Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

As oratórias não-biblícas

 

 

 

 

 

 

Haendel
Theodora
Dawn Upshaw, David Daniels, Richard Croft, Lorraine Hunt, Frode Olsen
Orchestra of the Age of Enlightment
Cenografia de George Tsypin
Encenação e realização de Peter Sellars
Orchestra of the Age of Enlightment
Direcção de William Christie
Produção do Festival de Glyndebourne
Dvd Warner/NVC 
 
Hercules
William Shimell, Joyce DiDonato, Toby Spence, Ingela Bohlin, Malena Ernman
Encenação de Luc Bondy
Les Arts Florissants
Direcção de William Christie
Produção do Festival de Aix-en-Provence
Realização de Vincent Battaillon
2 DVD Bel Air , dist. Harmonia Mundi
 
Pois que falei, a propósito da Semele, da importância de ter em dvd acesso a realizações cénicas de todas as três oratórias não-biblícas de Haendel, cabe recordar as outras duas.
 
Entre as encenações de ópera que contribuíram para a nomeada de Sellars houve um Giulio Cesare de Haendel absolutamente derisório - à época, que foi a da primeira Guerra do Golfo, era impossível não ver nesse César revisto pela CNN uma paródia de Bush pai, o que, longe de ser uma entorse à obra, era uma peculiar leitura de um carácter paródico que ela já tem.
 
A encenação de Theodora procede daí: também Valens, o pró-consul romano, começa por fazer uma conferência de imprensa. Mas o quadro é bem mais dramático, com os romanos apresentados como força de ocupação e os cristãos como resistentes. O que podia ser mais outro estapafúrdio exercício “neoconceptual” ou "desconstrutivista" torna-se, no entanto, pungente pela inteligência de encenador e intérpretes na construção das personagens de Theodora (Upshaw), Dydimus (Daniels) e sobretudo a malograda Hunt (Irene), que, depois da sua memorável Medée de Charpentier, mostrava de novo a intérprete trágica de excepção que era.
 
Este dvd não é apenas o registo de uma produção excepcional - é também a peça capital da discografia de uma das mais extraordinárias obras de Haendel.
 
Oito anos depois Christie dirigia de novo cenicamente outra oratória não-biblíca, o Hercules, este mesmo designado “a musical drama”., inspirado em Sófocles. Quanta tinta fez correr esta produção do Festival de Aix-en-Provence de 2004, quanta indignação da nova ortodoxia, do novo "reaccionarismo barroco", que "exige" que as obras sejam apresentadas e encenadas estritamente segundo os códigos "da época"!
 
Luc Bondy não seria o encenador que mais ocorreria para uma proposta deste tipo, quanto se poderia pensar por exemplo num Peter Stein (e vendo-se o registo do espectáculo, torna-se patente que Bondy, que sucedeu a Stein como director da Schaubühne, guardou a memória de espectáculos daquele, como de Klaus-Michael Grüber). O próprio fartou-se aliás de explicar como a princípio a proposta lhe pareceu excêntrica aos seus interesses, acabando por se deixar convencer, fruto de persuasão também do conhecido dramaturgo britânico Martin Crimp. De facto, Bondy viria a fazer um díptico: este Hercules e Cruel and Tender, peça do próprio Crimp, reescrevendo a tragédia de Sófocles.
 
A obra chama-se Hercules, mas a formidável personagem principal, uma das mais desmesuradas de Haendel, é a sua esposa, Dejanira, aquela que aguarda o herói e que depois, quando o vê regressar com a bela princesa cativa Iole, é desvairadamente devorada pelo ciúme. O imenso potencial dramático da obra não obsta a que existam questões de género e de estilo consubstanciais à matéria musical, como a repetição da capo ou o papel do coro, que constituem, e que certamente constituíram, importantes problemas cénicos.
 
O que pode desconcertar numa recepção atenta deste duplo DVD é a verificação que as direcções cénica e musical de Bondy e Christie respectivamente seguem em separado. Mas o trabalho aproximado da câmara cria uma relação de todo diferente de uma perspectiva na plateia, e neste caso particularmente esclarecedor, porque se diria interna ao bunker da cenografia de Richard Peduzzi. Deste modo é possível seguir atentamente o drama de Dejanira (formidável Joyce DiDonato), como também o de Iole, e o coro ganhar pela montagem um outro sentido dramático (por exemplo, a entrada em Jealousy! Infernal pest).
 
O concreto objecto, o DVD, é assim suficientemente interessante, e mesmo que não se afigure uma referência, como a Theodora por Sellars e o mesmo Christie, revela uma perspectiva menos patente de Haendel, e do modo como nele se cruzaram a tradição inglesa, que consolidou, com a reminiscência operática e italiana – perspectiva, a das oratórias não-bíblicas, agora completada com a Semele.

 

"Furore" e furor

 

 

 

 

Haendel
Furore
Árias de “Serse”, “Teseo”, “Giulio Cesare”, “Admeto”, “Hercules”, “Semele”, “Imeneo”, “Ariodante” e “Amadigi”
Joyce diDonato
Les Talens Lyriques, Christophe Rousset
Virgin
 
 
A meio-soprano norte-americano Joyce DiDonato começou por se notabilizar em papéis rossinianos, no Barbeiro de Sevilha e na Cenerentola. De Rossini a Haendel foi um passo, o que se compreende, porque dadas ainda notórias diferenças, como os affetti da estética barroca próprios às óperas do caro sassone, ambos são os grandes mestres (eles sim, se bem que possamos acrescentar Vivaldi) do que é efectivamente o bel canto, o canto ornamentado – e não, como erroneamente (não me canso de o repetir) se repete, os compositores do primeiro romantismo, Bellini e Donizetti, já de canto spianato (de linha aplanada), embora ainda com alguns resquícios “belcantistas”.
 
Em 2004, DiDonato estreava-se em Haendel num delicioso disco de duetos operáticos com Patrizia Ciofi, “Amor e gelosia” (Virgin), imaginativamente organizado e dirigido, surpresa, por Alan Curtis – ele que por hábito tão académico é. Entretanto cantou em cena esse grande “papel” que é a Dejanira do Hercules, uma das tais oratórias não-biblícas de Haendel, verdadeiros dramme per mùsica, que têm vindo a ser representadas com alguma regularidade. A sua voz também tem vindo a evoluir, mais aguda, entre o mezzo e o soprano, e de facto até gravou mesmo uma parte de soprano, outro papel handeliano, o de Alcina na ópera homónima, gravação que aliás acaba de ser lançada – a extensão e facilidade da sua voz são aliás bem patentes neste disco.
 
Falei dos affetti barrocos. DiDonato não só escolheu Haendel para o seu primeiro recital, como um tipo de árias particular, de um affetto específico, o furore, mostrando os seus formidáveis meios. Todavia é preciso fazer algumas precisões: escolheu a cantora aproximar-se de uma maior caracterização de duas personagens, a Medea de Teseo (tenha ela oportunidade e que espantosa maga deve ser) e a Dejanira de Hercules, com várias árias de uma e outra, sendo que Dolce riposo da primeira e Then I am lost… da segunda não são árias de furore. Por outro lado, e apesar da secção central, é duvidoso que o famoso Scherza infida de Ariodante caiba no objectivo programático – é mais um lamento. Ora, contradição, a interpretação dessa ária, superlativamente admirável, é o pináculo do recital, enquanto no papel que mais se esperaria de DiDonato, o Where shall I fly? de Dejanira (e que por alguma razão encerra o programa), porventura por marcas da experiência cénica, é de um exagero de efeitos de todo despropositado.
 
A escolha do programa é interessantíssima, mesclando trechos de obras mais conhecidas com outras que o são muito menos. A robustez da voz e a facilidade da emissão impressionam, mas ainda mais a inteligência do rubato e do fraseado, sobretudo da conclusão das frases, e da coluratura (embora com alguns gorgejos dispensáveis), a eloquência (Hence, Iris hence away da Semele, mesmo que não faça esquecer a histórica interpretação de Marilyn Horne), a formidável autoridade (Orride larve…/Chiudetevi miei lumi do Admeto), tudo isso tornam marcante esta estreia em recital de Joyce DiDonato, confirmando-a sem margem para dúvidas como uma intérprete haendeliana a considerar. Infelizmente, e não é pequeno pormenor, o acompanhamento de Les Talens Lyriques e Christophe Rousset é só isso, “acompanhamento” sem chama dramática.
 
 Pelas objecções apontadas também me deixa algo reservado o imenso furor em torno deste recital, que de qualquer modo, é óbvio, não pode deixar de ser um disco recomendado.