Dias de luto para a música afro-americana: depois de Odetta e de Eartha Kitt, é agora um dos grandes trompetistas modernos que desapareceu, Freddie Hubbard.
Nascido em Indianapolis, o primeiro músico de relevo com quem tocou foi o guitarrista Wes Montgomery. Em 1958 mudou-se para Nova Iorque e rapidamente os seus dotes de invenção melódica e de virtuosidade fizeram com que fosse notado, tocando nomeadamente ao lado de Sonny Rollins. Em breve, em 1961, integrava também esse arsenal de talentos que foram os Jazz Messengers de Art Blakey, participando nomeadamente em dois dos álbuns mais importantes do grupo, Mosaic e Buhaina’s Delight – outro dos músicos de então era Wayne Shorter.
Embora a sua matriz fosse basicamente hard-bopper tendo Clifford Brown como grande referência, sucedeu-lhe – e não certamente por acaso – o facto extraordinário de participar em três dos mais seminais discos da história do jazz, Free Jazz de Ornette Coleman (1960), Out to Lunch de Eric Dolphy (1964) e Ascension de John Coltrane (1965). Ainda assim nunca foi propriamente um “vanguardista”, embora Dolphy tenha sido para ele uma outra influência marcante – de resto participaram ambos outro álbum importante, The Blues and the Abstract Truth de Oliver Nelson; Hubbard também comparticipou das novas tendências modais designadamente em dois célebres discos, Maiden Voyage de Herbie Hancock e Speak No Evil de Wayne Shorter.
Em 1966 formou o seu próprio grupo, que teve a sua maior hora de glória em 1970 com dois registos imprescindíveis, Red Clay (com o saxofonista Joe Henderson, Hancock, o guitarrista George Benson, o contrabaixista Ron Carter e o baterista Lenny White) e Straight Life (os mesmos, à excepção de White, substituído por Jack DeJohnette), próximos da então quase inexorável influência do quinteto de Miles Davis (e com esse compartilhando Carter e DeJohnette), sem ser todavia epigonal. Logo depois, teve o seu maior sucesso, e obteve o Grammy, com First Light, um disco com um conjunto de cordas, trompas e sopros de madeira, com arranjos de Don Sebasky.
Depois dos flirt com o “jazz-rock” e a “fusão”, tentando seguir os percursos de Hancock e de Shorter, sem alcançar idêntica celebridade, haveria em 1977 a reunião, VSOP, ele, Shorter, Hancock, Carter e Tony Williams, após o que voltou para caminhos mais tradicionais e exclusivamente acústicos
Hubbard tanto tocou (a sua impressionante discografia deve ter umas centenas de títulos) que feriu o lábio superior. “Don’t overblow” dizia depois disso aos mais jovens.
Fazendo-se justiça aos títulos da sua própria discografia, e registando-se que em rigor nunca tenha sido um “vanguardista”, é ainda assim impressionante que tenha sido o músico que participou nos três fundamentais Free Jazz, Out to Lunch e Ascension.
Quando do lançamento de Solo, o duplo disco que marcou o regresso de António Pinho Vargas aos territórios improvisacionais jazzísticos após uma longa ausência de 12 anos, reservei a audição directa para mais tarde – ou, se quiserem, por outras palavras, por variadas razões não me apeteceu ir ao concerto de apresentação na sala onde o disco foi gravado, o Pequeno Auditório do CCB.
A oportunidade surgiu agora, cinco meses volvidos. Resultou ela também de uma circunstância infeliz: na programação da Casa da Música estava previsto para o passado dia 14, e integrado no “Focus Nórdico” desde ano de 2008, a apresentação do Esbjörn Svensson Trio, e, como se sabe, Svensson morreu acidentalmente; a data vaga foi assim ocupada por um concerto de Pinho Vargas.
Acontece que não é facto dispiciendo ouvir o pianista na sua cidade de origem, aquela em que começou os seus estudos musicais e a sua vida de músico profissional, justamente de jazz. E não é dispiciendo não propriamente por essa circunstância biográfica em si, mas porque, como era previsível, e se confirmou, António Pinho Vargas colhe no Porto um capital de afectos que é um factor importante no “feed-back” do público a um músico – e o jazz é, por assim dizer, o mais interactivo dos géneros musicais, de interacção entre os membros de um grupo, mas também de interacção entre os músicos, ou um músico a solo, e a resposta do público. E a resposta da sala, a manifestação dos afectos, foi a razão porque fez Pinho Vargas escolher tocar ainda, extra programa , “Cantiga para Amigos”.
No momento em que está prestes a estrear uma sua nova ópera, Outro Fim, já amanhã na Culturgest, e glosando o tópico que ele tem insistido da sua “heteronímia”, da sua dupla existência enquanto pianista-compositor de jazz e compositor erudito contemporâneo, encontra-se ele assim em pleno apogeu dessa heteronímia. E embora “a influência da angústia”, invertendo os termos de Harold Bloom, seja umas das suas características composicionais mais marcantes como já assinalei, não parece que este presente “apogeu da heteronímia” lhe seja particularmente angustiante, a julgar pelo que se lhe ouviu na Casa da Música, seis dias antes da estreia da ópera.
Como também já disse, Pinho Vargas tem uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical, uma noção dos dispositivos pulsionais e do sentir. Essa relação estabelece-se imediatamente no jazz pelo jogo e mãos – e de pés, também, bastante activos. Ouvindo-o agora, não creio que os dois campos sejam afinal tão absolutamente impermeáveis: a sua linha de improvisação em “Quedas d’água (com lágrimas)” derivou para “clusters” no extremo agudo que se diriam provindas da sua aprendizagem junto de Ligeti e da sua admiração por esse compositor – esse facto, mais que uma remota memória da herança do “free jazz” dos seus primórdios musicais (Cecil Taylor, nomeadamente), já que entretanto, e sobretudo, as suas linhas aproximaram-se no “toucher” de um Chick Corea, ou, mais recentemente, na assumpção descomplexada de uma base de melodismo tipo “song”, de um Mehldau.
Curioso foi que tivesse incluído no programa um tema que não consta do disco Solo, “Da Alma”. E justificou-se ele, dizendo ter sido um “lapso”, porque esse tema, como outros já gravados, consta do disco resultante das mesmas sessões mas que só será lançado para o ano. Diria que “lapso” foi essa sua explicação. É óbvio que foi o lançamento do disco que o recolocou “on the road” fazendo concertos a solo, mas esses não têm que ser meros concertos promocionais, estritamente limitados ao repertório constante do disco. Neste momento, afinal, António Pinho Vargas é, mais do que nunca, um músico conscientemente livre, e se essa é uma razão pela qual não deu sinais deste “apogeu da heteronímia” estar a ser um momento de particular “influência da angústia”, também supõe que ele será tanto mais livre quanto compuser os seus concertos de acordo com os temas que o sentir ditar, e não segundo a estrita razão de haver um disco que é de novo a razão imediata, mas não única, para o reencontro das mãos e dos afectos.
O “Jazz em Agosto” da Fundação Gulbenkian, na sua 25ª edição, inicia-se no próximo dia 1 de Agosto com a New Jazz Orchestra de Otomo Yoshishide, evocando um dos grandes inovadores do jazz, Eric Dolphy. E no dia seguinte, às 18h30, é apresentado o filme The Last Date, que corresponde, como o homónimo disco, ao último concerto registado de Dolphy, na Holanda, poucas semanas antes da sua morte – um registo que é aliás um dos mais relevantes da sua discografia, incluindo nomeadamente o célebre tema “Epistrophy” de Thelonious Monk.
“Como Bix Beiderbecke, Fats Navarro ou Charlie Christian, Eric Dolphy (Los Angeles, 20-06-28 – Berlim, 29-06-64) foi uma dessas estrelas cadentes aureolados pela desdita da sua breve mas luminosa existência, que em rigor, no seu caso, foi mais restritamente a de cinco anos, desde que se fixou em Nova Iorque até à morte.
Mas a situação de Dolphy é paradoxal e excêntrica a mais de um título. Grande parte da notoriedade vem-lhe do trabalho junto de figuras maiores da história do jazz, Charlie Mingus, Ornette Coleman e John Coltrane, lista suficientemente eloquente, é certo – tanto mais que foram aqueles que abriram o caminho, no caso de Mingus, emblematicamente declararam, no caso de Ornette, e se juntaram, no caso de 'Trane' à ‘new thing/free jazz’, que foram os descobridores maiores de novos horizontes – mas em que o destaque desses pode tornar à primeira vista menos evidente o contributo fundamental que foi o de Dolphy, e que um Mingus e um Coltrane fizeram questão de afirmar.
Como Theolonious Monk, como Duke Ellington, Charlie Parker, Charlie Mingus, John Coltrane ou Ornette Coleman, Eric Dolphy foi um dos ‘jazzmen’ que para além do campo se impuseram como personalidades maiores de toda a música do século XX.”
Extractos de um texto em linha no sítio do Serviço de Música da Gulbenkian, incluindo também uma escolha discográfica, sobre um músico multi-instrumentista (tocava clarinete, clarinete-baixo – de que foi o introdutor no jazz -, flauta e safonone-alto) que foi ao mesmo de uma entrega total ao colectivo e também de facto o primeiro músico de jazz a praticar regularmente o solo absoluto.
Já o escrevi nas notas ao recente disco com três obras de António Pinho Vargas, mas há algumas considerações que se me afiguram importantes de retomar a propósito deste outro disco que marca o seu regresso ao campo jazzístico após longa ausência.
A personalidade artística de Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.
A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover composicional, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.
O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade (e nesse sentido inclusive mais complexo do que a “heteronímia” de que ele próprio fala), tem contudo outras implicações, como uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.
A noção de “pulsão”, ou mesmo de “pulsação” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.
Ora, ainda que de modos de todo diversos, não menos há que falar de dispositivos pulsioniais e de sentir a propósito deste Solo.
É provável que uma tão longa ausência não deixe também de se relacionar com um anseio de reconhecimento e legitimação no campo composicional erudito. Se Pinho Vargas tem certamente a noção de ter também a facilidade composicional, digamos mesmo que estritamente melódica, que fizeram alguns dos seus temas como “Tom Waits” e “Vilas Morenas” tornaram-se bem reconhecidos, os únicos temas “novos” que surgem em Solo, “Funerais” e “Casas de Granito no Minho” são afinal também dos anos 90, da mesma época dos outros. Não há portanto, em rigor, “temas novos”, elementos mais recentes de composição jazzística.
De certa maneira, este regresso (por coincidência simultâneo com um disco com três composições “eruditas”) radicaliza a personalidade bifacetada: há o Pinho Vargas-compositor, que nunca é intérprete das suas obras, e o Pinho Vargas-pianista, que não dá novos sinais de composição, é apenas intérprete, re-inventor de si mesmo.
Pode-se considerar uma tal noção, de “re-inventor de si mesmo”, no sentido em que ele se revisita, de algum modo retoma os seus próprios standards e apenas esses, tanto mais quanto a solo. E é no modo como o faz que há igualmente falar de “uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical”, de dispositivos pulsionais e de sentir. Solo é o disco mais livre e luminoso de António Pinho Vargas, dir-se-ia mesmo, no notório princípio do prazer deste sentir, aquele em que ele surge mais “descomplexado”.
“Drôle de chemin” – foi precisa uma tão longa ausência, uma dedicação exclusiva à prática composicional erudita no entretanto, para Pinho Vargas sentir de novo, e nos dar a ouvir, todo o prazer que também tem em ser pianista de jazz, em pelos modos da improvisação jazzística ter essa relação física e pulsional imediata com matérias musicais.
Reencontra-se o toque preciso e cristalino, na linhagem de um Chick Corea. Mas certamente não é fortuito que um outro pianista que Pinho Vargas agora por vezes refere seja Brad Mehldau, que tem também uma aproximação livre e descomplexada dos “standards”, mesmo das “songs”.
Parecerá bizarro que esteja subentendido em Solo um outro título, pelo qual Pinho Vargas queria designar o disco: “Imperfeições” (e assim o cd 1 e o cd 2 têm os subtítulos de “Imperfeições 1” e “Imperfeições 2”). Mas a “imperfeição” é o do próprio rasgo irrepetível de cada momento, da volúpia do sentir e de uma pulsão, da réstea que fica gravada, sem o “reworking” adicional - ou, se se quiser, é axiologicamente do próprio princípio da indeterminação, do único e da sua multiplicidade, na arte do jazz.
Ouça-se a simplicidade contida de “Casa de granito no Minho” ou de “Lindo ramo, verde escuro” como a longa divagação de “Fado Negro”, a energia imediata de “Tom Waits” como a amplitude de meios pianísticos e sonoridades de “General complex”, o “staccato” e os “ostinati” de “Vilas morenas”, “As mãos” ou ainda mais “O Movimento parado das árvores”, ouça-se sobretudo, momento de excepção, o modo como após “Prelude to June (Tabor)”, Pinho Vargas “ataca” propriamente “June”, em euforia de revisitação, de se redescobrir.
E por isso se pode reiterar que Solo é o disco mais livre e luminoso de António Pinho Vargas, o disco de um sentir que é o do princípio do prazer.
Foi a abertura do “Cool Jazz Festival”, designação algo “trendy” para um evento eclético que está longe de ser só de jazz. Mas na segunda-feira, no Jardim do Palácio Marquês de Pombal em Oeiras, a noite estava bem “cool” e esse foi o primeiro facto assinalado por Herbie Hancock. O contratempo não foi de somenos porque a temperatura por certo influiu nas condições de recepção. Mas a música foi assinalavelmente “hot”.
Uma vez mais ainda, Hancock primou pelo inesperado. A presente digressão intitula-se “The River of Possibilities Tour”, remetendo portanto para os dois últimos álbuns do pianista, ambos predominantemente vocalizados. Ora, os temas cantados foram poucos. Em vez disso, Hancock retomou em grande parte as configurações de Head Hunters, o seu célebre disco de jazz-rock de inícios dos anos 70, e alguns dos mais emblemáticos temas da sua longa trajectória, como “Actual Proof”, “Watermelon Man”, “Cantaloupe Island” e “Chameleon”.
Em relação a River, a formação apresentava uma diferença: Chris Potter em vez de Wayne Shorter, acarretando desde logo uma diferença de sonoridades, pois que enquanto no disco Shorter usa sobretudo o sax-soprano, Potter optou pelo alto e o tenor.
Surpresa mesmo foi ouvir ao fim de muito tempo (18 anos, disse Hancock) Holland tocar baixo eléctrico. Mas se se poderia deduzir, por razões de sobra, que o predomínio foi electrificado, quer Dave Holland quer o próprio Hancock tiveram os seus momentos mais inventivos, e de que modo, no uso dos instrumentos acústicos.
Foi o concerto de uma formação notável, com um Chris Potter muito inspirado, e o percussionista Vinnie Colaiuta e ainda mais o guitarrista Lionel Loucke (natural do Benim) a revelarem as suas capacidades bem mais que disco.
A noite estava de facto fria, mas o surpreendente Hancock e um grande quinteto (pouco importaram as duas vocalistas, embora não desiludissem) tornaram-na numa miríade de cores, de anima “funky”. E assim Herbie Hancock foi de novo inesperado.
Um famoso tema de Herbie Hancock é “Chameleon”. Sem também ser exactamente um “camaleão” ou um músico de repetidas reinvenções, como Miles Davis (junto de quem se celebrizou no famoso quinteto dos anos 60), Hancock é frequentemente inesperado, mas poucas vezes o foi tanto como neste seu mais recente disco River – the Joni Letters, uma homenagem a Joni Mitchel.
Apesar de tudo, é substancialmente diferente abordar temas de Gershwin, retomar em jeito de “standards” alguns famosos temas pop ou mesmo fazer apelo a um cantor como Sting, tudo possibilidades exploradas noutros trabalhos, e abordar o exemplo peculiar da cantora/autora canadiana – o subtítulo “the Joni Letters” logo indicia uma atenção à escrita dos textos que não existia nos trabalhos anteriores, e essa foi explicitamente uma das motivações de Hancock.
Em nota, o pianista e Larry Klein, co-produtor do disco (e de resto ex-acompanhador e ex-marido da cantora), agradecem a Joni Mitchell nomeadamente “for showing us what artistic commitment means” – “artistic commitment” ou até tão “commitment” num mais sentido cívico, eis uma característica marcante do disco.
Mas Hancock surpreende quer nalgumas das escolhas que não se esperariam num disco seu (Tina Turner cantando “Edith and the Kingpin”, Leonard Cohen dizendo o texto de “The Jungle Line” – embora infelizmente também Norah Jones), quer por ter feito de novo apelo para tão inesperado projecto a velhos companheiros como Wayne Shorter e Dave Holland, ao lado dos novos, e nesse sentido também não-esperados, Lionel Loueke em guitarra e Vinnie Colaiuta em bateria.
Se o disco recria o espírito melancólico das canções de Mitchell – e a própria canta a emblemática “Tea Leaf Prophecy” – não deixa de surpreender o balanço entre os temas cantados (por Mitchell, Jones, uma notável Tina Turner, Corinne Bailey Rae e Luciana Souza– além da voz de Cohen) e os instrumentais, e nestes entre a opção pela versão instrumental (a melhor recriação de todo o disco, e o mais notável momento em termos, digamos, propriamente “jazzísticos”) da mais famosa canção de Joni Mitchell, “Both Sides Now”, e um “clássico” de Wayne Shorter como “Nefertiti”. Dir-se-ia que à imagem das viragens que têm havido ao longo da carreira de Hancock, o próprio alinhamento de River (“I wish I had a river”) é em si mesmo uma paradoxal consagração da imprevisibilidade.
Todo o gesto é demasiado singular para não ser devidamente destacado, pese ainda que, como é provável que fosse inevitável, River não deixe de ser uma obra irregular.
Oscar Peterson (15/08/25 – 23/12/2007) foi um pianista de virtuosismo fenomenal, disso não há dúvidas, e de uma versatilidade que o fez construir uma discografia ímpar na história do jazz, verdadeiramente enciclopédica: tocou com Coleman Hawkins, Ben Webster e Lester Young, com Louis Armstrong e Ella Fitzgerald, com Billie Holliday e Sarah Vaughn, com Charlie Parker e Dizzy Gillespie, com Johnny Hodges, Benny Carter, Sonny Stitt e Stan Getz, com Roy Eldrigde, Clark Terry e Freddie Hubbard, com Lionel Hampton e Milt Jackson, com Stephane Grapelli e até um violinista clássico como Itzhak Perlan, etc!
Um e outro factor muito contribuíram também, no entanto, para a continuada desconfiança que também muito suscitou, a suspeição de um virtuosismo mecanicista, a que acresceu o facto, também ele “suspeito”, que desde o momento em que o célebre produtor Norman Granz o descobriu e contratou para o arranque do Jaaz at the Philarmonic, no Carnegie Hall, em 1948, foi muito mais um músico de salas de concerto do que de clubes.
Todavia, excepto explicitamente Miles Davis, os seus pares não cessaram de o admirar: a discografia é disso exemplo suficiente, mas houve mais e conhecidos elogios, como o de Duke Ellington, que lhe chamou “o marajá do teclado”, de Count Basie que dele disse que tocava “a melhor caixa de marfim que alguma vez ouvi”, de Ray Charles que tão só exclamou que "Oscar Peterson is a mother fucking piano player!". Ainda mais digno de consideração é o respeito que por ele manifestaram outros pianistas, como Bill Evans, ou Herbie Hancock e Diana Krall que num artigo ontem publicado no “Los Angeles Times” diziam, um e outra, que Peterson tinha sido a influência decisiva que os fez tornarem-se pianistas de jazz.
Se é certo que momentos houve, e vários, em que a auto-confiança do virtuosismo o fez rodear-se de comparsas sem espaço de afirmação, e com isso se tornou também previsível e superficial, não é menos certo que Oscar Peterson todavia também não cedeu a compromissos de modas e vagas, como sucedeu por exemplo com um Dave Brubeck ou um Stan Getz, e que para além do seu prodigioso pianismo deu redobrados lustros à arte do trio, nomeadamente quando se rodeou de um contrabaixista e de um guitarrista, como com Ray Brown e Herb Ellis nos anos 50 e Niels-Henning Orsted-Pedersen e Joe Pass nos anos 70.
Com Ray Brown e Herb Ellis
Oscar Emmanuel Peterson era afro-americano, mas não cidadão dos Estados Unidos: nasceu numa família pobre, nos subúrbios de Montréal – de resto cidade de origem de outro pianista de jazz, Paul Bley, sendo que com esses, como com um Neil Young, até um David Cronenberg, ou Diana Krall também, muitas vezes se esquece que são canadianos e não norte-americanos. E se foram inúmeros os prémios que recebeu, incluíndo sete “Grammies” e o “Life Achievement Award”, além de muitos triunfos nas votações anuais da revista “Down Beat”, no seu país foi cumulado de honras.
Peterson, de resto, tinha particular orgulho, entre as suas obras, pela “Canadiana Suite”. Ocorre dizer-se que era mesmo um totem nacional, atendendo nomeadamente a que em 2005, quando dos seus 80 anos, os correios canadianos fizeram-no mesmo objecto de um selo, a única vez que isso ocorreu com alguém vivo, que não os soberanos.
Apesar de ter aprendido música desde cedo, Peterson tornou-se profissional contra a vontade do pai, que contudo lhe disse que então tentasse “ser o melhor” – conselho que Oscar Emmanuel nunca esqueceu.
A influência de Teddy Wilson e de Nat “King” Cole (a de Cole perdurou aliás não só numa certa tendência a um melodismo insinuante como sobretudo na sua própria arte do trio) conjugou-se com uma descoberta que começou por ser um choque intimidante: a de Art Tatum.
No referido artigo do “Los Angeles Times”, Herbie Hancock conta também como um dia ousou finalmente perguntar a Peterson o que sentira perante Tatum, e ele contou como depois do ter ouvido foi para o segundo andar da sua casa e quis mandar fora o piano. “You too, Oscar?”, perguntou Hancock; “Me too. Tatum scared me to death”, respondeu o outro.
O certo é veio a atingir níveis de virtuosismo só comparáveis aos de Tatum, e todavia mais substantivos, quando o outro tendia a ser mais pirocténico. Combinando a mão esquerda do pianismo “stride” com uma prodigiosa destreza da mão direita, um incrível jogos de pedais e uma assombrosa variedade no “toucher”, Oscar Peterson, por muitos momentos mais superficiais que também tenha tido, foi sem dúvida um gigante do piano e um gigante do jazz.
P.S. – Cabe recordar que, depois das mortes de Max Roach e agora de Oscar Peterson, os dois grandes gigantes do jazz veteranos entre os veteranos são Ornette Coleman, que veio este ano ao “Jazz em Agosto”, e Sonny Rollins, que a 18 de Setembro passado assinalou o 50º aniversário da sua estreia no Carnegie Hall, num concerto com Roy Haynes e Christian McBride, uma gravação a ser editada em 2008. Ambos têm 77 anos.