Vai fazer agora dez anos [fez agora vinte anos] que, com júbilo, soubemos a notícia da queda do Muro de Berlim. Os cidadãos de Berlim Leste e da Republica Democrática Alemã iam finalmente poder respirar a liberdade e escapar-se das malhas opressivas do socialismo real. O que no júbilo do momento não intuímos é que acabava também uma parte da História e das nossas vidas, dos que moravam lá ou que, como eu, muitas vezes lá iam, desses que tínhamos a vivência de Berlim Oeste, cidade cercada por muro e arame farpado, ilha rodeada de comunismo por todos os lados.
Como era essa vivência? Frenética, respirando sofregamente cada dia e ainda mais cada noite, como se pudessem ser os últimos das nossas vidas, já que se existia à face do planeta um ponto em que a realidade dos blocos antagónicos e da possibilidade de guerra nuclear era bem perceptível, esse ponto era Berlim.
Íamos até à esquina de Friedrichstrasse e Ecktrassse, ao “Checkpoint Charlie”, posto fronteiriço entre os sectores americano e soviético, onde, com um carimbo no passaporte, podíamos passar de um lado para outro da cidade dividida. Íamos até ao bairro pobre de Kreuzberg, junto a esse edifício de Siza Vieira, bem junto ao muro, onde alguém escrevera “Bonjour Tristesse”.
Procurávamos os rastos de Berlim de antes da guerra. De dia, os rastos da metrópole cuja vivência Walter Benjamin relatara em Infância Berlinense“Não encontrar o caminho numa cidade não é muito importante, mas perder-se numa cidade, como as pessoas se perdem numa floresta, exige prática... Aprendi essa arte muito tarde”. À noite, os rastos dos “cabarets”, das Marlenes Dietrich e Sallies Bowles que Christopher Isherwood narrara em Goodbye Berlin (base de Cabaret, o espectáculo teatral e depois o filme).:
Como eram intensas as noites de Berlim Oeste! Íamos ao Hebbel e à Schaubünhne, dois dos mais importantes locais de actividade teatral do mundo, ao “Terzo Mondo”, uma taberna grega que era ponto de encontro de cinéfilos e de convívio de imigrantes do Sul da Europa (até gregos e turcos confraternizavam), ao Metropol, uma antiga igreja de que se mantinha a fachada mas que no interior se transformara em templo de rock, ou a discotecas, clubes ou cervejarias de Kreuzberg. Eram longas noites, e quando a madrugada chegava, sabíamos que tínhamos conseguido viver mais um dia.
Por vezes passávamos para o lado de lá, à superfície, em “Checkpoint Charlie”, ou subterraneamente, na estação de metro de Friedrichstrasse. Então, íamos até ao mais jovem e intelectual bairro de Berlim Leste; Pranzlauerberg.. Eventualmente subíamos ao alto da torre das telecomunicações em Alexanderplatz, o único ponto em que se avistava todo a grande cidade, como se não houvesse Oeste e Leste, como se não houvesse um céu também dividido — Der Geteite Himmel, título de um romance de Christa Wolf, esse onde Wenders pôs anjos em Der Himmel über Berlin/O Céu Sobre Berlim que por cá se chamou As Asas do Desejo. Por mim, ia frequentemente à Komische Oper, ali tão perto do muro e da Porta de Brandenburgo, ver espectáculos com encenações de Walter Felsenstein, Joachim Herz ou Harry Kupfer.
Depois veio o júbilo e toda essa imensa alegria, dos que a Leste se tinham manifestado proclamando “wir sind der volk/ nós somos o povo”, e dos que a Oeste os acolhiam, até saudando esses muitos poluídores Trabants, os quase arqueológicos carros da RDA, cheios de gente que vinha respirar a liberdade e começar a descobrir o consumismo ocidental nos grandes armazéns do KaDeWe. E, inversamente, passámos a ir de Oeste a Leste sem guardas-fronteiriços a espreitarem-nos de alto a baixo, já sendo solicitados para um pequeno tráfico de cigarros americanos, dólares ou marcos ocidentais, junto à estação de metro de Alexanderplatz, ou dentro dela.
E depois a RDA desapareceu e Berlim passou a ser uma única cidade, com esse imenso deserto onde antes o muro se erguera, em Postdamerplatz, bem no centro da cidade, em “Berlim-Mitte”; e depois, nesse mesmo local começou o estaleiro das grandes construções, como a torre da Daimler-Benz, projectada por Renzo Piano, um dos pólos de um triângulo que hoje inclui também a cúpula transparente, desenhada por Norman Foster, do velho Reichstag de tão sinistras memórias (hoje resgatado e sede do Parlamento da nova Alemanha una e democrática) ou a espectacular Passage interior de Friedrichstrasse, devida a Jean Nouvel, que com o Museu Judaico de Daniel Liebeskind são referências obrigatórias nesse grande museu de arquitectura que é a nova Berlim.
Mas o muro desapareceu mesmo? Ao longo de dez anos não temos deixado de nos interrogar sobre o Mauer am Kopf, o “muro na cabeça”, essa divisão mental e cultural que ainda permanece entre os wessies, os do Oeste, e os ossies os de Leste, estes inclusivamente exibindo marcas do exército soviético e daquela estética oficial da RDA que, na sua mistura de prussianismo e estalinismo, era ainda mais tenebrosa que a da União Soviética — e esses são sinais visíveis da ossienostalgie, da nostalgia pela velha RDA, campo onde manobram e se alimentam os comunistas mas também a extrema-direita.
Sucede que agora às noites podemos ir ao cosmopolita “Newton Bar”, ao pé de Friedrichstrasse, mas não longe dali fica o “Tresor”, discoteca instalada um antigo “bunker”, onde alternam noites jovens e “techno”, festas durante o Festival de Cinema e celebrações da velha RDA.
E é percorrendo hoje as ruas e sobretudos os locais nocturnos de Berlim que nos sucede ter não nostalgia mas melancolia (“exactamente porque o carácter melancólico é perseguido pela morte, são os melancólicos que melhor sabem decifrar o mundo”, escreveu Susan Sontag no seu ensaio sobre Walter Benjamin, Sob o Signo de Saturno), melancolia por essa Berlim Oeste que, afinal, também ela acabou com a queda do muro e a reunificação.
Berlin bleit doch Berlin, Berlim continua a ser Berlim; mas será a mesma? Não, já não é, porque felizmente o muro abateu-se e com ele o socialismo real, mas não deixemos de estar atentos ao muro que permanece nas cabeças e não queiramos recalcar a melancolia que também envolve a nova condição de uma cidade una e democraticamente regida.
As noites de Berlim já não acabam freneticamente numa giga, essa dança rápida com que habitualmente se concluem as suites, mas com pavanas por uma vivência defunta — e sendo a pavana uma dança cerimoniosa é também a nossa cerimónia dos adeuses.
Foi um grande europeu e um grande intelectual que ontem faleceu.
Dessa “espécie” que se diz “desaparecida”, os “intelectuais”, houve importantes exemplos na “dissidência”, face às ditaduras estalinistas: a “Carta 77” na Checoslováquia talvez tenha sido mesmo o último grande “movimento intelectual” no sentido do empenhamento cívico, houve aqueles outros, como Geremek, que se juntaram aos operários grevistas de Gdansk em 1980, na fundação do “Solidariedade” – além dos bem conhecidos casos de Soljenitsine, Sakharov e Rostropovich na União Soviética.
A notoriedade política de Geremek fez restringir aos círculos mais académicos o seu importante trabalho nos terrenos da história medieval e da história da cultura, próximo da Escola dos “Annales”, com particular enfoque nos marginalizados e excluídos, como em Les marginaux parisiens aux XIVe et XVe siècles, a mais difundida das suas obras.
Deputado, ministro dos Negócios Estrangeiros e euro-deputado, Geremek tinha sido proposto na presente legislatura para Presidente do Parlamento Europeu pelos grupos dos democratas e liberais e dos verdes, justamente por ser figura emblemática de “cidadão europeu” – mas a usual partilha de poder entre “populares” (conservadores) e socialistas obstou à sua eleição.
E foi como euro-deputado que teve ocasião de manifestar ainda a sua verticalidade ao recusar a “lustração”, a exigência de prestação de provas de que um cidadão nunca tinha tido relações com a polícia política do regime comunista, a “depuração” pretendida pelos gémeos Kaczynski, esses expoentes do “populismo” que grassa nas ex-“democracias populares” – “prestar provas” ele, um intransigente combatente pela liberdade!
Dele li há dias no “Le Monde” um dos mais lúcidos textos sobre o impasse decorrente do “Não” no referendo irlandês, exemplo de reflexão de um convicto europeísta, relembrando que antes do mais a União deve ser uma “Europa dos Cidadãos”.
Aqui registo os trechos principais desse artigo, em devida homenagem e reconhecimento.
Europe, et si on changeait le contexte ?
Après le non irlandais au traité de Lisbonne, l'Union européenne a évité de prendre des décisions à la hâte. Mais il semble qu'il y ait déjà un plan : faire aboutir la ratification du traité de Lisbonne dans tous les pays qui ne l'ont pas fait et obtenir de la part de l'Irlande, isolée dans son refus, la répétition du référendum sur le même texte.
Le plan qui consiste à pousser l'Irlande à organiser un deuxième référendum a plusieurs précédents dans l'histoire de l'Union et n'est pas en contradiction avec les règles juridiques. Tout de même on ne peut pas nier que c'est un peu humiliant pour les Irlandais (oserait-on le demander aux Français ?) et que la culture démocratique des Européens en souffrirait aussi. Et imaginons ce que l'Europe ferait si des Irlandais s'obstinaient dans leur refus et répondaient non encore une fois ?
Il faut se rendre compte que les Européens du XXIe siècle craignent l'avenir et ne font pas confiance à l'Union européenne. Ils sont las de ses élargissements, ils la croient bien éloignée de leurs soucis quotidiens et inefficace pour relever les défis actuels. Les taux de croissance stagnants dans la plupart des pays membres de l'UE, ainsi que la cherté de la vie contribuent aussi à la morosité générale des Européens : c'est un facteur fondamental dans le climat psychologique européen.
Dans un tel climat, les grands projets visionnaires n'ont pas de chance de réussir. Le traité constitutionnel ainsi que le traité de Lisbonne étaient bien ce genre de projets visionnaires et supposaient un climat de confiance et de satisfaction à l'égard de l'UE. Il faut se rendre à l'évidence que ce n'est pas le cas aujourd'hui. La morosité psychologique est un obstacle de taille à des projets constitutionnels courageux.
Les historiens du constitutionnalisme savent bien que les Constitutions sont proclamées soit quand le peuple aspire à un tel acte (on parle d'un "moment constitutionnel"), soit par surprise. Les huit années passées ne coïncidaient pas avec un "moment constitutionnel" et toute tentative de prendre l'opinion publique par surprise n'aurait aucune chance. Les projets constitutionnels arrivaient au mauvais moment. Pour faire passer ces projets, il fallait expliquer aux Européens l'urgence des réformes constitutionnelles et c'était impossible sans que les Européens se réconcilient d'abord avec l'Europe. Cette "réconciliation" n'a pas eu lieu. Les derniers sondages d'opinion dans plusieurs pays de l'Union (y compris la France) ne sont pas réconfortants.
Que faire ?
Les trois mois d'école buissonnière que l'Union européenne s'est donnés servent l'idée de faire revoter les Irlandais. Est-ce vraiment la seule solution possible ? Et si l'on suivait le conseil de Jean Monnet en cherchant à "changer le contexte" et à formuler un autre plan ?
Il est indiscutable que les gouvernements nationaux doivent faire tout leur possible pour que le traité qu'ils ont déjà tous signé soit maintenant ratifié. Le Royaume-Uni a donné l'exemple et il faudrait que les sept autres pays fassent de même. Ils y sont obligés, la Convention de Vienne sur les traités le dit explicitement. C'est alors que le Conseil européen devra examiner la situation et décider de ce qu'il faut faire. Puisqu'une majorité de pays et de citoyens a approuvé le traité, le Conseil peut de manière tout à fait légitime procéder de concert avec la Commission européenne et le Parlement à la mise en oeuvre de tout ce qui n'exige pas d'amender les traités.
(…)
Il y a aussi des changements que l'on ne peut pas introduire sans un traité. Cela concerne en premier lieu le système du vote. Pour la santé de l'UE, il est urgent d'abandonner le principe de l'unanimité, dont le fonctionnement rappelle trop le liberum veto en Pologne, qui avait amené mon pays au désastre à la fin du XVIIIe siècle. Il est aussi nécessaire de remplacer le système du vote pondéré établi à Nice par un vote à double majorité (de pays et de citoyens).
Ce qui ne peut pas être réalisé à la base des traités existants peut être soumis à une consultation populaire à l'échelle de l'Union européenne, organisée le même jour dans tous ses pays membres. Une ou deux questions précises concernant le système de vote européen, une campagne d'information sur le sujet, un débat dans l'Europe entière sur le problème, et les Européens seraient appelés aux urnes (cela pourrait se faire en même temps que les prochaines élections au Parlement européen) : le Conseil et le Parlement sauraient quoi faire après une telle consultation.
L'Europe doit se doter d'une dimension politique, elle doit être capable de parler d'une seule voix, elle doit avoir la capacité de formuler et de réaliser des politiques de solidarité. Le traité donnerait cette possibilité et en même temps créerait un bond en avant spectaculaire. Les trois non consécutifs de la part de la France, des Pays-Bas et de l'Irlande exprimaient une mésentente entre les institutions européennes et les citoyens.
Dans les sociétés démocratiques, on n'a pas besoin que les institutions soient aimées, mais on a besoin qu'elles soient efficaces et légitimes et qu'elles suscitent la confiance. Soyons attentifs au message de Saint-Simon : "L'Europe unie doit être celle des citoyens." Pour répondre à la demande "faisons les Européens", il faut donner aux Européens l'occasion de "prendre la parole" comme le proposait Jacqueline de Romilly. Il ne faut pas craindre le peuple, il faut craindre le populisme, qui exploite l'absence du peuple sur la scène publique.
L'Europe est donc face à un choix important. Elle peut avoir recours aux sentiers battus, qui consistent à faire revoter ceux qui ont dit non. Et même si l'on y réussit, cela restera toujours une opération menée par les gouvernements nationaux, évitant de faire parler les citoyens européens. Ou bien, en utilisant les traités existants, l'Europe peut à la fois procéder aux réformes institutionnelles nécessaires et demander l'avis des citoyens européens. La première solution constitue la routine européenne, la seconde annonce une nouvelle étape de l'unité européenne.