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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Tempo e tempos (Elliot Carter - III)

 

 

 

 
Mobilidade, sobreposições, as chamadas “modulações métricas”, tempo e tempos, jogo de grupos instrumentais e/ou de solista/s e grupos instrumentais – eis características da obra de Elliot Carter, da sua personalidade musical.
 
É importante notar, de resto, que o próprio Carter refere numerosos exemplos precedentes da sua metodologia e princípios composicionais na história da música, os madrigalistas e virginalistas inglesas, os cravistas franceses, as cenas de óperas de Mozart, Verdi ou Mussorgsky em que ocorrem acções paralelas com diferentes tempos e métricas, etc. Compreende-se assim que tenha retomado à sua própria maneira a noção de concerto, “concerto grosso” ou concerto solista, de obras para diferentes grupos instrumentais ou mesmo de episódios musicais separados. Como se compreende que o tempo e as temporalidades, uma concepção não-teleológica do tempo e da obra musical lhe sejam axiais – não há em Carter um princípio para chegar a um fim, o que o distingue não apenas dos princípios da tonalidade funcional como das concepções ontogenéticas do material nas correntes seriais e post-seriais.
 
Esta recusa do “pensamento teleológico”, com constantes acontecimentos e transformações, nada tem a ver com a concepção recorrente,  simbólica e teológica do tempo musical que há em Messiaen - como em T.S. Elliot, ou pelo próximo, há em Messiaen não o "eterno retorno" de Nietzsche mas um retorno incessante, "O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no temo futuro/ E o tempo futuro contido no temppo passaado". Isso é o que radicalmente diferencia os dois compositores e no entanto também os aproxima enquanto singulares conceptualizadores do Tempo.
 
Por outro lado, pesem ainda algumas suas inusitadas combinações e/ou oposições instrumentais, Carter não é um colorista e pensadores dos timbres como Messiaen (é de notar por exemplo que escreveu cinco quartetos de cordas e o outro obviamente nenhum, pois não se imagina Messiaen trabalhando com um conglomerado tímbrico tão próximo), e pesem ainda a mobilidade e sobreposições não é, ao contrário do outro, um polirritmista.
 
Elliot Carter é antes do mais um construtivista, altamente complexo, mas em cuja música todavia se percepciona o movimento, o trajecto, a direcção das linhas musicais – e pois que evoquei tê-los vistos juntos em Varsóvia, em 1985, a ele e a Lutoslawski, ocorreu-me durante estes concertos na Casa da Música pensar que são dois diferentes mestres da direccionalidade, questão que hoje, contra a expansão magmática característica do pensamento ontogenético, é de novo de tanta actualidade.
 
Expostas estas características, foi representativo o conjunto de quatro obras, Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto e Three Occasions for Orchestra, apresentadas nesta celebração do duplo centenário na Casa da Música? Seguramente muitíssimo menos que as três obras apresentadas de Messiaen, sendo também certo que em termos estritos de execução Carter é um autor mais difícil.
 
Faltou uma obra indiscutivelmente maior, como por exemplo a Sinfonia de Três Orquestras, faltou um grande concerto solista, como, entre vários outros, o Concerto para Piano. Réflexions e Three Occasions for Orchestra são obras relativamente “ocasionais”, ainda que, pelo seu carácter festivo, houvesse algum sentido na presença da última na celebração deste compositor ora centenário. Particularmente representativas são sim Tempo e Tempi e Asko Concerto.
 
Desde que em 1975 compôs A Mirror on Which to Dwell sobre poemas de Elizabeth Bishop e Three Poems of Robert Frost, que Carter tem escrito algumas obras vocais. De facto, de modo explicito ou mais subterrâneo, a sua obra é marcada por poetas como William Carlos Williams, Hart Crane ou Wallace Stevens – e mais genericamente haveria todo um longo capítulo a escrever sobre influências literárias, de Joyce (o tempo, claro, a “epifania”) a Calvino, este objecto de uma obra, mas um trio instrumental, Com leggereza pensosa – Omaggio a Ítalo Calvino.
 
Tempo e Tempi é uma obra de grande importância, porque no poema de Eugénio Montale em que a obra colhe o título está inscrito uma concepção paralela à do próprio Carter: “Não há um tempo único: há muitas fitas / que paralelas deslizam”.Infelizmente, a soprano Claire Booth não teve o sabor da língua, do italiano dos versos de Montale, Quasímodo e Ungaretti.
 
Só no Asko Concerto, com Franck Ollu dirigindo o experimentado Remix, houve um momento à altura da clareza e da concisão da complexidade de Carter, ao nível mais representativo do compositor, com os 16 instrumentistas em solo ou indo participando de diferentes intra-formações, duos, trios ou um quintetos E reconheça-se, de qualquer modo, que as Three Occasions for Orchestra pela ONP dirigida por Stefan Asbury foram brilhantes.
 
Mesmo que no modo concreto como se realizaram as intencionalidades desta celebração dos 100 anos de Olivier Messiaen e Elliot Carter, o americano estivesse longe do nível de representatividade do outro, a ocasião de ouvir quatro obras suas foi suficientemente importante para ser devido assinalá-la.

 

Duplo centenário (Messiaen - VIII, Elliot Carter - II)

 

 

 
Olivier Messiaen
Oiseaux Exotiques, Chronochromie, Et expecto ressurrectionem mortuorum
Elliot Carter
Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto, Three Occasions for Orchestra
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Stefan Asbury, Franck Ollu
Casa da Música, 12 e 13 de Dezembro
 
 
Olivier Messiaen nasceu a 10 de Dezembro de 1908, Elliot Carter um dia depois. Ao longo do ano, os respectivos centenários têm sido assinalados, compreensivelmente com maior incidência o do compositor francês. Não obsta a que este dia único de intervalo entre o nascimento de um e de outro sugeria também a possibilidade de uma celebração conjunta.
 
É um outro activo a assinalar à Casa da Música ter organizado um programa de concertos comemorativo deste “duplo centenário”, sendo que no caso o facto é assinalável mesmo no panorama internacional. Celebrar conjuntamente os dois compositores implica também as suas diferenças, muitas, e eventuais aproximações. Esse é um primeiro ponto. Um segundo diz concretamente respeito a estes concertos.
 
Uma das valias da Casa da Música, como amiúde tenho assinalado, é contar com a Orquestra Nacional do Porto e o Remix Ensemble como agrupamentos residentes. Já no programa “Música e Revolução” deste ano (o ciclo especial da Casa em torno da data do 25 de Abril, embora abordando latamente o conceito de “revolução), a que infelizmente não pude assistir, foram programados concertos tendo o Remix na 1ª parte e a ONP na 2ª, com “troca” de maestros, nesse caso mesmo os directores titulares de uma e outra formação, respectivamente Peter Rundel e Christopher König (em rigor na altura ainda maestro titular indigitado), ou seja Rundel, maestro do Remix, também dirigiu a ONP, e König, maestro da ONP, também dirigiu o Remix. Um mesmo procedimento, mas com maestros convidados, ainda que presenças regulares, foi seguido agora.
 
No concerto de dia 12, Asbury, que foi o primeiro director do Remix, dirigiu essa formação na 1ª parte com Oiseaux Exotiques de Messiaen e Tempo e Tempi e Réflexions de Carter e na 2ª parte Ollu dirigiu a ONP em Chronochromie, uma das mais importantes obras de Messiaen, finalmente em 1ª audição em Portugal. No concerto de dia 13, Ollu dirigiu o Remix em Asko Concerto de Carter* e na 2ª parte Asbury dirigiu a ONP em Three Occasions for Orchestra de Carter e Et expecto ressurrectionem mortuorum** de Messiaen.
 
Assim, além da eventual aproximação (e divergência) dos dois compositores, primeiro ponto, implicando também saber se o conjunto das obras de cada um apresentadas era representativo das respectivas personalidades musicais, isto é, a intencionalidade geral da proposta, o segundo ponto colocava questões de intencionalidades particulares no modo como, para realizar a proposta geral, se organizaram os quatro pares, dois compositores, dois concertos, dois maestros e duas formações. É preciso ter todos estes dados em conta para atender às particularidades do discurso crítico sobre este evento, sendo que não tem o menor sentido, num projecto tão carregado de intencionalidades, falar apenas de um ou de outro dos concertos, ou falar deles como eventos separados.
 
Parece-me indiscutível em primeiro lugar, que Messiaen teve uma presença muito mais representativa, pois que Oiseaux Exotiques, Chronochromie e Et expecto ressurrectionem mortuorum são três obras seguramente maiores, e pelo menos Chronochromie (senão Et expecto… também) uma das mais extraordinárias, e até de toda a música do século XX. Todavia também foi patente uma diferença de afinidades no tocante aos maestros.
 
Compara-se muitas vezes a Turangalîla-Symponie com a Sagração da Primavera de Stravinsky; o paralelo é no entanto erróneo. Se há obra de Messiaen que na sua extraordinária densidade se pode aproximar da de Stravinsky, essa é sim Chronochromie – e de resto também não lhe faltou o “escândalo” na estreia, que na tradição da narrativa da modernidade inaugurada justamente pela Sagração é parte integrante da “aura” de tão decisivas obras. Deduzir-se-á pelo exposto que esta obra portentosa não é nada fácil para uma orquestra e portanto também para quem dirige. Ollu optou pela segurança possível, mas ouvindo antes Oiseaux Exotiques como no dia seguinte Et expecto… ficou confirmado que Asbury é um maestro de muito maiores afinidades com Messiaen, deixando portanto a sensação que há a lamentar não ter sido ele a dirigir também Chronochromie – serão, compreensivelmente, dados inerentes a  uma programação exigente, em que havia de repartir as tarefas, mas o certo é também que a audição se ressentiu.
 
Extraordinária, apoteose desta dupla jornada, e um dos grandes momentos*** das celebrações de Messiaen em Portugal foi a interpretação de Et expecto ressurrectionem mortuorum. A obra exige meios de uma orquestra mas não é para orquestra, é sim para um alargado conjunto de quarenta instrumentistas de sopros e percussões metálicas. Asbury fez verdadeiramente a obra soar como vinda das profundezas (“Des profondeurs de l’abîme…”, 1º andamento) até à resplandecente glória – simplesmente inolvidável!
 
 
 
 
 
* Nessa 1º parte do 2º concerto foi também apresentada, em estreia, Quem chama?, obra da sueca Karin Rehnqvist, que neste ano do “Focus Nórdico” foi na Casa da Música “compositora associada” – obra a que ainda farei uma referência.
 
** Et expecto… tinha sido estreado em Portugal no passado dia 19 de Março pela Orquestra Metropolitana de Lisboa dirigida por Michael Zilm. Não tendo escrito na altura, ainda retomarei esse concerto, bem como a Turangalîla-Symphonie pela Orquestra de Baden-Baden dirigida por Sylvain Cambreling, a 29 de Janeiro, no Ciclo das Grandes Orquestras da Gulbenkian, numa rememoração deste “ano Messiaen”
 
*** O programa na Casa da Música incluiu também, além do Quator pour la fin du Temps, antes destes concertos, as Visions de L’Amen para dois pianos e L’Ascension, na versão para órgão, que não ouvi.  

 

A clareza da complexidade - elogio de Elliot Carter (I)

 

 

 

No dia dos 100 anos de Elliot Carter
 
 
 
Lembro-me de ter conhecido Elliot Carter no Outono de Varsóvia em 1985, tinha a lei marcial sido levantada há pouco tempo. Lembro-me de os ver juntos, ele prestes a fazer 78 anos e Witold Lutoslawski com 74, dois decanos entre os compositores.
 
Como imaginar então as surpresas que Carter ainda nos reservaria, obras tão marcantes como o Concerto para Oboé (1987), Three Occasions para orquestra (1989), o Concerto para Violino (1990), o tríptico Symphonia: sum fluxe pretium para orquestra (1998), o Concerto para Clarinete (1996), surpresa maior, a ópera de câmara (nunca Carter se tinha aventurado em tal território) What Next?, com libreto do musicólogo Paul Griffiths (1997), Tempo e Tempi, para soprano, oboé, violino e violoncelo (1999), o Asko Concerto (2000), o Concerto para Violoncelo (2000), Three Ilusions for Orchestra (2004) ou Soundings para piano e orquestra (2005), sim, quem diria, quem ousaria imaginar um tal florescimento criativo num compositor de 80 anos passados?!
 
E Elliot Carter continua activo: na semana passada houve a estreia de Interventions para piano e orquestra, por Daniel Barenboim e a Orquestra Sinfónica de Boston, dirigida por James Levine, em Boston, os mesmos intérpretes tocando hoje a obra no Carnegie Hall de Nova Iorque. E já há notícia do trabalho num novo ciclo de canções baseado nos Pisan Cantos de Ezra Pound.
 
Elliot Carter nasceu numa família abastado, de quem um agente de seguros era nada menos que o fundador da música americana,  Charles Ives. Esse contacto terá sido um primeiro encorajamento na direcção da música. Em Harvard licenciou-se em inglês e mais tarde também em música. Um dos seus professores foi Walter Piston, e a influência daquele, de Roy Harris e de Aaron Copland, orientou-o inicialmente no sentido da nascente escola “nacional” americana – chegou mesmo a escrever Pocahontas, uma composição coreográfica.
 
Como vários outros músicos americanos, rumou a Paris, para se aperfeiçoar junto de Nadia Boulanger, obtendo em 1935 um doutoramento em música pela École Normale de Paris. Se mais tarde voltaria costas à orientação neo-clássica de então (e, por exemplo, também se distanciou do “período neo-clássico” de Stravinsky, compositor de quem no entanto recolheu a complexidade de A Sagração da Primavera), Carter permaneceu sempre “o mais europeu dos compositores americanos”.
 
É então interessante equacionar essa caracterização, por um lado, e o facto de ter tido o contacto inicial com Ives, o “fundador” dessa música americana, no que tem de mais intrinsecamente original, de um novo “continente musical” mesmo. Se Carter se aparta de Ives na utilização de “música correntes” (fanfarras, hinos), irá no entanto aproximar-se dele, de modo muito próprio, num aspecto capital: uma constante mobilidade de eventos, de sucessão (e/ou sobreposições) de tempos, formulado “modulações métricas” ou uma polifonia das próprias dinâmicas. Em 1951, com o Quarteto nº 1, Elliot Carter reinventa-se, ou mesmo “inventa-se”, no sentido em que passou o ser uma personalidade musical original e reconhecível.
 
Carter é um compositor da racionalidade e da complexidade trabalhando sobre grupos de acordes, o caso mais extraordinário (e incrivelmente difícil) sendo o uso simétrico e invertido de acordes de todas as 12 notas, na prodigiosa obra que é Night Fantasies (1980) para piano. Mesmo um compositor-intérprete como Pierre Boulez reconheceu que inicialmente teve dificuldades em compreender a complexidade das obras de Elliot Carter.
 
Mas a noção de ritmo que lhe é própria permitiu estruturar (e de algum modo “estratificar”) um sentido único do tempo e da mobilidade. Desde o citado Quarteto nº1, Carter concebeu a sua música como uma espécie de argumento para “dramatis personae”.Isso verifica-se nos quartetos, cinco, e nas obras orquestrais e concertantes – e não por acaso tem escrito tanto concertos e obras com solistas, com destaque para o Duplo Concerto para Piano, Cravo e Duas Orquestras de Câmara (1961), o Concerto para Orquesta (1969) a Sinfonia de Três Orquestras (1976) ou o já citado Asko Concerto, ou ainda no modo como faz uso de diferentes andamentos, ou “quadros”, numa obra. É essa mobilidade e “dramaticidade” que permitem a percepção e a claridade de uma música tão complexa.
 
Parabéns Elliot Carter!
 
 
 
NB – 1) Há um sítio dedicado à programação comemorativa do centenário de Carter, www.carter100.com ; 2) Na Casa da Música, nas celebrações do duplo centenário de Messiaen e Carter, ouvir-se-ão quatro importantes obras, Tempo e Tempi e Reflexions, amanhã às 21h, e Asko Concerto e Three Occasions for Orchestra sábado às 18h.

 

Parabéns aos Mestres!

 

 
Manoel de Oliveira, cineasta, português, e Eliott Carter, compositor, norte-americano, são os decanos da arte mundial. Por espantosa coincidência, nasceram ambos a 11 de Dezembro de 1908 e continuam em actividade (Louise Bourgeois é três anos mais nova). Parabéns pois a estes dois mestres no seu 99º aniversário.