Com um intervalo de menos de uma semana apresentaram-se na Gulbenkian dois excelentes quartetos de cordas, com programas estruturalmente análogos: uma obra nova, e em 1ª audição em Portugal, estreada por cada um desses quartetos e até ao momento só do reportório deles, Improvisation IV – “L’électricité de la pensée humaine” de Emmanuel Nunes pelos Diotima, o Quarteto nº 2 de Heinz Holliger pelos Zethemair, precedida por uma obra menos usual, respectivamente os Quartetos de Berg e Bruckner, e seguidas de obras das mais consagradas e admiráveis, o Quarteto nº14, “A Donzela e a Morte” de Schubert e o Quarteto op. 135 de Beethoven.
Acresce ainda que tanto um como outro quarteto seguem práticas pouco ou nada habituais: nos Diotima há a registar a alternância de 1º e 2º violinos; os Zethemair, que em anterior passagem pela Gulbenkian tocaram de pé, estiveram desta feita sentados, mas tocando as obras sem partitura (o que é um tour de force numa formação que tanto exige da coordenação exacta como o é o quarteto de cordas), excepto na obra de Holliger, interpretada com partitura mas colocada nas estantes em sequência, evitando qualquer desfasamento no voltar de páginas. E pode ainda acrescentar-se a coincidência do nome de um quarteto, “Diotima”, ser colhido em Hölderlin, referência fundamental de Heinz Holliger inclusive neste Quarteto nº2.
No Quarteto op. 3 de Alban Berg os Diotima optaram por uma interpretação de grande concentração, áspera e resolutamente modernista, sem o lado mais lírico e de reminiscências tardo-românticas que também existem na obra. Do mesmo modo na “Donzela e a Morte”, a sua leitura foi vibrante e de grande dramatismo, eventualmente à falta também de alguma expansividade lírica.
O pensamento musical de Emmanuel Nunes é eminentemente orquestral ou de formação de câmara alargada. Não é a Improvisation IV que desmente essa constatação. Mas a obra tem, em relação a outras do autor, uma qualidade a anotar, a concisão – de facto demora muito menos que os cerca de 25 min. indicados no programa. É aliás um interessante ciclo de variações, que todavia repete de modo algo enfadonho algumas características da escrita de Nunes tornadas verdadeiros “tiques”, como as frases ziguezagueantes e os tremolos.
No concerto dos Zethemair, a raridade do Quarteto em dó menor de Bruckner, obra menor, de aprendizagem, e aliás só identificada em 1950 (portanto mais de 50 anos após a morte do autor), pouco mais foi que uma introdução, ainda assim tendo sido interessante que os intérpretes sublinhassem a sua filiação em Mendelssohn, quando Bruckner, pelas suas grandes Sinfonias, está associado ao campo oposto, wagneriano. Depois veio o momento inolvidável e transcendente, a obra de Holliger.
Recordo que o músico suíço é um proeminente oboeísta e maestro também – dele a Gulbenkian já apresentou o maravilhoso Scardanelli Zyklus (Scardanelli sendo um nome adoptado por Hölderlin), seguramente uma das obras mais extraordinárias das últimas décadas, e já lhe dedicou um ciclo, em que além da apresentação de obras suas, Holliger foi também instrumentista e maestro.
Estreado em 2008, o Quarteto nº 2 revela o conhecimento íntimo da escrita instrumental, com uma variedade assombrosa de recursos, glissandi, pizzicatti, col legno, etc. Hölderlin e Celan são referências numa obra que contudo é prodigiosa antes do mais pelo conhecimento das possibilidades do quarteto de cordas, tão importante na História da música europeia (e essa noção da historicidade é da maior importância na obra), o único “género” praticado ininterruptamente desde o classicismo vienense.
O Quarteto é num único andamento, mas com seis partes, e faltam as palavras para falar da última daquelas, absolutamente assombrosa, qual “música das esferas” no seu jogo dos harmónicos – é uma obra magnífica, absolutamente magnífica, cujos ecos perduram ainda.
O choque foi de tal modo que na 2ª parte do programa o derradeiro Quarteto de Beethoven (embora não o mais extraordinário no portentoso conjunto dos últimos Quartetos) quase soou como um anti-climax – era a música de Holliger que perdurava.
A 1ª audição em Portugal deste Quarteto nº 2 de Heinz Holliger foi um acontecimento como raros.
Ao contrário da anterior, estas duas notícias, referentes à Casa da Música, não são novas, datam mesmo já de há meses, mas vem a propósito abordá-las – tinha aliás dito em tempos que me propunha uma abordagem sistemática das programações e questões correlativas do São Carlos (quanto a este, aqui, aqui e aqui), Gulbenkian, Casa da Música e CCB, as macro-instituições culturais.
Com escasso intervalo, António Jorge Pacheco foi anunciado em Junho como sucessor de Pedro Burmester na direcção artística e em Julho cessou uma curta experiência de cinco meses de Dalida Rodrigues na direcção de Comunicação e Marketing, um óbvio “erro de casting”, pouco conforme às suas capacidades – e é gratificante que entretanto lhe tenha sido endereçado por Paula Rego o convite para dirigir o futuro museu em Cascais, a Casa das Histórias.
O que parece bizarro é a determinação do administrador-delegado, Nuno Azevedo, de não preencher esse cargo de direcção de Comunicação e Marketing. Sabe ele perfeitamente, por certo, que essa é uma área vital, e por exemplo, no recente ciclo “À Volta do Barroco” creio que houve uma falta de investimento promocional específico - bem como até, no caso, de envolvimento do Serviço Educativo. E uma instituição como a Casa da Música não pode deixar de ter devidamente um Gabinete de Comunicação e Imprensa.
Quanto à saída de Pedro Burmester (na imagem), “pai” do projecto, ela teria de ocorrer mais cedo ou mais tarde, e não muito mais tarde, sob pena de comprometer a carreira artística própria do pianista. Do que foi a génese do projecto, do que foi já consolidado, lhe somos amplamente devedores – mesmo que em relação aos moldes com que o projecto foi anunciado haja coisas importantes por cumprir, o que já explicarei.
Em excepção ao que digo abaixo, compreendo que neste caso não tenha havido concurso público. António Jorge Pacheco está no projecto desde o início, é mesmo a única pessoa que sempre esteve no projecto, sem interrupções (já que Burmester esteve mais de um ano afastado dado o conflito com Rui Rio), é o principal obreiro do Remix, agrupamento de excelência da Casa, e tem também estado muito ligado à programação da Orquestra Nacional do Porto.
Mas isto dito, justificada a nomeação, e desejando-se os melhores auspícios ao novo director, há também que chamar a atenção para algumas reservas.
António Jorge Pacheco tem grandes responsabilidades no modo canhestro como surgiu primeiro uma híbrida Remix Orquestra e depois enfim a Orquestra Barroca Casa da Música, que ainda é muito frágil, e devia ser uma das prioridades. Sobretudo, 1) o modo como fez inscrever internacionalmente o Remix Ensemble ocorreu basicamente segundo a doxa vigente, com pouca autonomia e, 2) retomou da Gulbenkian o favoritismo nunesiano: foi indisfarçável intermediário fundamental na tristemente célebre entrevista de Emmanuel Nunes ao “Público” em que este, intriguista, anunciava ele próprio a próxima saída de Paolo Pinamonti do São Carlos; mesmo depois da catástrofe de Das Märchen (já estaria previsto antes, mas isso não altera o fundamental), Pacheco programou para Setembro do próximo ano uma nova obra de teatro musical de Nunes, em que o nepotismo chega ao ponto do dispositivo cénico ser do próprio compositeur portugais e da sua mulher e biógrafa, Hélène Borel, a qual é também responsável pelos figurinos!
A Casa da Música é demasiado importante e, por muito que falte ainda consolidar, já se impôs largamente. Como disse, compreendo neste caso a excepção à regra que defendo dos concursos públicos, e desejo os melhores auspícios ao trabalho directivo de António Jorge Pacheco. Mas também por isso mesmo as reservas ficam desde já claramente enunciadas.
Com a sua habitual morosidade, a Gulbenkian anunciou finalmente a nomeação de um novo director do Serviço de Música, processo iniciado em Fevereiro, e referido em Maio aqui e aqui. Dir-se-á que num tal concurso internacional é necessário uma cuidada ponderação, mas também por mim acrescento que há dois meses que sabia que a decisão estava tomada e o perfil do escolhido. Com a habitual discreção da Gulbenkian o anúncio oficial é o constante aqui.
É pois o finlandês Risto Nieminen (na imagem), actual director do Festival de Helsínquia, que foi nomeadamente administrador da Orquestra Sinfónica da Rádio da Finlândia, director artístico do IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique) do Centro Georges Pompidou, em Paris, e que integrou a Direcção da Associação Europeia de Festivais, que em Abril de 2009 substituirá o actual director, Luís Pereira Leal - que ao longo de três décadas conduziu o Serviço de Música a níveis de excelência ímpares no país, em qualquer campo artístico e cultural. E é uma escolha que, à priori, se afigura justificada.
A invulgaridade da situação em Portugal, bem como o facto de durante anos ter sido expectável uma solução simplesmente sucessória, ou dinástica, com a passagem de testemunho, ao director-adjunto, Rui Vieira Nery, justificam alguns comentários.
Em primeiro lugar, e como princípio geral, acho preferíveis os concursos públicos – e no caso da Gulbenkian, como já o disse, espero que o mesmo venha a suceder no ora moribundo Centro de Arte Moderna. Sou evidentemente favorável a tal princípio nas grandes instituições públicas e de parceria público-privado, e se bem que saiba ser difícil (não só em Portugal) a tutela prescindir de se implicar na nomeação dos directores dos teatros nacionais, entendo que, como de resto está previsto no programa do actual governo (mas também neste caso sem efeito), o governo deve sim nomear as administrações que depois encetariam o processo de escolha do director artístico.
Acresce que justamente o grande nível de programação da Gulbenkian mais justifica uma escolha nestes moldes. Mas sucede também que são muitas as rotinas, que os públicos não se renovam (é-me aflitivo ir aos concertos e continuar quase só a ver as mesmas pessoas de há 30 anos), que há que encontrar outras formas de programar – e, de um modo geral, uma perspectiva vinda do exterior, um olhar novo, pode ser muito benéfico, no caso tanto mais quanto os nórdicos têm usualmente uma experiência de organização diversificada de concertos.
Se essas são as razões fundamentais, terei ainda de dizer, com toda a admiração intelectual e grande amizade, que Rui Vieira Nery não me parecia ter o perfil adequado para suceder a Luís Pereira Leal, por três ordens de razões: 1) dificuldades executivas, como as que se evidenciaram na sua passagem pela secretaria de Estado da Cultura; 2) menos interesse e conhecimento numa área de grande lastro da Fundação e em que esta não pode deixar de se manter uma entidade importante (embora, espera-se bem, com menos favoritismo a Emmanuel Nunes), a música contemporânea, área em que pelo seu perfil, designadamente no IRCAM, Nieminen apresenta todas as garantias; 3) enfim, como já fiz notar, até porque a área de programação directamente a seu cargo, a de música antiga, era nos últimos anos a que se vinha apresentando mais burocrática na programação geral, o pior sendo mesmo a presente temporada, em que é por inteiro dedicado à música no Brasil colonial, opção temática que faria toda o sentido quando havia ainda as Jornadas de Música Antiga, mas é muitíssimo limitativa no quadro de toda uma temporada. Mas espero também que o saber e as enormes capacidades intelectuais de Rui Vieira Nery possam no futuro traduzir-se em algo de mais substancial que a “prateleira” à “boa maneira” da Gulbenkian que entretanto lhe arranjaram, um Programa de Educação pela Arte.
Entretanto aguardemos auspiciosamente Risto Nieminen e, quando for ocasião, presta-se a Luís Pereira Leal a devida homenagem de reconhecimento.
Antes do mais, a obra – estra concreta ópera, Das Märchen, e a obra de Emmanuel Nunes, em geral.
Sim, “complexidade” e “rigor” são termos que sempre ocorrem a propósito de Nunes. Há um outro modo de considerar essa obra, sem desmentir essas caracterizações: por muito que pense e evoque, não me ocorre uma escrita musical hoje tão estritamente “ontogenética”. Com isso quero referir-me à “rigorosa” obsessão com as potecialidades de uma matéria musical, e tão só com a “complexidade” dessa composição.
Exemplos maiores são os dois vastos ciclos de obras, o centrado em Ruf e o outro, a partir de Nachtmusik I, designado como “A Criação”. Não duvido, de modo algum, que são dois vastos exemplos de “construtivismo musical”, sejam susceptíveis de detalhadas análises. A questão é que a “análise musical” pode ser frutuosa e esclarecedora, é com certeza um indispensável utensílio de aprendizagem e saber, mas não é si mesma “música”. E a música é eminentemente uma arte de dimensão pública.
Como no caso de um Boulez, há também em Emmanuel Nunes essa espantosa capacidade de expôr num acorde inicial as premissas da matéria musical – e o acorde inicial de Das Märchen é um exemplo portentoso. Mas, sem prejuízo da exigência de “rigor” e de “complexidade”, há uma inteligibilidade da matéria que, dada a dimensão pública da arte da música, não é suposto confinar-se apenas ao caracter estritamente “ontogenético” dessa matéria, sob pena de a percepção das próprias lógicas construtivas ficar restrista ao autor e aos seus especialistas.
Pois que falei em Boulez, cujo pensamento musical é um influxo central em Emmanuel Nunes (mais, muito mais do que um também tantas vezes evocado Stockhausen, do qual em Nunes apenas sinto as visíveis marcas de Gruppen), também recordarei que, desde o início dos anos 80, desde o extraordinário Répons, e com base contretamente também na sua tão fecunda experiência de intérprete, noções como a de “trajectória” e de “escuta” lhe passaram a ser axiais. Ora, o que é radical em Nunes - em sentido literal, de raíz – é o fechamento à perspectiva de qualquer dimensão ou parâmetro que não seja apenas o das potencialidades ontogénicas da sua matéria musical. É um pensamento unicitário e anti-dialógico, que exclui qualquer possibilidade de um Outro. Donde, a escuta pode interessar-lhe enquanto a sua própria escuta do material que elaborou, mas não fundamentalmente nos termos próprios da dimensão pública. Dito de outro modo, é também um pensamento voltado para o interior do labirinto da sua complexidade, e desse modo fortemente entrópico.
De facto, o “discurso sobre Nunes”, a “doxa” ciosamente constituída, é também o de uma “verdade revelada”, de que o garante é o próprio compositor e tão só ele. Isto são características gerais, que evidentemente não desmentem ou excluem a fertilidade de um pensamento musical e de algumas obras admiráveis – a meu ver Ruf e Quodlibet sobretudo. Mas que também sugerem uma prudência acrescida ao modo como as referências alardeadas pelo compositor e as suas declarações se tornam “verdades incontestáveis”, quando há também que as situar em termos de recepção – e de recepção crítica.
Um tão acentuado pendor entrópico seria sempre uma questão que acrescidamente se colocaria perante uma ópera, uma obra que exige uma realização cénica e um outro tipo de percepção e recepção. Ainda assim, e porque apesar de ter uma posição de prevenção e de distância crítica, a grandeza do compositor Emmanuel Nunes não deixa de me ser evidente, não suporia que esse radical alheamento de um qualquer Outro e das coordenadas concretas de um espectáculo de teatro musical e dos espectadores fosse tão extremo mesmo em Das Märchen.
Eis uma “ópera” que, como muitos poucas (só me ocorre essa tentativa de escrita das Tábuas da Lei que é o Moses und Aaron de Schönberg), intenta fazer jus à raíz do termo, isto é, ser “a Obra”.
Ao trabalhar sobre Das Märchen de Goethe, ou simplemente “o conto” (embora deva ser entendido mais especificamente no sentido de “conto maravilhoso”), Emmanuel Nunes não realiza apenas a sua obra mais ambiciosa mas uma moralidade na sequência da Flauta Mágica de Mozart, nem menos (e já agora, de A Mulher sem Sombra de Hoffmansthal e Strauss – mais uma coincidência que propriamente uma referência, que não é por certo para Nunes).
O que a ópera também revela, e é facto que tem de ser devidamente escrito, com todas as letras, é que o compositor, sendo um autor cultissimo, não tem todavia a menor cultura teatral e cénica. Neste aspecto, crucial, Das Märchen é de facto uma obra espantosa, de inanidade.
Emmanuel Nunes, compositor do eixo franco-alemão de origem portuguesa (e que é “compositor português” quando devidamente lhe convém, como se sabe, quando se trata de obter o apoio e as garantias de mandarinato de entidades e poderes portugueses), foi apresentando o caminho para Das Märchen em várias obras intituladas Épures du serpent vert (a personagem principal do conto de Goethe é uma serpente verde). Recentemente, o Remix, sob a direcção de Peter Rundel, apresentou e gravou mesmo (conjuntamente com Duktus), as Épures du serpent vert II, obra espantosa de incandescências e invenções tímbricas, correspondendo ao “desenho” das partes 2 e 3 da Cena I da ópera.
Não me está em dúvida a invenção do material, e apesar da sua duração de 1h58’ (“batendo” inequívocamente a 1h45/1h50 do Acto I do Parsifal de Wagner nas leituras mais lentas), o Acto I de Das Märchen ainda me afigura de grande riqueza, apesar de, entre outros, dois aspectos: a falta de inteligibilidade da concepção dramática e a banalidade da escrita coral, este último um aspecto que, devidamente ponderado e atendendo a já infelizes exemplos anteriores (73 Oeldorf- 75 II, Vislumbre ou Machina Mundi), até não de será de todo surpreendente, mas que a este nível de banalidade é embaraçante num compositor da envergadura de Nunes. Sendo até mais curto, o Acto II é no entanto o da confirmação da catástrofe.
Entendamo-nos sobre os “discursos sobre Nunes” e a “doxa” constituída: não é pelo facto do compositor invocar a Fenomenologia de Husserl que uma “fenomenologia do tempo” se torna constituítiva da sua obra; pelo contrário é até com alguma frequência um dos seus aspectos mais problemáticos – no epílogo de 47’ minutos de Das Märchen essa questão chega mesmo a um patamar exasperante.
Com obstinado rigor, sem dúvida alguma, Emmanuel Nunes concretizou esta ópera com uma conjunção de meios de todo inédita, co-produção do São Carlos, da Casa da Música e da Gulbenkian (além do IRCAM, no tocante à realização electroacústica) reunindo o Remix, a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro de São Carlos e ainda, segundo o que é referido no programa, com a colaboração da Companhia Nacional de Bailado – já agora lembrando eu que originalmente estava sim previsto o Ballet Gulbenkian, pelos vistos removido da memória pública. E nem estou sequer agora a falar de um empenhamento directo dos responsáveis do Ministério da Cultura, isto é, do poder político, na solicitação de meios para uma extravagante operação de teledifusão e de um “oportuno” colóquio de “consagração” – isto sem falar mesmo do que não pode ser esquecido, isto é, das intrigas directas do compositor com vista à alteração da direcção artística do teatro, objectivo logrado, como se sabe.
Pode então perguntar-se, e pergunto eu: estes meios todos para quê? Como é por exemplo admissível, nos precisos termos do rigor que se reconhece em Emmanuel Nunes, que uma imensa percussão todavia mal se ouça, perdida no trajecto entre o Salão Nobre, para onde teve de ser remetida por óbvios motivos logísticos, e a sala? Que “rigor” há na banalidade da escrita coral? Que “rigor” há na participação de um grupo de bailado que o compositor quis desde o princípio e para o qual não tem nenhum pensamento constituído? O que pensa Emmanuel Nunes que é o teatro musical: uma inacreditavelmente dispendiosa récita de “kindergarten”?
Há em Das Märchen, o conto de Goethe e a ópera de Nunes, umas personagens de relevo que são os Fogos-Fátuos. Lamentavelmente, e apesar das belezas que na obra também há (e repito que, apesar da vacuidade da concepção dramática, as quase duas horas do Acto I me surgem de grande beleza musical), Das Märchen é um Fogo-Fátuo, com uma encenação atroz no seu simples propósito “ilustrativo”, e mesmo que com uma realização musical empenhadíssima, na direcção de Peter Rundel e também, há a assinalar, contando com um cantor de excepção, o baixo Mathias Hölle.
Lamento, sinceramente lamento, em primeiro lugar pela simples razão “egoísta” de que não gosto de me chatear num espectáculo (e já me tinha bastado o que sofri no Rigoletto), em segundo lugar porque as questões contemporâneas da ópera me interessam como poucas, em terceiro lugar porque tenho o devido respeito e admiração, tantos vezes reiterados, pela obra de Nunes, que venho seguindo de há muito e sobre a qual venho escrevendo faz 30 anos; lamento, lamento sinceramente, mas enquanto objecto-ópera, nos seus próprios termos programáticos, Das Märchen afigura-se-me um desastre muito para além de tudo o que se poderia recear.
Não vejo “promessa” ou “aurora” alguma na obra, tão só os fogos-fátuos de uma ópera enquanto manifestação do poder.