Falando da Cinemateca
Agora que justamente se volta a falar de uma "Cinemateca Portuguesa" que de facto é propriedade privada do seu director, e um exemplo de nepotismo, é-me forçoso recordar o que há dois anos escrevi.
Falando de Cinemateca, é impossível ignorar a questão directiva em aberto.
Se todas as questões estritamente personalizadas podem sempre ser redutoras, senão mesmo armadilhadas, esta então, pelas características da pessoa de João Bénard da Costa, ainda mais o é – por se tratar de um alto dignitário do Estado, ainda há pouco reconfirmado pelo presidente Cavaco como presidente da comissão organizadora do Dia de Portugal, e porque indiscutivelmente é a pessoa que, pelo seu saber, escrita e capacidade de transmitir a paixão por filmes, é o epítome público da “cinefilia”. Para mais as circunstâncias, com desastrosos governantes da cultura e nomeações indigentes, são de molde aos mais justificados receios.
Tudo isto recordado, também há a dizer que a montagem de um “affaire Bénard”, qual decalque do “affaire Langlois” que em Março de 1968 foi o prelúdio do Maio francês, é ridícula. Se é incontornável a questão pessoal, é também porque há a discutir a permanência de um modelo de cinemateca que estritamente identifica uma pessoa com a instituição.
João Bénard da Costa ainda teve o privilégio e a capacidade de contar com o apoio de Henri Langlois, o fundador da Cinemateca Francesa. “O homem da cinemateca”, na imagem clássica de Langlois, era o guardião dos arquivos e o transmissor do amor pelos filmes, a cinemateca sendo um lugar de peregrinação e culto. Esta concepção não pode resistir a um entendimento pelas políticas culturais públicas e democráticas do que é e deve ser uma instituição estatal.
Eu frequento a Cinemateca e tenho tentado seguir com atenção crítica a sua programação, bem como os seus perfis públicos; não iria agora escamotear que entendo que não se afastou basicamente do que há de mais conservador, nostálgico e necrófilo no modelo tradicional desse tipo de instituições. E seria incoerente não me manifestar perante uma “excepção” a regras para as instituições culturais públicas, e de reservas perante o designado mesmo “regime excepcional”, além do limite geral de idade em cargos público – não posso aceitar que se sustente que um qualquer cargo público é “vitalício” [ou, acrescento agora, quando o detentor do cargo só se retira depois de, qualquer monarca, ter ele próprio designado sucessor].
João Bénard fez crer que “aprés lui, le déluge”. Se será sempre muito difícil suceder a tão carismática personalidade, a dificuldade foi acrescida pelo modo como ele semeou o deserto à sua volta. Desde Maio de 2003 que não há responsável do Departamento de Programação (é o próprio Bénard quem exerce o pelouro), e em Outubro passado, depois de não se ter efectivado em Maio a substituição que era das regras, a Cinemateca ficou mesmo durante meses sem vice-presidentes, pela demissão de José Manuel Costa e pela reforma antecipada de Rui Santana Brito.
Que a instituição se chame Cinemateca Portuguesa é mesmo ficcional. Protocolos com instituições não são cumpridos, cineclubes e outros bem podem pedir cópias, e qualquer governante que já tenha tido a tutela sabe que o obstáculo intransponível a uma programação no Porto, na Casa das Artes, tem sido o próprio presidente Bénard.
Mais: há anos a Cinemateca adquiriu direitos de uma importante colecção à Hollywood Classics, que permitia ter um acervo considerável de cópias susceptível de circulação pelo país, e que afinal ficaram na gaveta, num acto lesivo do interesse público, financeiramente inclusive.
Do mesmo modo, quando a Cinemateca reabriu nas suas instalações (horrorosamente renovadas numa “apropriada” revisitação de “uma casa portuguesa”), em Janeiro de 2003, foi prometido que em breve haveria também novidades para a sala do Palácio Foz, aos Restauradores, onde tinha estado transitoriamente sediada – e continua-se à espera*, o argumento tendo servido para, na posse dessa sala, o presidente Bénard a manter fechada, inviabilizando outros projectos que, cioso, viu como “concorrenciais”.
Se compreendo algumas das emoções que a eventual saída de João Bénard suscitou e tenho noção do seu reconhecimento internacional, também verifico que muitas dessas “emoções” provêm de quem manifestamente nunca põe os pés, ou os olhos, na Cinemateca.
"Público" 27-04-06
*Por coincidência, uns tempos depois deste texto ter sido publicado, a Sala do Palácio Foz reabria enfim como "Cinemateca Júnior", com uma - uma única - sessão semanal.
Na altura, um abaixo-assinado que mais se assemelhava a um conclave de "grandes famílias" fez recuar o MInistério da Cultura naquilo que não era mais que um caso de limite de idade, de acordo com a lei geral. Agora, inesperadamente atenta, a própria titular de então, Isabel Pires de Lima, vem fazer no "Público" de hoie a constatação de que "É sabido que a CInemateca é de há muito propriedade de J.B.C. [João Bénard da Costa](...) O autismo que caracteriza aquela instituição decorre do autismo de J.B.C. que seca todos os recursos humanos competentes que porventura tem ou teve" - arguto diagnóstico, mas fraca memória, omissa que é Pires de Lima sobre o seu recuo de há dois anos.
O mais importante e evidente no momento é ser mais que justificado um pólo da Cinemateca no Porto (que Bénard, cioso da sua "propriedade", enjeita) e as razões para subscrever o abaixo-assinado reclamando-o.