O “escândalo” associado a uma insistente tendência alemã de encenacão de teatro e opera, tendência que se prenuncia na nova temporada do São Carlos, pode tambem por vezes ser fundado em equívocos. O nome Christof Loy talvez diga pouco aos leitores e melómanos portugueses, mas muitos se recordarão do “escândalo” ocorrido quando o encenador de uma Ariana em Naxos na Royal Opera House de Londres recusou a anunciada protagonista, a soprano americana Deborah Voigt, por a achar digamos que demasiado “volumosa” para os figurinos da personagem. Esse encenador era Christof Loy, o mesmo que é responsavel pelo Fausto de Gounod nesta proxima temporada do Sâo Carlos. Nesse caso até sucede que, como a imprensa mesmo a mais “séria” tende cada vez mais a destacar os acontecimentos que sugerem “escândalo”, a história estava mal contada: tratava-se de uma reposicao e Loy achou, correctamente no plano dos príncipios, que não podia aceitar uma nova intérprete convidada sem ele ter sido consultado, e com características físicas que entendia obrigarem a desfigurar elementos da sua encenacâo. Isto evocado para lembrar quantas vezes o “escândalo” é artificialmente mediatizado, convém entao definir parâmetros estéticos.
Ao longo de já muitos anos de crítica, sempre me interessou particularmente a encenação de ópera e recorrentemente fiz notar como como a renovacão do género vem sendo nas ultimas décadas em grande parte fruto do trabalho de alguns encenadores. Várias das minhas mais intensas experiências e emoções estéticas fundaram-se também no trabalho em ópera de encenadores como Giorgio Strehler, Luca Ronconi, Patrice Chéreau, Peter Stein, Luc Bondy, Bob Wilson ou Peter Sellars. Mas o que vem sendo praticados nos teatros alemães, o designado “regietheater”, e que corresponde em opera ao chamado “ekeltheater” (“teatro de nojo”) e à equivoca teorizacao de um “teatro pós-dramático”, interesssa-me muitíssimo pouco, para não dizer, em termos de crítica “parcial, politica e apaixonada”, que tenho antes tendência a ser frontalmente contra.
Não me interessa absolutramente nada a “actualização” como imperativo, o desejo de “escândalo”, a prática de arbitrariedades. E Loy mas ainda mais Konwitschny são expoentes desse “regietheater”. Dou um exemplo, para não me ficar em termos genericos que poderão parecer apenas preconceituosos: na encenação de Konwitschny do Don Carlos de Verdi na Opera de Viena (Don Carlos com “s” que era o original francês e mesmo, coisa rarissima, integralmente), na cena do auto de fé, surgia no palco um ecrã com uma apresentadora a anunciar o “evento” enquanto, como ligacão das imagens para a sala, os condenados entravam no átrio do edificio, e folhetos eram distribuídos aos espectadores na plateia, enfim, o género de coisa “modernaça” para fazer a tal “actualizaçãoo” e envolver os espectadores – e exercício disparatado de arbritariedade sim!
Acrescento que depois do seu trabalho em Das Märchen de Emmanuel Nunes nada recomendava que Karoline Gruber regresssassse – e é ela que se anuncia para a nova producao da Salomé, bem como para uma das duas óperas dpo novel Estúdio de Ópera, The Telephone de Menotti. Enfim, já apresentada na temporada anterior, retoma-se na proxima A (pequena) Flauta Mágica (mas que desta feita sera cantada em português – talvez alguem se tenha enfim dado conta, não sei, que existe a tradução portuguesa de Maria de Lurdes Martins, apresentada no Trindade em 72), a qual, destinando-se a criancas, é um resumo incorrrecto (não consigo perceber como se pode eliminar Sarastro na cena final, e foi isso que vi em palco), e a qual, de resto, é eticamente abusivo anunciar como “produção da Ópera de Colonia” quando de lá provem apenas o “conceito” da encenação de Eike Eicker, o fundamental sendo o uso de desenhos de estudantes de escolas portuguesas.
Nada disto é promissor, muito pelo contrário, E sem qualquer chauvinismo, e na recusa de tal, é mesmo inaceitavel esta transformacao do São Carlos em teatro alemao de segunda ou terceira ordem (ainda por cima, com os cantores a menos), o que de resto é um quadro restritivo de perspectivas e cosmopolitimo, e antes um outro modo provinciano, no caso “deslocalizado”. E énesses termos, creio, e nao em si pelo facto do actual director do teatro ser alemão, que importa discutir e mesmo contestar as opções ora vigentes no único teatro nacional de opera português.
Enunciar uma perspectiva acentuadamente crítica de uma temporada anunciada pode parecer exercício exorbitante, se não mesmo tendencioso. Se, contudo, eu disser que a próxima Temporada 2008-09 da Gulbenkian confirma níveis de excelência, e seleccionar alguns destaques de ainda mais especial expectativa de excelência (o que farei em breve), o facto será considerado conforme ao que se espera de um crítico. Como tal, e numa mesma ordem de razões, afigura-se-me legítimo e pertinente enunciar as razões pelas quais acho bastante problemático, mesmo lamentável, o horizonte que se desenha para o São Carlos.
Devo, é certo, fazer um “mea culpa” por não ter formalizado um balanço da temporada anterior, sendo que é a concreta experiência dessa que mais fundamenta muitas das reservas que enunciarei. Mas, sucedendo isso, também direi que sendo indesmentivelmente ora o São Carlos um caso de posicionamentos antagonistas, de Pinamonti “versus” Dammann, também tive, por exemplo, ocasião de fazer notar que as responsabilidades que já eram assacadas ao novo director, em concreto a desastrosa encenação do Rigoletto, eram ainda de facto uma aposta do anterior.
E pois que falo em concreto de Pinamonti e Dammann acrescento – até para enquadrar em devidos termos algo que me importa dizer – que já tive ocasião de recordar reacções havidas justamente quando da nomeação de Pinamonti. Como alguns se lembrarão, logo após a demissão de Manuel Maria Carrilho de ministro da Cultura, o director do São Carlos, Paulo Ferreira de Castro, apresentou também a sua demissão. Quando passado algum tempo o então novo ministro José Estêvão Sasportes anunciou Paolo Pinamonti como director do teatro o ex-ministro Carrilho teve um reflexo despeitado e reaccionário, considerando inconcebível que um estrangeiro viesse dirigir um teatro nacional português. Para além do des-gosto que tal reflexo me suscitou, não pude deixar de sorrir: tal reacção lembrou-me a “indignação” manifestada em França quando o alemão Rolf Liebermann foi convidado para director da Ópera de Paris – e depois, como se sabe, foi ele que a retirou do plano inclinado e lhe deu de novo brilho.
Acrescento ainda, e poderia invocar inúmeros exemplos nas minhas tomadas de posição ao longo dos anos, que sou fundamentalmente cosmopolita e alérgico a chauvinismos, e mais ainda em termos de arte em geral e de ópera em particular, sendo até que neste caso da ópera as diversas tradições nacionais só podem ser apreciadas em devidos termos no quadro de um cosmopolitismo genérico.
Isto tudo dito, entremos na matéria para desde logo dizer que Christoph Dammann, ex-director da Ópera de Colónia (de onde não saiu propriamente aureolado de prestígio) e (só) agora pleno directo artístico do Teatro Nacional de São Carlos, está a proceder a uma “deslocalizaçãso” de um hegemonismo inaceitável, sendo que das oito produções anunciadas para a nova temporada, três, todas as três “importadas”, provêm de teatros alemães, as óperas de Frankfurt, Leipzig e Colónia, e uma outra, nova, é uma co-produção com um teatro alemão de terceira ou quarta categoria, o de Erfurt.
Vamos então a alguns aspectos concretos.
Na temporada passada, a quase única produção de total responsabilidade de Dammann foram uns Contos de Hoffmann de Offenbach encenados por Christian van Götz, que foi aliás um dos mais vergonhosos espectáculos de ópera que alguma vez vi – e não é que tenha pouca experiência de desastrados espectáculos de ópera. Ora, na tradição dos teatros alemães, há duas óperas francesas que são presenças recorrentes, de resto porque ambas de inspiração literária alemã: Os Contos de Hoffmann e o Fausto de Gounod. Pois se Os Contos houve na temporada anterior, eis logo que para a próxima se anuncia…o Fausto.
Deve dizer-se que Dammann apresenta três encenadores alemães de notoriedade, Christof Loy, Peter Konwitschny e Michael Hampe. Digo desde já que por muitas razões desde logo dispensava o segundo e o terceiro, aliás por motivos opostos.
Michael Hampe foi o “encenador de serviço” do Festival de Salzburgo durante os anos finais da “era Karajan”. Depois disso, e por certo com razões de sobras, nunca mais lá o chamaram. Por mim, disse as vezes bastantes que o acho “o mais chato encenador do mundo” para não o repetir agora. Quanto aos outros dois, mas sobretudo Konwitschny, confesso, com indesmentível perversidade, que já antevejo com um sorriso irónico o que poderão vir a ser as reacções em São Carlos, com a crescente “conservadorização” do seu público, às encenações deles, às quais está usualmente aposta a expressão “skandal”, quase que em jeito de imperativo categórico, com tudo o que supõe também de gesto gratuito.