Galina Vishnevskaya, a protagonista de Alexandra de Aleksandr Sokurov (uma estreia no cinema com 80 anos passados!) foi uma cantora de excepção.
Como solista do Bolshoi durante duas décadas interpretou uma infinidade de papéis – e inclusive, já depois do exílio, dela e do marido, Mstilav Rospovich, ainda houve uma desnecessária gravação da Tosca.
Mas Vishnevskaya é, de modo ímpar, uma cantora inconfundivelmente russa – o timbre e o vibrato tornam essa característica reconhecível de imediato. Alcançou a notoriedade no dia em que teve a oportunidade de cantar a Tatiana do Evgueni Onegin de Tchaikovski, estreou o papel de Natacha em Guerra e Paz e foi uma incomparável Katerina em qualquer das versões da grande ópera de Chostakovich, Lady Macbeth do Distrito de Mtsenk/Katerina Ismailova. Outras obras que estreou foram a Sinfonia nº 14 de Chostakovich e o War Requiem de Britten, a parte de soprano desta última tendo sido escrita de propósito para ela.
Mas Galina Vishnevskaya foi também uma excepcional intérprete de canções. Por duas vezes a EMI reeditou o sem transcendente recital com canções de Mussorgski, Rimsky-Korsakov e Tchaikovski, nas séries “Great Recordings of the Century” e “Great Artists of the Century” – pois bem, raras vezes as inclusões em séries com esses títulos tiveram uma tal pertinência. É um recital absolutamente extraordinário (tenho-o por um dos mais extraordinários e indispensáveis discos de canto), de uma paleta de matizes assombrosa, mas em particular de expressões inquietas e mesmo arrepiantes, como nas Canções e Danças da Morte (na orquestração de Chostakovich).
Complemento também indispensável é a colectânea de gravações russas suas, em que interpreta, na companhia do marido (que para a acompanhar trocou com frequência o violoncelo pelo piano) canções não só de Mussorgski como também dos dois grandes compositores russos a que o casal esteve estritamente associado, Prokofiev e Chostakovich. E se esses são dois discos indispensáveis, há evidentemente também a reter as suas interpretações de Natacha e Katarina.
Agora, Galina Vishnevskaia torna-se-nos inesquecível, de modo inesperado, também pela sua interpretação de Alexandra. Por mim, há muito que não via em cinema a sumptuosidade de uma tal “presença”.
Exceptuando o caso a todos os títulos singular de A Arca Russa (o filme de um único plano-sequência de quase 100 minutos no Hermitage), as ficções de Aleksandr Sokurov vêm-se organizando nos últimos 10 anos, em dois grandes ciclos: a chamada “trilogia do poder”, com Moloch, Taurus e O Sol, em torno de concretas e históricas “figuras do mal”, respectivamente Hitler, Lenine e Hirohito, paroxísticamente apresentadas de um modo estetizante e dire-se-ia que “humanizado” (passei os dois primeiros em ciclos da Culturgest, o terceiro foi exibido em Abril na Cinemateca), e o “ciclo familiar” com Mãe e Filho e Pai e Filho.
Alexandra poderia de facto intitular-se “avó e neto”, pois é dessa situação que se trata, prosseguindo o “ciclo familiar”. Mas a deslocação para Alexandra não é menos pertinente: nunca no cinema de Sokurov (e apesar da inesquecível Cécile Zervudacki, a “madame Bovary” em Salve e Proteja) houve uma tal presença como a Alexandra de Galina Vishnevskaya.
Aos 80 anos passados, a grande soprano estreou-se assim no cinema, ou quase (já lá iremos) e é por ela e em torno dela que Sokurov fez o filme. Mas, simultaneamente, na obra deste cineasta, ficcionista e documentarista, nunca uma ficção esteve tão perto do real: filmado perto de Grosny, Alexandra é também mesmo que lateralmente um filme sobre a guerra da Chechénia e mais em concreto sobre soldados russos e civis chechenos.
Dir-se-ia haver aqui uma “dissonância” e de facto ela ocorre no filme: Vishnevskaya consegue ser a mais próxima das avós, uma “babushka”, mas não deixa de ser uma presença grandiosa, como o modelo que Sokurov tinha em mente, Anna Magnani. Dissonância será mas não contradição. Essa presença majestosa não deixa de indiciar um “além” para lá do real imediato, o indício de uma outra possibilidade (de “redenção”?) que sempre existe no cinema de Sokurov. Ao mesmo tempo, a pose de Vishnevskaya “cola” às próprias características de altivez da personagem, ou, mais presumivelmente, as segundas foram elaboradas também em função dessa pose.
Uma das coisas que mais me toca e atrai no cinema de Sokurov é que a sua “espiritualidade” é sempre também questão de figuração dos seres e da matéria – e aqui nos deparamos de novo com a terra e o pó, elementos recorrentes do seu cinema, Alexandra parecendo fazendo um raccord com um dos seus primeiros filmes, e dos mais belos, Os Dias do Eclipse, filmado na Ásia Central.
Não há cenas de guerra neste filme, e no entanto pouco vezes as realidades de um exército em guerra nos foram tão presentes. Obviamente que, à imagem dos terrenos em que o filme decorre, Alexandra está, o próprio filme, em campo armadilhado, pela própria realidade que evoca. Vi ser censurado a Sokurov colocar-se no “lado russo” da guerra, como se o contrário é que não fosse estranho e implausível. Não se duvida, o filme não permite duvidar, que o realizador considera a Chechénia como terra russa, afirmando não obstante o seu “humanismo”.
Se nesta consideração é evidente que há um ponto de vista ideológico no filme, esse é apenas uma das suas camadas, e de modo nenhum a mais premente – e recusá-lo por causa desse ponto de vista é afinal bem mais imediatamente ideológico.
Não sei quantos espectadores (e não falo só de Portugal, mas em geral fora da Rússia) reconhecem em Alexandra a figura de Galina Vishnevskaya,. Sendo-me problemático colocar no ponto de vista de um espectador que a não reconheça, ainda assim afigura-se-me difícil que para qualquer um não seja através da extraordinária figura e da extraordinária intérprete que nos aproximamos do filme, que construímos a relação com ele.
Tive também a oportunidade, no último DocLisboa, de apresentar o filme anterior de Sokurov, Elegia da Vida* precisamente dedicado ao casal Mstilav Rostropovich-Galina Vishnevskaya. Quem porventura viu esse filme poderá ter constado que ele se inicia do modo mais “oficioso” em torno de Rostropovich (um jantar de aniversário seu, rodeado de Eltsin, de rainhas e esposas de presidentes da república) para depois, à medida que a arte, e a transmissão da arte, se torna na efectiva matéria do filme, se ir deslocando do violoncelista para a mulher, concluindo-se aliás com um extracto do filme-ópera (entretanto também editado em dvd) em que Vishenavskaya interpreta o papel titular da Katerina Ismailova de Chostakovich – donde, facto inédito no cinema de Sokurov, o final de um filme faz já a ponte para o seguinte, e donde o facto de acima ter escrito “ou quase” sobre esta outra estreia interpretativa de Galina Vishnevskaya.
Muito claramente, em Alexandra Sokurov nunca se esquece de que está também a filmar uma grande cantora, alguém que por si só própria faz uma remissão a um espaço da arte. Daí esta avó ser tão próxima e também tão altiva e grandiosa. Daí que, uma vez mais no cinema de Sokurov, a possibilidade outra, da “redenção” (recorde-se a extraordinária Pietá invertida de Mãe e Filho, invertida porque com a mãe nos braços do filho), se se quiser, da “metafísica”, ou citando outro célebre russo, do “espiritual em arte”, ser também uma questão física de matérias e rostos – e a galeria de rostos, por si só, faz de Alexandra um filme intensíssimo e inesquecível.
* Permitam-me acrescentar que, quando programei a Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto, em 1992, apresentei pela primeira vez em Portugal um filme de Sokurov, O Segundo Círculo. Foram dois casos, esse e o de A Brighter Summer Day de Edward Yang, de realizadores que não estando já na primeira ou segunda obras, e não figurando portanto em concurso, se me afiguravam suficientemente importantes, e urgentes de dar a conhecer. Trata-se portanto, com Sokurov, de um caso antigo de afeição.