Com um intervalo de menos de uma semana apresentaram-se na Gulbenkian dois excelentes quartetos de cordas, com programas estruturalmente análogos: uma obra nova, e em 1ª audição em Portugal, estreada por cada um desses quartetos e até ao momento só do reportório deles, Improvisation IV – “L’électricité de la pensée humaine” de Emmanuel Nunes pelos Diotima, o Quarteto nº 2 de Heinz Holliger pelos Zethemair, precedida por uma obra menos usual, respectivamente os Quartetos de Berg e Bruckner, e seguidas de obras das mais consagradas e admiráveis, o Quarteto nº14, “A Donzela e a Morte” de Schubert e o Quarteto op. 135 de Beethoven.
Acresce ainda que tanto um como outro quarteto seguem práticas pouco ou nada habituais: nos Diotima há a registar a alternância de 1º e 2º violinos; os Zethemair, que em anterior passagem pela Gulbenkian tocaram de pé, estiveram desta feita sentados, mas tocando as obras sem partitura (o que é um tour de force numa formação que tanto exige da coordenação exacta como o é o quarteto de cordas), excepto na obra de Holliger, interpretada com partitura mas colocada nas estantes em sequência, evitando qualquer desfasamento no voltar de páginas. E pode ainda acrescentar-se a coincidência do nome de um quarteto, “Diotima”, ser colhido em Hölderlin, referência fundamental de Heinz Holliger inclusive neste Quarteto nº2.
No Quarteto op. 3 de Alban Berg os Diotima optaram por uma interpretação de grande concentração, áspera e resolutamente modernista, sem o lado mais lírico e de reminiscências tardo-românticas que também existem na obra. Do mesmo modo na “Donzela e a Morte”, a sua leitura foi vibrante e de grande dramatismo, eventualmente à falta também de alguma expansividade lírica.
O pensamento musical de Emmanuel Nunes é eminentemente orquestral ou de formação de câmara alargada. Não é a Improvisation IV que desmente essa constatação. Mas a obra tem, em relação a outras do autor, uma qualidade a anotar, a concisão – de facto demora muito menos que os cerca de 25 min. indicados no programa. É aliás um interessante ciclo de variações, que todavia repete de modo algo enfadonho algumas características da escrita de Nunes tornadas verdadeiros “tiques”, como as frases ziguezagueantes e os tremolos.
No concerto dos Zethemair, a raridade do Quarteto em dó menor de Bruckner, obra menor, de aprendizagem, e aliás só identificada em 1950 (portanto mais de 50 anos após a morte do autor), pouco mais foi que uma introdução, ainda assim tendo sido interessante que os intérpretes sublinhassem a sua filiação em Mendelssohn, quando Bruckner, pelas suas grandes Sinfonias, está associado ao campo oposto, wagneriano. Depois veio o momento inolvidável e transcendente, a obra de Holliger.
Recordo que o músico suíço é um proeminente oboeísta e maestro também – dele a Gulbenkian já apresentou o maravilhoso Scardanelli Zyklus (Scardanelli sendo um nome adoptado por Hölderlin), seguramente uma das obras mais extraordinárias das últimas décadas, e já lhe dedicou um ciclo, em que além da apresentação de obras suas, Holliger foi também instrumentista e maestro.
Estreado em 2008, o Quarteto nº 2 revela o conhecimento íntimo da escrita instrumental, com uma variedade assombrosa de recursos, glissandi, pizzicatti, col legno, etc. Hölderlin e Celan são referências numa obra que contudo é prodigiosa antes do mais pelo conhecimento das possibilidades do quarteto de cordas, tão importante na História da música europeia (e essa noção da historicidade é da maior importância na obra), o único “género” praticado ininterruptamente desde o classicismo vienense.
O Quarteto é num único andamento, mas com seis partes, e faltam as palavras para falar da última daquelas, absolutamente assombrosa, qual “música das esferas” no seu jogo dos harmónicos – é uma obra magnífica, absolutamente magnífica, cujos ecos perduram ainda.
O choque foi de tal modo que na 2ª parte do programa o derradeiro Quarteto de Beethoven (embora não o mais extraordinário no portentoso conjunto dos últimos Quartetos) quase soou como um anti-climax – era a música de Holliger que perdurava.
A 1ª audição em Portugal deste Quarteto nº 2 de Heinz Holliger foi um acontecimento como raros.
Cada realização concreta em concerto de uma obra musical é única, fruto das circunstâncias do momento e do carácter e intensidade da escuta directa. Podemos todavia reconhecer uma interpretação, tanto mais quando se trata de uma tournée promocional de um disco, como sucedeu com este recital em que Andreas Staier interpretou as Variações Goldberg. Acontece que houve uma diferença de vulto: o instrumento – o Dowd da Gulbenkian é completamente diferente do Sidey segundo Hass do registo discográfico, e este, como referido, é em particular fundamental à gravação de Staier.
Diga-se desde já que as diferenças foram bem audíveis e que o intérprete não se “entendeu” do modo mais coerente com o instrumento. Foi mesmo surpreendente a quantidade de notas erradas, o que diria inconcebível num intérprete da craveira de Staier.
Mas a concepção global foi evidentemente a mesma entre o disco e o recital. Staier insistiu nos contrastes e na variedade, fazendo uso muito prolífero e frutuoso do registo de alaúde, com ataques menos fulgurantes e tempos menos vertiginosos nalgumas variações, mas com um jogo digital e variabilidade agógica verdadeiramente impressionantes, alçando-se a um nível ímpar de magnificência na parte final, depois da tal célebre Variação XXV.
Se o seu disco é uma experiência pelas opções radicais, esta realização em recital, ainda que com as tais incompreensíveis notas falhadas, foi uma demonstração eloquente.
PS – Já que vieram à baila os concretos instrumentos, e sendo Staier exímio executante de cravo e também pianoforte, tendo sido ele que veio fazer a estreia do restaurado pianoforte Clementi de Queluz, noutra iniciativa do Em Órbita, e tendo sido ele também a fazer o primeiro recital de pianoforte na Casa da Música, ocorreu-me o recital inaugural do Dowd da Gulbenkian, com Kenneth Gilbert há quase 30 anos, e de novo se me pôs uma questão: quando é que a Fundação adquire um pianoforte?
Concerto para Cravo BWV 1056, Concerto para Dois Violinos BWV 1043,
Café Zimmermann
Gulbenkian, 7 e 11 de Março, às 19h
Os Concertos Brandeburgueses são uma das mais célebres obras de Bach e mesmo de toda a música da tradição erudita ocidental, e no entanto, na sua integralidade de colectânea, muito pouco ouvidos em concerto.
Tempos houve em que as grandes orquestras filarmónicas os executavam, mas a emergência da interpretação historicamente informada fez com que essa prática fosse abandonada. Mas, por outro lado, os agrupamentos com instrumentos de época raramente os têm preparados em reportório, por razões logísticas e, eventualmente, também de gestão: a variedade do instrumentarium exige um número considerável de executantes, vários para participaram apenas num concerto. Acresce que as características e duração da colectânea não são conformes aos padrões, ou melhor à rotina, da prática dos concertos públicos: são demasiado longos para um concerto, e de menos para dois. A solução mais genérica é de os interpretar em dois concertos, com mais duas obras. Foi isso que agora sucedeu na Gulbenkian com o agrupamento Café Zimmermann, dirigido pela excelente cravista Céline Frisch (entre outros discos, deve-se-lhe uma das melhores interpretações recentes das Variações Goldberg) e pelo violinista Pablo Valetti, grupo que foi buscar o nome ao local de Leipzig onde se reuniu o Collegium Musicum fundado por Telemann e que Bach também dirigiu durante alguns anos.
O século XVIII foi precisamente aquele de implantação dos cafés, como parte da civilidade do novo espaço público burguês. Outro sinal dessa consolidação do espaço público foi a maior mobilidade de informações e obras, fazendo emergir culturalmente a noção de “Europa”. Assim o modelo dos concertos grosso e solista espalhou-se pela Europa, com intermediação decisiva da edição das partituras em Amesterdão. Do conjunto de obras concertantes de Bach os Brandeburgueses, verdadeira apoteose do concerto grosso, foram os únicos explicitamente apresentados como uma colectânea, dedicado ao Margrave de Brandenburgo, e se bem que anteriores ao período de Leipzig há grande probabilidade de terem sido executados isoladamente (cada um dos seis concertos, entenda-se) no Café Zimmermann.
Fazendo jus ao seu nome, o grupo de Frisch e Valetti teve a particularidade de os gravar não como colectânea, mas num conjunto de discos com outros concertos, quatro pelo menos até ao momento, de “Concerts avec plusieurs instruments” de Bach. A excelência das gravações recomendavam o agrupamento mas o que em concreto se ouviu na Gulbenkian foi no mínimo muito decepcionante, só pontualmente convincente mas também por vezes francamente desastroso, de tal modo que coloca questões que sendo em concreto sobre o grupo, são mais genéricas.
Nada substitui a emoção da escuta em directo, mas o disco constitui um meio privilegiado de conhecimento, não só pela sua difusão, como por ser feito com a proximidade sonora adequada, e com diversas tomadas de som até se obter a satisfatória e depois a sua montagem. Acresce que os instrumentos de época têm um som menos volumoso para as actuais salas de concerto, e são mais passíveis de problemas de (des)afinação, e também que se alguns deles têm uma actividade permanente e uma formação regular, muitos constituem-se e reconstituem-se ad hoc – por isso aliás se verifica que haja um número significativo de músicos pertencentes a mais que uma formação.
O inusitado facto de as apresentações terem decorrido com quatro dias de intervalo (com outro momento bachiano, as Goldberg por Andreas Staier, de permeio), é sintomático de que o Café Zimmermann não estava em digressão, e que o programa tinha sido menos rodado, feito expressamente para as apresentações na Gulbenkian. Mesmo assim é inadmissível a falta de vigor patenteada, o som empastelado (o pior foi o Sexto Concerto) e as desafinações, como as notas erradas e a falta de notas da trompete no Segundo Concerto, e sobretudo, escandalosa mesmo, a constante desafinação do solista, concertino e co-director Pablo Valetti.
Houve alguns momentos melhores, devidos sobretudo ao jogo e direcção de Frisch, no Concerto para Cravo, em fá menor, BWV 1056 (destreza digital, belos arpejos) e Quinto Concerto Brandeburgês que tem uma parte solista para o instrumento muito desenvolvida. Mas no global, como disse, esta ocasião, aguardada com tanta expectativa, foi no mínimo muito decepcionante, por vezes mesmo francamente desastrosa.
È provável que para muitos espectadores o interesse maior desta programa da Orquestra Gulbenkian se radicasse na presença como solista de Radu Lupu – os mais atentos teriam mesmo presente o ineditismo de o ouvir num reportório inesperado, com o Concerto nº 3 de Bartók. Sem prejuízo desse ponto importante dever-se-ia sublinhar outro ponto que aliás engloba o anterior: a coerência do programa.
Lawrence Foster, maestro titular e director musical da Orquestra Gulbenkian, tem entre outras uma qualidade: engendra por vezes programas imaginativos e coerentes que se afastam da rotina. Foi o caso de modo destacado deste que reunia obras só de autores húngaros com a particularidade de ter dois solistas romenos e um maestro americano de ascendência romena (e aliás pode presumir-se que essa proximidade é uma das razões da parceria privilegiada Lupu – Foster), que aliás é o mais reputado intérprete do mais notório compositor romeno, George Enescu.. Como que estabelecendo a passagem o programa abria com o Concerto Romeno do húngaro Ligeti, autor aliás nascido na Transilvânia romena onde há uma minoria húngara; já agora acrescente-se que as Danças de Galanta de Kodály aludem a uma localidade situada na Eslováquia, onde também existe uma minoria húngara.
As “escolas nacionais” floresceram na segunda metade do século XIX como afirmação de particularismos face à hegemonia do romantismo austro-alemão, embora colhessem no húmus desse romantismo, pelo menos na sua afirmação inicial, a ideia de inscrição na “comunidade”. Se formalmente algumas dessas escolas ou compositores permaneceram todavia do ponto de vista formal dependentes do centro austro-alemão, como no caso dos checos Smetana e Dvorák, já a escola russa teria a prazo fundas consequências na música europeia, com a singularidade genial de Mussorgski, que influenciaria Debussy, e sobretudo, numa geração seguinte, com Igor Stravinsky, ícone do modernismo com A Sagração da Primavera – Cenas da Rússia Pagã. No século XX, a afirmação nacional seria mais funda do ponto de vista estrutural, com o checo Janácek e o surgimento húngaro (anteriormente o carácter “nacional” do húngaro Ferenc Liszt era de facto de origem cigana) com Kodály e Bartók, com as suas recolhas de música popular que se tornariam num paradigma (por exemplo para Fernando Lopes-Graça em Portugal), sendo que o génio do segundo, marcado por esses fundamentos populares, se evidenciaria como um dos mais salientes do século XX, de funda influência pelo seu uso de modos, pelos aspectos rítmicos e timbrícos e pelas suas atmosferas. Já cortando com esta fundamentação nacional, na segunda metade do século XX surgiriam outros dois autores do maior relevo, György Ligeti e o ainda vivo György Kurtág.
Foi no entanto na condição já de refugiado no Ocidente depois do esmagamento da sublevação de 1956, e inicialmente nas sequelas da vanguarda de Darmstad – cuja rigidez e dogmatismo dos princípios todavia ultrapassaria – que Ligeti se impôs, desde Apparitions (1959) e Atmosphères (1961), tendo renegado as obras mais caracteristicamente “nacionais” da sua produção anterior, na Hungria. Só depois do fim das ditaduras comunistas, em 1989, é que Ligeti voltaria ao seu país de origem, tendo mesmo vindo a reintegrar no seu catálogo as obras do seu “período húngaro”, caso do Concerto Romeno de 1951, o qual, diga-se, é a menos interessante dessas obras “reintegradas no catálogo”, sem as qualidades por assim dizer já proto-ligetianas (“ligetiano” aqui no sentido em que se afirmou internacionalmente) de Música Ricercata ou do Quarteto de Cordas nº 1, “Metamorfoses Nocturnas”.
A leitura de Foster do Concerto Romeno foi festiva e precisa, com destaque particular com o ataque do Allegro Vivace. Se as cordas foram pouco idiomáticas e sobretudo, num paradoxo, nas passagens de violino solo a cargo da concertino romena Mihaela Costea, houve algumas excelentes passagens dos sopros, flauta, oboé, clarinete, trompa e trompetes.
Escrito no difícil exílio americano, o derradeiro Concerto para Piano nº 3 de Bartók é como que um anti-climax. É de todos os três concertos o menos percutivo e nesse sentido o mais adequado às características do pianismo de Radu Lupu. Todavia atenção: é o “menos percutivo” mas não deixa de ser também percutivo. E à excepção dos finais dos segundos e terceiro andamentos essa característica foi muito, demasiado atenuada, pela ipianista, magistral de controle das sonoridades como sempre, mas numa interpretação retida, dir-se-ia que pudica. Essa concepção conjugou-se com a direcção de Foster no segundo andamento Adágio religioso (Bartók é um mestre das caracterização “nocturnas” e “religiosas”), aí sim pertinente, enquanto na introdução do primeiro andamento faltou o carácter “misterioso”. Globalmente esta interpretação Concerto para Piano nº 3 foi interessante mas pouco convincente.
Na Rapsódia nº1, Mihaela Costea trocou a estante de concertino pela de solista com direito próprio. Foi uma leitura virtuosística, como a partitura solicita, todavia sem o virtuosismo exibicionista da tendência de Paganini a Sarasate que a violinista cultiva, mas também pouco agreste. O ponto alto do concerto foram todavia as duas obras de Kodály, mesmo que as Danças de Galanta tenham sido um pouco opaco. Foster puxou pela virtuosidade do conjunto orquestral, de novo com notáveis intervenções solistas do clarinete e da trompa nas Danças de Galanta, e do saxofone na Suite “Háry Janos”, nesta, como na Rapsódia de Bartók com uma participação destacada de um instrumentista convidado, Cyril Dupuy em cimbalão, o instrumento nacional húngaro. Háry Janos foi objecto de uma interpretação tão entusiástica que, pelo menos no concerto de dia 14, o público irrompeu em aplausos ao penúltimo andamento, Intermezzo.
Eis assim que foi um concerto em que se destacava a presença de um pianista da craveira de Radu Lupu, mas em que o protagonista, sob a direcção de Foster, foi afinal a Orquestra Gulbenkian. E um concerto de que irá haver memória pois que foi gravada para posterior edição, justificada pelas características singulares do programa – e é por isso que escrevi abaixo que se Lupu abondonou há anos os estúdios de gravação está todavia a reconverter-se aos registos live.
Uma nota final: há reportório(s) com os quais Lawrence Foster patenteia uma tal afinidade que só se pode lamentar que, na sua habitual prática de apresentação de uma ópera em versão de concerto em cada temporada (e na anterior foi mesmo um ciclo de três óperas), não se tenha ainda programado essa raridade, que ele aliás gravou, o Oedipe de Enescu.
Radu Lupu é um pianista imenso. Possui uma sonoridade de uma amplitude enorme (na minha memória, ou na reconstrução da minha memória, aproxima-se apenas dos incomparáveis Gilels e Arrau), uma paleta assombrosa pela variedade de cores e pelo superlativo domínio das dinâmicas e um saber e um domínio técnico do instrumento magistrais. Tendo todos os requisitos para tal é no entanto verdadeiramente a antítese do virtuose brilhante, antes é um intérprete de assinalável sobriedade, idiossincraticamente mesmo – aliás não é pormenor anedótico, e se conjuga com essas características, que apareça sempre de camisola escura e não de casaca. Ele é verdadeiramente um pianista do gesto interpretativo e singular, rigorosamente pensado mesmo quando opções radicais se afiguram discutíveis face à letra da obra interpretada.
Lupu é um schubertiano exponencial (agora que Brendel se retirou não vejo outro intérprete de Schubert desta grandeza), notável também em Mozart, Beethoven, Schumann e sobretudo Brahms. Mas atenção: este perfil interpretativo é o que decorre dos registos fonográficos, e ainda que seja globalmente pertinente, esse tal primado do gesto singular supõe também o concerto público, estando o pianista há anos retirado dos estúdios de gravação por os achar demasiado secos, sem o calor da sala de concertos (embora, como veremos, Lupu esteja entretanto reconvertido à gravação live), espécie de anti-Glenn Gould, sendo que esse tal perfil interpretativo tem agora um espectro mais largo que o que resulta do retrato discográfico: na Gulbenkian onde, para nosso prazer, vem sendo desde há anos presença recorrente, já o ouvimos tocar Debussy, e tocar admiravelmente, como agora o ouvimos em Janácek, no recital, e em Bartók no sucessivo concerto com orquestra.
Em Nas Brumasa leitura de Radu Lupu foi justamente “brumosa”, próxima da paleta do impressionismo francês, embora com algumas rugusidades – sendo que todavia não senti as curvas melódicas que mesmo nesta obra instrumental são tão características de Janácek. Mas nas Sonatas de Beethoven e Schubert as interpretações de Lupu foram colossais! Importa aliás reconsiderá-las em par, Beethoven/ Schubert, e não como somatório, Beethoven+Schubert, de tal modo Lupu sublinhou a filiação do segundo no primeiro.
Na Appassionata a sua opção no andamento inicial pareceu controversa imediata – Lupu não fez um Allegro assai como prescrito (e sabe-se da obsessão de Beethoven pelo rigor dos tempos) mas sim “allegro ma non troppo” quando não mesmo “andantino”. Acontece contudo que o pianista romeno concebeu e concretizou a construção como um crescendo, indo acumulando as tensões até a um arrebatador Presto final. Ora, a Sonata D. 859, obra de que aliás é um intérprete único (desta sonata em particular), surgiu então como obra na descendência de Beethoven, mas de uma grandiosidade e sensibilidade todavia peculiarmente schubertianas – e é bem sabido que só depois da morte de Beethoven em 1828 Schubert, em vez de permanecer na sombra do outro, verdadeiramente se emancipou com as três últimas grandes sonatas, sem deixar de vir na descendência do outro, e sonatas “grandes” também na duração.
Há nessas sonatas “as divinas extensões” de que Schumann falava a propósito de Schubert, um horizonte de infinito que Lupu interpretou com um domínio magistral das macroformas, mas com um lirismo e um refinamento poético de quem domina também as microformas, os Impromptus ou os lieder. O Allegro inicial, extensíssimo, abrindo esse tal horizonte de infinito, de incessantemente recomeçado, e todavia refinadamente poético, foi esmagador, o melodismo tão caracteristicamente schubertiano do Andantino foi sublime, o Scherzo pleno de contrastes (lá está, a memória das microformas!) e enfim o Rondo foi o momento da resolução das tensões. Em suma foi uma interpretação arrebatadora e magistral a que Lupu acrescentou em extra, e numa escolha em nada ocasional, uma Fantasiestück de Schumann de uma delicadeza e de um “fantasismo” verdadeiramente admiráveis.
Foi um recital que confirmou o estatuto do músico e perante nós, para nós, renovou a grandeza de Radu Lupu, imenso pianista e intérprete.
Desde a sua fundação por Christopher Hogwood em 1973, que a Academy of Ancient Music se tem dedicado à música de Purcell e à de Haendel, autores a que se tem também votado Richard Egarr, que sucedeu a Hogwood como director musical – dedicações particulares e a níveis de excelência que se podem aliás constatar nestasdiscografias.
Essas dedicações e excelência eram motivos amplamente justificativos do interesse pelo programa que a Academy e Egarr, com a soprano Carolyn Samposon, vieram apresentar à Casa da Música e à Gulbenkian: de Purcell três ayres incluindo Music for a While, extractos de The Fairy Queen e de Dido & Aeneas, e de Haendel o Concerto Grossso op. 3 nº 2 e quatro árias, três de ópera, “Desterò dall’empia” de Amadigi di Gaula, “Lassa! Ch’io t’ho perduta” de Atalanta e “Ma quando tornerai” de Alcina, mais outra de oratória, “Let the bright Seraphim” de Samson. Foi pois um programa que, de modo condensado, se apresentava contudo como suficientemente representativo das características de um e outro compositor.
A familiaridade da Academy com este reportório foi da ordem das evidências, tal como a vivacidade da direcção de Egarr, com uma grande energia ritmíca e um sentido notável das cores – é pena que não constasse do programa a composição do agrupamento para ficar devidamente registado o destaque do oboeísta e do trompetista.
O problema foi Carolyn Sampson, intérprete de pouca personalidade vocal e ademais pouco idiomática em italiano, de agudos delicados – o que nalguns momentos até foi um atributo - , médios embaciados e graves pouco encorpados. Eis o caso de uma cantora de todo despossuída do que Roland Barthes designou por grão da voz, esse “qual coisa que é directamente do corpo do cantor”, irredutivelmente singular. Para mais o programa era para ela temerário, com o Lamento de Dido, mais duas árias de furor de feiticeiras, as de Melissa no Amadigi e de Alcina, e um outro lamento, de Atalanta.
Correcção estilística não lhe faltou, designadamente na ornamentação das árias italianas, mas o carácter, os caracteres, foram um débito considerável. Com um excepção, no entanto, e de relevo: a delicadeza inefável, de “The Plaint – Let Me Weep”, momento em que aliás a sequência de extractos de The Fairy Queen foi justamente interrompida por aplausos.
Se a Academy brilhou, as debilidades da cantora tornaram este programa representativo de Purcell e Haendel em algo escolástico, académico.
A colocação em linha agora destes textos sobre Purcell e Haendel prende-se com os derradeiros concertos celebrativos das efemérides.
Hoje às 21h, na Casa da Música, em concerto integrado no Festival À Volta do Barroco e amanhã às 19h na Gulbenkian, apresentam-se intérpretes credenciados (como aliás se pode constatar nas discografias abaixo), a Academy of Ancient Music e Richard Egarr, mais a soprano Carolyn Sampson, num programa com peças instrumentais e vocais de Haendel e Purcell, incluindo deste último três trechos dos mais maravilhosos, “Music for a While”, “The Plaint” de The Fairy Queen e o Lamento de Dido.
Ainda na Casa da Música, no domingo, às 18h, apresenta-se outro reputado agrupamento, a Akademie für Alte Musik Berlin, com obras de Matthew Locke, mentor de Purcell, deste mesmo e de Haendel.
São concertos que justificam uma chamada de atenção
É importante assinalar que se avizinham dias de música excepcionais – e não, não me refiro aos Dias da Música no CCB, em relação aos quais, além de o programa não me suscitar particularmente, permanece a minha reserva ética de princípio sobre uma iniciativa que, por vontade majestática de António Mega Ferreira, veio substituir a Festa da Música, a extensão em Lisboa da “Folle Journée” de Nantes, dela retirando todavia o figurino da sucessão de concertos de 45 minutos. Refiro-me sim a eventos da temporada da Gulbenkian, concretamente do ciclo Grandes Orquestras, e do programa “Música e Revolução” da Casa da Música.
Excepcional é a possibilidade de ouvir, no Coliseu dos Recreios, apenas com três dias de intervalo, as duas mais reputadas orquestras juvenis, mas atenção, juvenis e contudo de grande nível, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler, que foi o modelo, e, pela primeira vez em Portugal, àquela outra que foi formada tendo a Mahler como modelo, a venezuelana Orquestra Juvenil Simón Bolívar, com o seu electrizante director, Gustavo Dudamel.
Para mais, hoje, terça-feira, às 21h, os Mahler tocam Mahler, a Sinfonia nº3, o que é caso simbólico, sob a direcção de Ingo Metzmacher, enquanto no sábado, 25 de Abril, à mesma hora, os Bolívar interpretam nem mais nem menos que a obra entre todas “revolucionária”, A Sagração da Primavera de Stravinsky, esse “sacre” latino-americano que é Sensemayá de Silvestre Revueltas, e fieis às suas origens, mas pode-se que também mais de cor local “folclórica”, Santa Cruz de Pacairigua de Evencio Castellano.
A Casa da Música vem organizando à volta do 25 de Abril, o ciclo de “Música e Revolução”, o seu único exemplo de programação verdadeiramente transversal. Este ano, o terceiro do ciclo, e se bem que o acontecimento de maior importância vá ser, a 2 de Maio, uma obra que surge lateralmente à temática, Gruppen (enfim!) de Karlheinz Stockhausen, de 1956/57, o leitmotiv é o Maio de 68. Ora, facto também ele absolutamente de excepção, as duas grandes obras do ano de 1968, e de algum modo sintomáticas dessa conjuntura cultural, Sinfonia de Luciano Berio (que, de resto, entre muitas outras citações, do Maio parisiense ou de O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss, é um testemunho da reapreciação de Mahler, e uma homenagem, com a longa citação do Scherzo da Sinfonia nº2) e Stimmung de Stockhausen, serão ouvidas em dias sucessivos, respectivamente sexta às 21h e sábado às 18h.
Merece ainda referência, de tal modo é intrigante e original, o projecto musical e poético Caldo Dísio/ Desejo Ardente, proposta do violetista Christophe Desjardins e do filólogo Frederico Sanguinetti, na Culturgest, sexta e sábado 21h30. Conhecemos Desjardins como um grande intérprete de música contemporânea (tem um maravilhoso dedicado a obras de Berio e Feldman). Neste caso a sua viola dialogará com poemas medievais e renascentistas, de Dante, Boccaccio e outros, recitados por Sanguinetti.
Steven Osborne, piano, Viviane Hagner, violino, Alban Gerhardt, violoncelo, Kari Kriokku, clarinete
Gulbenkian, 1 de Dezembro
Pode o público ser sensível à fé que anima e inspira um criador artístico, um compositor no caso? Não me parece possível dar uma resposta genérica, desde logo porque esse “público” é composto de concretos indivíduos e haverá crentes, agnósticos e ateus, e inclusive crentes de outras confissões. Mas creio que a questão é inevitável a propósito de Messiaen e nomeadamente do Quator pour la fin des Temps.
Não havendo resposta genérica posso pois responder por mim dizendo que, para o agnóstico que sou, Messiaen é, com Bach e Bruckner, um dos três compositores que sinto sem dúvida animados por uma “transcendência”. Mas porque, por uma lado, coloquei genericamente a questão no campo artístico e, por outro, falei especificamente de Messiaen, direi então também que há um outro artista, um cineasta, Andrei Tarkovski, perante cujas obras sinto tão sensíveis sinais duma crença transcendente. Há por certo outros grandes cineastas transcendentais, Dreyer ou Bresson, mas se Tarkovski me toca de modo tão particular para o que aqui importa é porque os sinais de remissão para essa “transcendência”, a “presença” de uma outra ordem, os encontro também no modo como torna palpáveis as matérias sensíveis, os ícones, a lama, a água. Com Messiaen sucede-me é que as suas obras, pela miríade de cores, polirrítmias e imensidão do espaço sonoro, sugerem-me o que, extrapolando uma analogia cinematográfica, diria ser um “contracampo transcendental”, uma ordem não apenas da criação mas da Criação, no seu pleno sentido panteísta.
O Quator pour la fin du Temps (e já explicarei porque mantenho o título original em francês) é uma obra ímpar, extraordinária, plena de sugestões pelas suas características musicais e também pelas suas alusões programáticas referentes ao livro do Apocalipse. Mas é também uma obra rodeada de uma aura muito particular porque é difícil desconhecer que foi composta e estreada estava Messiaen prisioneiro de guerra no campo de Görlitz na Silésia. A sua específica instrumentação, piano, violino, violoncelo e clarinete, foi motivada por concretos músicos que estavam detidos nesse campo e pelos instrumentos disponíveis.
Talvez por auto-sugestão, Messiaen dissse que o Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A perante um público de 5.000 prisioneiros; contudo, segundo Étienne Pasquier, que tocou a parte de violoncelo, foram sim 200, número que se afigura mais provável (cf. Claude Samuel – Permanences de Messiaen – dialogues et commentaires,Actes Sud). Parco nas suas declarações sobre as circunstâncias concretas da composição Messiaen tão só confidenciaria: “Quando eu estava prisioneiro, a falta de comida provocava-me sonhos coloridos: via o arco-íris do Anjo e estranhas girândolas de cores”.
É importante, crucial mesmo, entender que a inspiração no Apocalipse não supõe que a obra seja “apocalíptica” no sentido mais corrente do termo. O que Messiaen reteve foi a imagem do Anjo tendo sobre a sua cabeça o arco-íris e que vem anunciar que “já não haverá mais tempo”, “La fin du Temps”, com “Temps” em maiúscula (é a esta particularidade que é preciso atender no título original francês). Este “tempo” reenvia-nos quer para os aspectos rítmicos (“O ritmo é, por essência, mudança e divisão. Estudar a mudança e a divisão é estudar o tempo”) quer para a teologia (“a perpétua conversão do tempo em passado, a noção de Eternidade”).
Este “fim do Tempo” (e não fim dos tempos”) é a sugestão de um tempo sem fim, a eternidade. A derradeira obra de Messiaen intitula-se Éclairs sur l’Au-Delá; o Quator pour la fin des Temps poderia também ser caracterizado como “Éclairs” de l’Eternité”, “lampejos”, “fulgurâncias” ou “visões”.
Em particular extraordinários no quadro programático ou alusivo da obra são “V – Louange à l’Éternité de Jésus”,com a sugestão do tempo suspenso, tempo musical e tempo teológico, e “VIII – Louange à l’Immortalité de Jésus” com a lenta linha ascendente até ao extremo-agudo do violino, sugerindo a ascensão de Jesus, do “Verbo feito carne, ressuscitado e imortal”. Pelo seu trabalho sobre o tempo e o rítmo, sobre as cores também, Messiaen sugeriu nesta obra-prima de modo único uma atemporalidade, uma u-cronia, uma eternidade sensível pela experiência da música.
O inusitado longo silêncio que acolheu a interpretação do quarteto Osborne-Hagner-Gerhardt-Kriikku na Gulbenkian foi a mais eloquente resposta do público a uma soberba interpretação, de tão assombrosas cores e noções do rítmo e do tempo. A clareza das dinâmicas e rítmos em “II – Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps”, a mestria de Kriikku no extraordinário solo de clarinete que é “III – Abîme des oiseaux”, a linha hipnótica do violoncelo de Gerhardt em “V – Louange à l’Éternité de Jésus”, as cores do piano de Osborne em “VII – Foullis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps”, as mutações de cor ao longo das alturas de Hagner em “VIII – Louange à l’Immortalité de Jésus”, eis alguns exemplos concretos desta experiência transcendente, um dos momentos mais marcantes das comemorações em Portugal dos 1000 anos do nascimento de Olivier Messiaen.
Quando se ouviu actuarem autênticos “monstros sagrados” do piano, “lendas vivas” tidas como “grandes anciãos”, como um Rubinstein, um Horowitz ou um Arrau, mais se diria haver um sentimento perplexo de perda agora na despedida de Alfred Brendel. No entanto o pianista austríaco está na mesma casa de idades de c. 75 anos dos outros, 77 para ser preciso.
Para além da emoção que em si mesmo suscita a despedida de um tal intérprete, de onde provém esta ideia de discrepância, afinal factualmente errónea? Em parte do facto de Brendel também ser de algum modo um pianista relativamente “recente”, de reputação só consolidada a partir dos anos 70, e da sua ligação discográfica à Philips. Mas também porque Brendel foi um pianista “moderno”, que impôs Haydn e Liszt no reportório (não o Liszt de brilho e fogos de artificio que sempre foi tocado, mas um outro, o da Sonata em si menor por exemplo), ou o Concerto de Schönberg. Mas sobretudo porque o seu rigor intelectual e prolongado contacto com as obras, o seu “sentir” delas, foram modulando uma arte da música ao piano prodigiosamente decantada – e o extraordinário recital de ontem na Gulbenkian (não, não foi apenas a emoção do momento foi mesmo extraordinário) foi disso exemplo acabado, mesmo o mais extraordinário dos seus recitais em Portugal depois daquele, verdadeiramente “histórico”, no Porto, no Rivoli, integrado no 5º Festival da Póvoa do Varzim ao tempo ainda sob a direcção artística de Sequeira Costa, a 16-07-83, em que interpretou as três últimas sonatas de Beethoven – e em que tantos fomos os idos de Lisboa que felizmente a casa não estava vazia!
A decisão de se retirar, por muito que nos custe, é ainda um acto de inteligência, como se deduz do comunicado. “Alfred Brendel, um dos mais célebres pianistas do mundo, anunciou que dará o último concerto da sua carreira em Viena a 18 de Dezembro de 2008. Interpretará o Concerto para piano nº9 ‘Jeunehomme’ de Mozart [que escolha, reveladora de um dos mais fortes traços da sua personalidade, o sorriso irónico] no Musikverein com a Orquestra Filarmónica de Viena dirigida por Charles Mackerras. Nessa data terá setenta e sete anos e terá passado mais de sessenta anos da sua vida a dar concertos. O Senhor Brendel sempre anunciou a sua intenção de findar a sua carreira no auge desta, num momento em que o interesse do público através do mundo não tivesse decrescido. Longe da ideia de digressão ou concerto de despedida, ele prefere simplesmente parar. O Senhor Brendel vai prosseguir actividades que lhe são caras como a literatura, campo no qual tem tido já grande sucesso, e fará conferências em universidades e instituições musicais”.
“Parar”, seja – mas como não sentir ainda assim a emoção da “despedida”?! O certo é que, como se apresentou, está no “auge”, no “auge” da sua tão particular arte do classicismo.
Tendo vindo a restringir o seu reportório ao longo dos anos, Brendel apresentou ontem um programa exemplar do classicismo e do primeiro romantismo, um programa exemplarmente vienense com as Variações em fá menor, Hob VVII: 6 de Haydn, a Sonata em fá maior K.5333/494 de Mozart, a Sonata em mi bemol maior, op 27, nº1, Quasi una fantasia de Beethoven e a derradeira Sonata em si bemol maior D. 960 de Schubert – e pode notar-se um dos seus princípios, o de sempre apresentar obras em tonalidades diferentes.
É extraordinário como ele consegue pôr em relevo o “carácter” de cada obra, tornar o sentir delas como princípio, “o alfa e o ómega de um músico” como diz. Depois, é a prodigioso articulação, a pertinente discreção dos pedais, os harpejos e trilos assombrosos, enfim, a desenvoltura do discurso, de uma arte íntima de conversação (já agora, não por acaso um dos desejos de Brendel é o de um público silencioso e que só aplauda no fim – e a conhecida síndrome das “tosses na Gulbenkian” fê-lo parar duas vezes seguidas no 1º andamento da Sonata de Schubert).
Este foi um daqueles momentos, um daqueles recitais, que podemos ter de certeza certa que ficará memorável, pelo adeus e por ter sido tão maravilhoso. Esperemos agora continuar a ter notícias de Alfred Brendel, ou por “novas antigas” gravações, aquelas que ele encontra em arquivos e autoriza para edição, ou pela publicação de novos livros.
Muito obrigado, Alfred Brendel.
Adenda – Por uma vez, porque o caso é de facto diferente, merecem consideração as três peças que Brendel tocou em extra, um Impromptu de Schubert, depois, surpresa, No lago de Wallenstadt dos Années de Pèlerinage – Première année: La Suisse de Lizst (qual “reminiscência” – para empregar um termo também lisztiano – de um compositor a que esteve tão associado e de modo tão importante, mas que deixou nos seus programas) e uma das Bagatelas de Beethoven. É que a interpretação destas miniaturas foi exemplar da tal questão do “carácter” da obra, da reflexão sobre elas que permite compreendê-las e senti-las. Como é que, por uma, uma Bagatela se torna uma “obra” por inteiro, eis o prodígio. E, pensando bem, terminar um tal concerto de despedida com uma Bagatela, eis o que, acaso que também seja, é uma faceta da postura de Brendel.