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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

O cinema e o espaço expositivo (Tsai Ming-Liang - I)

 

 

Tsai Ming-Liang
It’s A Dream
Centro de Memória, Vila do Conde
 
P. – Qual a origem desta instalaçõo, It’s a Dream?
 
R. – Em 2006 o Museu de Arte de Taipé convidou-me a conceber uma instalação para ser apresentada na Bienal de Veneza – eles gostam dos meus filmes e pensaram ser interessante uma instalação cinematográfica. Eu tinha acabado de rodar I Don’t Want To Sleep Alone na Malásia e pensei em lá voltar de novo – nasci na Malásia e vivi lá até aos 20 anos. Andei à procura dos velhos cinemas de que me lembrava e todos tinham desaparecido. Encontrei alguns em Kuala Lampur, nos subúrbios, todos fechados. Decidi filmar num e foi então que descobri uma coisa muito interessante: havia uma fotografia de uma velha senhora que alguém tinha colocado numa cadeira. Havia centenas de lugares, mas apenas a velha senhora numa fotografia. Pensei que talvez a senhora gostasse de filmes e que por isso os filhos tivessem posto aquela fotografia no cinema. E isso fez-me pensar nos meus próximos, na minha avó que também gostava de filmes, na minha família que ia ao cinema. Falei então à minha mãe para a filmar e, como o meu pai morreu já há anos, pus Lee Kang-Sheng [o actor-fétiche de Tsai Ming-Liang] no papel do meu pai quando jovem – uma mãe velha e um pai jovem, parecia um sonho, todos nós no cinema.
 
Depois pensei que queria ver esse filme nas cadeiras dessa sala de cinema. Por isso retirei 30 e instalei-as em Veneza. Assim, sentamo-nos nas cadeiras de um cinema e vemos em filme uma mesma sala de cinema.
 
P. – Portanto fez um filme numa sala de cinema e depois solicita as pessoas a ver esse filme em cadeiras que são de salas de cinema.
 
R. – Sim, é muito interessante, algo entre o ecrã e o museu.

 

 

 

 

“Goodbye Dragon Inn”
 
 
 
P. – Já tinha feito um filme, Goodbye Dragon Inn, sobre o desaparecimento das grandes salas de cinema tradicionais.
 
R. – Em todas as cidades essas salas estão a desaparecer, e nos que restam as pessoas vão lá não porque queiram ver os filmas mas apenas porque querem estar no cinema. As pessoas habituais das cidades já não querem ir a essas salas. Eu procuro que elas tenham a sensação de lá ir ainda.
 
 
P. –Todo o seu cinema é [também] o seu olhar, ao longo dos anos, do corpo de Lee Kang-Shen, é a sua própria relação pessoal, erótica, com o corpo de Lee Kang-Shen.
 
R. – Sim, continuo a olhar para ele.
 
P. – Mas não deixa de ser intrigante, mesmo perturbador. Vocês já têm uma longa relação de 17 anos e você pode ver de novo Rebels of the Néon God [primeira longa-metragem de Tsai Ming-Liang], voltar-se para Lee e dizer: “neste altura sim, eras jovem e bonito!”. Há qualquer coisa de muito perturbador nesta possibilidade sustentada por um trabalho comum continuado ao longo do tempo, desta relação muito especial e única, que, é claro, é também uma relação erótica. Voltar a um dos seus filmes é voltar ao que vocês os dois então eram, vocês foram deixando traços da vossa história comum Por isso pergunto: não é perturbante?
 
R. – Claro que sim. Às vezes peço-lhe que se mantenha bonito, mas é muito difícil, porque ele não é uma “movie-star” apenas um rapaz normal que eu quero filmar.
 
P. – Ele não se considera uma “movie-star”?
 
R. – Não. E à medida que o tempo passa menos o é, longe disso. Antes ainda houve outros realizadores que quiseram trabalhar com Lee Kang-Shen, agora sou só mesmo eu. Quanto a mim, sim os meus filmes vão sendo traços da minha vida.

 

 

 

Tsai Ming-Liang

 
 
 
P. – Há a expressão “sonhos húmidos” referente a sonhos eróticos, e filmes também. Quando penso nos seus filmes, claro que nuns mais que outros, alguns são de facto até muito “húmidos”, mas também muito “secos”, austeros, no modo como filma. O filme mais recente, I Don’t To Sleep Alone, é quase insustentável, entre o facto ser tão húmido de ambiente e ao mesmo tempo tão seco, como se naquela situação húmida não houvesse possibilidade de uma relação erótica, o filme sendo quase um grito: “I don’t want to sleep alone”, quero alguém.
 
R. – Até agora continuo-me a sentir sozinho. Talvez tenha um amante, mas continuo a sentir-me sozinho. E às vezes a própria relação faz-me sentir sozinho. Acho que o que sinto está nos meus filmes. Acho que continuo à procura e em I Don’t Want To Sleep Alone encontrei algo de importante: uma relação muito simples, em que um toma conta do outro e o outro toma conta de ti.
 
 
 
It’s a Dream é uma das instalações patentes em No Cinema, exposição patente no novel Centro de Memória de Vila do Conde, inaugurado no domingo.
 
Extractos de uma conversa ocorrida a 19-06-08 em Vila do Conde e constante do catálogo da presente exposição.

 

Dez pontos sobre o Museu Berardo

Daniel Buren: “Projecto-Soprar: Deambulatório”
(em “Um Teatro sem Teatro”)
 
 
Por falar na exposição Um Teatro sem Teatro no Museu Berardo: Dez pontos sobre o Museu Berardo é a minha crónica "O Estado da Arte" deste mês na Artecapital.net. Sem prejuízo de manter presentes os termos poucos acautelados para o interesse público do acordo entre o Estado e o investidor e coleccionador José Manuel Rodrigues Berardo, ou a amputação numa importante entidade pública cultural como o CCB de uma sua componente estrutural, há também que fazer uma apreciação do Museu e da sua programação com a experiência de sete meses passados, o que deve ser autonomizado das susceptibilidades que suscita e justifica a pessoa concreta do investidor.
Essa mostra veio também pôr em evidência que o espaço que era o do Centro de Exposições do CCB continua a ser uma plataforma de acolhimento de exposições temporárias, embora também a sua concreta montagem não deixe de manifestar alguns problemas de exiguidade – isto para além das questões, essas intrínsecas à própria exposição, de mesmo numa tão importante proposta interdisciplinar ser ainda assim dado um muito maior concreto relevo às obras, autores e matérias reconhecidos como do campo das artes visuais, em detrimento das propostas teatrais e performativas, um aspecto a abordar em textos mais detalhados sobre a exposição.

Presenças de Beckett

 

 

 
“Esse est percipi”, “ser é ser apercebido”, postulou George Berkeley (1685-1753), eclesiástico e filósofo irlandês, filósofo do empirismo. O postulado foi retomado por outro irlandês, Samuel Beckett (1906-1989), na sua incursão cinematográfica designada tão só como Film – e genial filme de 22’ – como uma peça há que tão só se chama Play. Ainda que realizado por Alan Schneider (e com fotografia de um dos mestres maiores, o irmão de Dziga Vertov, Boris Kaufman – os filmes de Jean Vigo ou Baby Doll, Há Lodo no Cais e Esplendor na Relva de Kazan têm a sua impressão fotográfica), seria erróneo dizer que, como nas convenções de uma ficha técnica, Beckett teria sido o “autor do argumento” – a concepção é inteiramente sua, e para supervisar, ou para finalmente se encontrar com Busker Keaton, pois que é ele o protagonista, Beckett até viajou de Paris para os Estados Unidos.
Buster Keaton, de facto...
Muito falam Vladimir e Estragão enquanto esperam, esperam, À Espera de Godot, e a sua imobilidade não deixa de evocar a passidade do homem que nunca sorria...e nunca falou – e ainda mais evoca Keaton a ainda mais imóvel Winnie de Dias Felizes. São todos seres de linguagem e de circunstâncias que outros determinaram, existem, “são”, enquanto circunstãncias e percepções.
“Esse est percipi” – “mas como escapar às ‘felicidades do percipere e do percipi’ se pelo menos uma percepção existirá enquanto vivermos, a mais temível, a de si pelo próprio?”, perguntava a propósito Gilles Deleuze em Cinema I – A Imagem-Movimento. A questão é ontológica, e se é de alguma maneira questão fundamental do teatro de Beckett (Winnie ou Krapp), não menos é uma questão fulcral de cinema nos termos em que ele a delineou.
“O”, a personagem de Keaton, é alguém “em busca do não-ser, tentando escapar a percepções exteriores para caír na inexorabilidade da auto-percepção” (Beckett). “O” tenta assim escapar a “E”, a “e(ye)”, ao olho da câmara, que de facto é como uma outra personagem. Questão eminentemente de cinema, pois.
Film de Samuel Beckett e Alan Schneider é exibido hoje às 19h30 na Cinemateca Portuguesa, com Hautes Solitudes de Philip Garrel.
“Quad”
Uma outra presença de Beckett ocorre na magnífica exposição Um Teatro sem Teatro, patente no Museu Berardo: Quad (sobre a qual Deleuze escreveu um texto próprio, L’Epuisé), de resto numa apresentação bem mais interessante que a do écrã de televisão em que estava encerrada nessa outra recente exposição no Museu do Chiado, Centro Pompidou: Novos Media, 1965 – 2003.
Há Beckett e Bruce Nauman, Beckett que influencia Nauman, este que homenageia o outro em Slow Angle Walk (Beckett Walk), admirável percepção da lógica “coreográfica”, de organização do movimento, que há na obra do outro - não deixa aliás de ser espantoso que a obra de Nauman, de 1968, seja um ano anterior a Film, que entre “O” e “E”, tão extraordinariamente afirmaria essa lógica. De resto, acrescente-se, um recente intérprete de Acto sem Palavras em Nova Iorque foi...Mikhail Baryshnikov.
“Slow Angle Walk (Beckett Walk)”

Godard, God/Art

 

 

 

 

 Quando em Outubro passado apresentei JLG/JLG : Autoportrait de Décembre no ciclo “Diários e Autoretratos” integrado no DocLisboa, desde logo chamei a atenção para a feliz coincidência propiciada pela apresentação de Scenário du film “Passion” na exposição “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” no Museu do Chiado. Eis então que as felizes e frutíferas coincidências se sucedem, e de Godard surgiram entretanto editados no mercado português, e entre outros, os dvds de Paixão, Eu vos saúdo Maria e as Histoire(s) du Cinéma, o primeiro pela Universal, os segundos pela Midas.

 
“Moi, je suis une image”, disse Godard em entrevista aos “Cahiers” (nº316, Outubro de 1980), quando do seu dito “regresso ao cinema” com Sauve qui peut (la vie), depois do período “militante” e do vídeo. O autor que, mais que qualquer outro, sempre pautara a sua obra pelo duplo imperativo da homenagem (a dedicatória à Monogram Pictures de “série b” logo em O Acossado) e da ruptura, e que convocara mesmo um dos mestres maiores, Fritz Lang, para o porventura seu filme máximo dos anos 60, O Desprezo, confrontava-se pois com o sua próprio estatuto icónico.
 
Assinalada retrospectivamente a devida importância dessa declaração e dessa entrevista (há um texto magnífico de Raymond Bellour incluído em L’Entre-Images, ed. La Différence, 1990), convirá então sobretudo assinalar dois eixos, ou talvez antes três.
 
O primeiro eixo é uma tendência à auto-exposição e a auto-análise filmíca, apenas com paralelo noutro autor a que curiosamente Godard nunca foi em especial afecto, Orson Welles, o Welles de Filming Othello e de F for Fake, Welles que todavia representa na história do cinema, e na história da recepção pública da arte cinematográfica, uma das figuras por excelência do “demiurgo”, a outra sendo Hitchcock.
 
As figuras da auto-exposição na obra de Godard desde então são de diverso tipo, incluíndo a derrisão auto-paródica, tão tocante no tão pouco-amado Soigne ta droite, catastrófica no malfadado King Lear, como a declarada auto-exposição nos casos de Scenário du film “Passion” e JLG/JLG : Autoportrait de Décembre (“autoportrait, pas une autobiographie”, esclarece ele, de algum modo num impulso paralelo ao de Roland Barthes por Roland Barthes). Mais genericamente, a enunciação do “Eu” inscreve-se numa explicitação do estatuto do discurso culminando nas Histoire(s) du Cinéma.
 
Dir-se-á também, segundo eixo, que de “Moi, je suis une image” decorre uma muito particular apropriação do mote de Rimbaud “Je est un Autre”: Godard “é” uma pessoa e um significante, Godard “é” JLG/JLG, “JLG” e “JLG”, Jean-Luc Godard e as “imagens de JLG”, a pessoa de Jean-Luc Godard no seu jogo com o cinema e as imagens “de Godard”.
Insisto: assinalada retrospectivamente a devida importância dessa declaração e dessa entrevista quando de Sauve qui peut (la vie), ganha outra nitidez o passo seguinte, ou melhor, os passos imediatamente seguintes, os de Passion e Scenário du film “Passion”, isto é, de um filme em torno da rodagem de um filme (como O Desprezo) e do singularissimo e extraordinário caso de um ensaio que, ao contrário do que o título Scenário du film “Passion” faz supôr, não foi a apresentação de um projecto mas uma análise posterior – é um filme “aprés” e “d’aprés”.
 
Mas com Passion e o seu trabalho de estúdio em torno dos “tableaux vivants” a partir de Delacroix, El Greco, Rembrandt, Goya ou Ingres, Godard confrontou-se directamente não apenas com a matéria da “criação artística” mas também com a da iconologia, do “museu imaginário” e da memória da arte. Daí que eu tenha feito a ressalva de que a partir da declaração “Moi, je suis une image” há sobretudo dois eixos que convirá assinalar, ou talvez antes três. O terceiro será então o da iconologia e, a ele associado, o da criação, ou antes, da criação e da Criação.
Em Scenário du film “Passion” Godard confronta-se directamente ainda com um outro quadro, com a imagem de um outro quadro, o “Baco e Ariana” de Tintoretto, como se confronta com a imagem de Hanna Schygulla no seu próprio filme Passion. Repare-se bem como se acerca delas, todavia na impossibilidade da relação fisíca com o “interior” dessas imagens. “Flash-forward” então para Eu vos saúdo Maria e Joseph – a mão de Joseph - que se acerca do ventre de Marie, todavia na impossibilidade fisíca e racional de se abeirar do seu “interior”, no mistério de uma concepção, qual interrogação agnóstica sobre a Criação e a Imaculada Conceição, esta uma iconologia retomada em Passion segundo El Greco.
 
Com Passion se iniciou portanto uma aventura iconológica que se aproximou explicitamente da iconologia católica em Eu vos saúdo Maria (ou a descoberta por um homem de cultura protestante, um criador de imagens, dessa iconologia católica), percurso conducente às Histoire(s) du Cinéma ou mesmo às “histoire(s) de l’art”, atendendo nomeadamente ao transcendente (e entenda-se este termo em todo o seu sentido) The Old Place feito para o MoMA (dvd ECM, distribuído pela Dargil), o que fez Jacques Rancière dizer haver mesmo em Godard uma “religion de l’art”.
 
Scenário du film “Passion”, esse intento de “voir le passage de l’invisible au visible”, foi afinal também o “número zero” das futuras Histoire(s). Paradoxal e extraordinário projecto: retornar à obra própria já criada, para colocar uma hipótese alterando os termos da lógica factual: .”Si l’invisible était visible qu’est-ce qu’on pourrait voir? Voir un scènario”, num jogo especulativo e auto-especulativo - “começo a pensar que para descrever a realidade é preciso descrever a metáfora”. É um retorno à obra e à criação por parte do próprio demiurgo, do paradoxal demiurgo, não para dizer como fez, mas para estabelecer uma relação, um jogo, “un jeu”, com essa obra feita: “Voir. Et tu te retrouves, et je retrouve, retrouve, recherche.. .je me retrouve devant l’invisible”.
 
“Visible, invisible”, “je, tu”“Je est un Autre” nesse jogo entre o visível e o invisível, o que é matéria icónica e o que é da ordem do Mistério, “Je est un Autre”, “L' Autre du Je(u)”.
 
Extraordinária obra este Scenário du film “Passion”, ponto nodal entre Passion, Je vous Salue Marie, JLG/JLG : Autoportrait de Décembre e as Histoire(s) du Cinéma.
 

Do cinema às exposições

 
 
É uma situação peculiar a de estarem simultaneamente patentes em Lisboa duas exposições em instituições diferentes, todavia com a mesma curadora, Christine Van Assche: “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” no Museu do Chiado (até amanhã) e “Ida e Volta: Ficção e Realidade” no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian.
 
A expressão “novos media” é sintomática, na sua generalidade, do tipo de tecnologias adoptadas no campo das artes visuais, ao início sobretudo suporte vídeo para registar acções performáticos, como as de Vito Acconci (representado nesta exposição de Beaubourg no Chiado), de resto origem da célebre análise de Rosalind Krauss do “video como arte do narcisismo”.
 
Para além de práticas percursoras como as de Acconci ou de Bruce Naumann (ainda hoje tão imitado, e quantas vezes tão mal “digerido”), ou das instalações com uso de televisão de Nam June Paik, constitui-se também uma “video arte”, uma poética específica ao uso do suporte, como nos casos particularmente paradigmáticos de Bill Viola e Gary Hill.
 
Não menos ocorrera entretanto, e já desde os anos 60, toda uma pesquisa, sobretudo no espaço americano, em torno da imagem projectada, deslocando-a dos códigos narrativos vigentes na ordem industrial do cinema, para trabalhar sobretudo sobre as categorias de percepção: foi o caso de alguns trabalhos de Andy Warhol, de todo o extraordinariamente importante percurso de Michael Snow, como do cinema pintado de Stan Brakhage.
 
O que “grosso modo” ocorre desde os anos 90 é contudo já de uma outra ordem: um trabalho especificamente sobre “a imagem” e frequentemente sobre “a memória das imagens”, que não deixando de prosseguir certas coordenadas provindas do concreto campo das artes visuais e mesmo em particular do espaço pictórico (de um Gerhard Richter, nomeadamente), opera sobretudo numa relação de contaminação entre cinema e imagens projectadas em espaços expositivos.
 
Quando Pontus Hulten, o sueco que foi o primeiro director do Centro Pompidou, iniciou a colecção, e note-se que foi em 74, ainda antes da abertura do Centro, em 77, havia apenas a vaga definição de “novos media”. Quando hoje se apresenta uma proposta como “Ida e Volta: Ficção e Realidade”, está-se a trabalhar com categorias homólogas às de ficção e documentário no cinema.
 
Dir-se-ia assim que as exposições se complementam, e que a sua conjução é sinal particularmente sublinhado de como o cinema invade os museus e espaços expositivos, de resto, e provavelmente não por acaso, num momento que é crítico para o cinema, momento de tantas depreciações e mutações, em que o seu espaço constituinte das salas escuras está em declive que tanto mais se irá acentuar com o consumo das imagens em “download”, momento de “ocaso da que foi a grande arte do século XX, de esgotamento da grande arte industrial e de massas com que crescemos e que amámos” (e faço questão de repetir uma afirmação minha feita ao “Ípsilon” de 19-10-07, já que houve quem fizesse questão de a deturpar).
 
Contudo, cada exposição é o que é – e a de Beaubourg no Chiado e do CAM acabam por ser quase opostas na sua concretização.
 
Sem discutir agora outra aspectos respeitantes à vocação estatutária do Museu do Chiado, à apresentação pública do seu acervo patrimonial e à assaz peculiar situação do seu director, Pedro Lapa, exercendo funções em “part-time”, uma vez que é também um dos responsáveis de uma fundação privada, sem discutir esses aspectos, e até reconhecendo em abstracto as capacidades e méritos de programador de Lapa, é no entanto bizarra a insistência em apresentar exposições a que as condições do museu são adversas.
 
Assim, nomeadamente, falta nesta exposição todo um núcleo, o de maior actualidade, na insistência no trabalho sobre o “real”. Assim, no mais importante dos quatro núcleos em que se organiza a percurso, o designado por “Pós-Cinema”, em que estão as três peças capitais da exposição, Scènario du film “Passion” de Jean-Luc Godard, The Third Memory de Pierre Huyghe e Feature Film de Douglas Gordon, apenas de Huyghe é apresentada nas devidas condições, sendo que no caso da de Gordon a importância da obra justificaria, além do mais, que ela fosse apresentada isoladamente.
“La Jetée”
 
 Num ano que foi marcada por duas exposições excepcionais, que continuam patentes, “Um Teatro sem Teatro” no Museu Berardo e a de Robert Rauschenberg em Serralves, a do “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” não deixou ainda assim, apesar das reservas manifestadas, de ser outra das saliências.
 
Ao contrário dos limite das condições expositivos no Chiado, “Ida e Volta: Ficção e Realidade” é afinal dominada pelo assombroso dispositivo cenográfico concebido por Didier Fiúza Faustino: assombroso no seu quadro geral, assombroso nas câmaras particulares concebidas também de acordo especificamente com as características da obra aí apresentada, assombroso na relação que consegue estabelecer, pela primeira no CAM, entre uma exposição temporária e a colecção permanente.
 
Mas com uma ou outra ressalva, sobretudo Edge of te World de Rodney Graham, “Ida e Volta: Ficção e Realidade” é afinal uma exposição espectacular mas decepcionante. Mais: é mesmo uma exposição que mostra como certas deslocações se podem revelar desastrosas e mesmo atentatórias das obras.
 
De cada vez que vejo La Jetée de Chris Marker penso sempre que é “o mais belo filme do mundo”. E é um dos filmes que mais vezes vi e que mais vezes vejo. Foi e é também tremendamente influente nestas novas modalidades de “cinema expositivo”. A câmara que para ele concebeu Fiúza Faustino é em particular extraordinária na sua articulação com as características espaciais da obra, e mesmo com as características narrativas, no que estas se aproximam da “science-fiction”. Mas apresentar a obra em videoprojecção é um verdadeiro atentado à sua integridade e à densidade do seu preto e branco – são equívocos, que também os há muitos, desta apropriação do cinema pelos espaços expositivos.