie, uma das mais importantes obras de Messiaen, finalmente em 1ª audição em Portugal. No concerto de dia 13, Ollu dirigiu o Remix em Asko Concerto de Carter* e na 2ª parte Asbury dirigiu a ONP em Three Occasions for Orchestra de Carter e Et expecto ressurrectionem mortuorum** de Messiaen.
 
Assim, além da eventual aproximação (e divergência) dos dois compositores, primeiro ponto, implicando também saber se o conjunto das obras de cada um apresentadas era representativo das respectivas personalidades musicais, isto é, a intencionalidade geral da proposta, o segundo ponto colocava questões de intencionalidades particulares no modo como, para realizar a proposta geral, se organizaram os quatro pares, dois compositores, dois concertos, dois maestros e duas formações. É preciso ter todos estes dados em conta para atender às particularidades do discurso crítico sobre este evento, sendo que não tem o menor sentido, num projecto tão carregado de intencionalidades, falar apenas de um ou de outro dos concertos, ou falar deles como eventos separados.
 
Parece-me indiscutível em primeiro lugar, que Messiaen teve uma presença muito mais representativa, pois que Oiseaux Exotiques, Chronochromie e Et expecto ressurrectionem mortuorum são três obras seguramente maiores, e pelo menos Chronochromie (senão Et expecto… também) uma das mais extraordinárias, e até de toda a música do século XX. Todavia também foi patente uma diferença de afinidades no tocante aos maestros.
 
Compara-se muitas vezes a Turangalîla-Symponie com a Sagração da Primavera de Stravinsky; o paralelo é no entanto erróneo. Se há obra de Messiaen que na sua extraordinária densidade se pode aproximar da de Stravinsky, essa é sim Chronochromie – e de resto também não lhe faltou o “escândalo” na estreia, que na tradição da narrativa da modernidade inaugurada justamente pela Sagração é parte integrante da “aura” de tão decisivas obras. Deduzir-se-á pelo exposto que esta obra portentosa não é nada fácil para uma orquestra e portanto também para quem dirige. Ollu optou pela segurança possível, mas ouvindo antes Oiseaux Exotiques como no dia seguinte Et expecto… ficou confirmado que Asbury é um maestro de muito maiores afinidades com Messiaen, deixando portanto a sensação que há a lamentar não ter sido ele a dirigir também Chronochromie – serão, compreensivelmente, dados inerentes a  uma programação exigente, em que havia de repartir as tarefas, mas o certo é também que a audição se ressentiu.
 
Extraordinária, apoteose desta dupla jornada, e um dos grandes momentos*** das celebrações de Messiaen em Portugal foi a interpretação de Et expecto ressurrectionem mortuorum. A obra exige meios de uma orquestra mas não é para orquestra, é sim para um alargado conjunto de quarenta instrumentistas de sopros e percussões metálicas. Asbury fez verdadeiramente a obra soar como vinda das profundezas (“Des profondeurs de l’abîme…”, 1º andamento) até à resplandecente glória – simplesmente inolvidável!
 
 
 
 
 
* Nessa 1º parte do 2º concerto foi também apresentada, em estreia, Quem chama?, obra da sueca Karin Rehnqvist, que neste ano do “Focus Nórdico” foi na Casa da Música “compositora associada” – obra a que ainda farei uma referência.
 
** Et expecto… tinha sido estreado em Portugal no passado dia 19 de Março pela Orquestra Metropolitana de Lisboa dirigida por Michael Zilm. Não tendo escrito na altura, ainda retomarei esse concerto, bem como a Turangalîla-Symphonie pela Orquestra de Baden-Baden dirigida por Sylvain Cambreling, a 29 de Janeiro, no Ciclo das Grandes Orquestras da Gulbenkian, numa rememoração deste “ano Messiaen”
 
*** O programa na Casa da Música incluiu também, além do Quator pour la fin du Temps, antes destes concertos, as Visions de L’Amen para dois pianos e L’Ascension, na versão para órgão, que não ouvi.