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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Ano Händel e Haydn

 

 

Em 1815 um grupo de comerciantes de Boston fundava a Handel and Haydn Society. É uma data de não pequena importância na história da interpretação musical e das práticas de concerto: essa sociedade foi a primeira instituição musical especificamente votada para o repertório do passado, ainda que um passado muito recente, no caso de Haydn, falecido apenas seis anos antes.
 
Como nunca é de mais lembrar, até à primeira década do século passado as práticas de concerto e de ópera incidiam sobretudo em obras então “contemporâneas”, só depois da ruptura modernista e da primeira grande catástrofe, a Guerra de 14-18, se estabelecendo a dicotomia entre o “cânone clássico” e a “música contemporânea” – paradoxalmente, a criação da Sociedade Internacional de Música Contemporânea, logo ocorrida num futuro “santuário” da tradição, em Salzburgo, e no momento em que efectivamente começava o célebre festival, em 1922, essa fundação, com o objectivo de divulgação, não deixou de no entanto contribuir para a “demarcação” de um campo à parte.
 
É certo que a reverência para com autores pretéritos, Bach ou Beethoven, se estabelecera já ao longo do século XIX – mas justamente os primeiros modelos foram Haendel e Haydn.
 
Note-se que no caso de Haendel de que se tratava era das oratórias, que por sua vez haviam influenciado Haydn nas suas estadias londrinas, levando-o a compor A Criação e As Estações. Era aliás a essas obras que a Handel and Haydn Society se votou.
 
Curiosamente, mas não tanto casualmente, a instituição que selou a associação dos dois compositores seria também, mais de 150 anos volvidos sobre a sua criação, uma das pioneiras nos Estados Unidos dos novos entendimentos da “música antiga e barroca”.
 
Se há razão para recordar esta história no início de 2009 é porque um dos traços culturais contemporâneas, e das práticas culturais institucionais, é o culto da efeméride. Em 2009 assinalam-se os 250 anos da morte de Haendel e os 200 anos da morte de Haydn. Também ocorre, é certo, o bicentenário do nascimento de Mendelssohn, ou seja, entramos no ciclo da “geração romântica” (Schumann e Chopin no próximo ano, Liszt em 2011), mas não será difícil prognosticar que serão Händel e Haydn os destaques.
 
Sendo inelutável este culto da efeméride, que aliás se vai estendendo a todos os domínios, não é menos certo que por vezes esse proporciona situações de programação e de edições discográficas interessantes. A ver vamos.

 

Em nome de Bach (Leonhardt - IV)

"A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach”.
 
 
 
 
 
 
Além dos discos, houve outro registo que foi muito importante para o dar a conhecer, A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach,  filme de Jean-Marie Straub. Interpretar Bach nesse filme foi uma experiência importante na sua vida?
 
Bem, isso seria exagerado. Estava curioso de saber como se fazem filmes e esse caso foi excepcional, porque a música foi gravada na própria filmagem. Straub viu isso muito bem, é um elemento essencial. Mas nunca me senti como Bach; fui escolhido porque em parte fazia a mesma coisa que Bach, tocava cravo e órgão e dirigia.
 
 
Quando decidiu que a música era a sua vocação?
 
Bah!, isso é uma ideia romântica, mas acho que foi por volta dos 15, 16 anos.oo
 
Mas há um processo muito concreto de escolher um instrumento.
 
Acho que foi sobretudo Bach que me atraiu para a música e com Bach veio o cravo e o órgão. Depois vieram todos os outros compositores do tempo de Bach e de antes, e alguns, poucos, de depois. O meu pai era vice-presidente da Sociedade Bach na Holanda e levava-me aos ensaios, quando eu teria uns 9 ou 10 anos, ou a ouvir as Paixões.
 
 
Houve um momento em que você, e outros implicados no mesmo processo, tiveram a noção de que precisavam de procurar os instrumentos certos, "de época". Quando é que isso se tornou óbvio?
 
De facto, mais tarde do que deveria. Envergonha-me dizer que as primeiras gravações que fiz, em meados dos anos 50, da Arte da Fuga e das Variações Goldberg foram feitas com maus instrumentos, historicamente de todo inadequados. Foi só no final dos anos 50 que tive a revelação de cravos antigos - "Deus do Céu, isto é que é um cravo!", a maneira como soavam. Em Basileia, estudávamos tudo sobre os ornamentos e temperamentos, tudo muito científico, mas esquecíamo-nos de como soar - muito estranho.
 
O grande projecto que deu impacto ao movimento foi a gravação integral das Cantatas de Igreja de Bach dirigidas por si e Harnoncourt. Como as cantatas foram escritas para específicas ocasiões litúrgicas, alguma vez pensou que poderiam estar a fazer uma "profanação" dos propósitos?
 
Não. Claro que, se em Novembro se gravava uma cantata para a Páscoa, se tinha que pensar em termos da Páscoa. Mas, por outro lado, ficámos muito menos constrangidos por não ter que estar ao longo de um ano a gravar todas as cantatas de acordo com as ocasiões do calendário para as quais foram escritas. Agora não: se me pedem para dirigir a Paixão Segundo S. Mateus em Agosto, não - só aceito fazê-la na semana antes da Páscoa. Os discos são diferentes, mas aos concertos as pessoas devem acorrer para compreender o que Bach queria dizer, a sua fé.
 
E os que não têm essa fé?
 
Não quero julgar, não posso.
 
Mas sabe certamente que há muitos auditores que não têm essa fé e, no entanto, são tocados pela música de Bach.
 
Isso é maravilhoso, mas talvez estejam influenciados pelo que considero a minha fé, e a de Bach, sem se darem conta disso. Há algo, o espírito paira.
 
Mas então, sendo a sua fé calvinista, não segue estritamente os propósitos de Bach, que era luterano.
 
Bem, esse ponto é importante. Acredito que há música religiosa que não tem que ser só para os serviços litúrgicos. Nesses também há música, mas não é o único elemento. A música apela aos sentidos, mas num serviço litúrgico, mesmo quando há música, os sentidos devem ser excluídos. Mas, lá está, o espírito religioso pode influir num compositor quando escreve música.
 
Com as suas convicções calvinistas, como se sente quando de si se diz que é "o Papa" da música antiga. Como se sente?
 
(Risos) É errado em todos os sentidos. Para os católicos, o Papa encarna o poder do espírito, a verdade da fé, o que é uma coisa que eu não posso compreender. Em música, eu não quero ditar nenhuma ideia, não penso que tenha a verdade. Não penso que os outros devam fazer o mesmo que eu, têm que descobrir o caminho por eles.
 
Mas claro que tem a noção de que foi um dos pais fundadores.
 
Não, não tenho nada. Não sou o único.
 
Eu dizia, um dos...
 
Bom, está bem.
 
Tem a noção que o que realizou foi mesmo uma revolução?
 
Bem, uma revolução é uma coisa muito agressiva, e eu não o sou nada. Nunca foi o
meu objectivo mostrar que os outros estavam errados. Apenas me fascinou olhar para obras antigas, descobrir a teoria em volta, fazendo-o de uma maneira talvez diferente, aquela em que eu acredito, mas nunca me dei conta de nenhuma ideia revolucionária, de todo. Se outras pessoas gostavam do que eu fazia, tanto melhor, mas só isso.
 
Mas será então um conservador?
 
Não sei o que isso é. Gosto de conservar as boas coisas e mudar as más.
 
Não vê o risco de as revoluções devorarem os seus próprios filhos?
 
Boa questão! Não digo devorar, mas já começa a atingir alguns. Esta música já se tornou tão popular e muitos músicos são atraídos por ela por saberem que está em grande procura. E tocam com instrumentos que não são de época, ou sem o espírito. É que já se pode ganhar a vida tocando barroco. Também há passos em frente - Harnoncourt, dirigindo orquestras modernas, deu pequenos passos, consciente do facto de que o seu próprio conjunto é melhor, porque os instrumentos são apropriados. É um passo de transição. Mas há tantos músicos agora que não têm a experiência e são superficiais. E assim são um pouco devorados os filhos da revolução…
 
Incomoda-o saber que hoje o barroco está tão na moda?
 
Bem, também é maravilhoso. Não estou incomodado.
 
As obras nos seus discos vêm até Scarlatti, os filhos de Bach e num caso o jovem Mozart. É o que está para trás que é o seu mundo?
 
Em música e em arte, absolutamente sim. Quando se faz da arte o modo de vida, tem que se escolher um campo. E como eu escolhi os instrumentos de tecla (embora também tenha tocado violoncelo), naturalmente que me limitei ao órgão e ao cravo. E quando se faz a escolha, com os instrumentos vem a concentração num dado período, que é suficientemente longo. Para mim, são 200 anos, mas com que variedade, quase impossível de albergar, de Sweelinck a Wilhelm Friedmann Bach! É tanto em arte!
 
 
 
 
Extractos de uma entrevista no “Público” de 29-03-03

 

O momento fundador (Leonhardt - III)

 

 

 

 
Em 1979, Gustav Leonhardt apresentou-se pela primeira vez em Portugal, trazido pela Gulbenkian. Na altura, havia um único cravo segundo modelo de época, no Porto, propriedade de Maria de Lurdes Alves. Assim, a 3 de Maio, Leonhardt fez um recital de cravo no Ateneu Comercial do Porto, onde em “peregrinação” o fui ouvir, e no dia seguinte tocou no órgão da Sé de Lisboa. Retomo agora o texto que então publiquei, o que é também um contributo da a história da “música antiga” em Portugal.
 
 
 
E depois de Leonhardt?
 
 
 
“A sua aparência e a forma como se apresenta em palco são severas, mas a maneira como toca define-o como um cripto­-romântico" - nestes termos se referia a Leonhardt há alguns meses o crítico inglês John Duarte; “cripto-romântico" po­derá dar azo a alguma confusão, já que poucos músicos estarão como ele tão afastados (e mesmo em oposição) dos princípios român­ticos de interpretação; mas tam­bém poucos serão tão expressivos, terão uma tão notável capacidade de comunicar ao auditor as reais dimensões duma obra (e dai o uso daquela expressão). Considerar "secas" as interpretações de Leonhardt, como alguns ainda pretendem, não é senão revelador do cabotinismo conservador de quem faz tais apreciações.
 
No Porto, Leonhardt interpretou Suites de Peças de Jacques Duphly e Antoine Forqueray e a trans­crição para cravo da Partita em ré menor de Bach, num instrumento construido por Mendorf em 1975, tendo como modelo um Dulcken de 1745 (o cravo de Martin Skowronek com que Leonhardt tem gravado Bach. foi construído segundo o mesmo modelo); poderá chocar alguns constatar que destas três obras apenas a de Duphly foi originalmente escrita para o instrumento mas que não haja quaisquer dúvidas que a transcrição é, em abstracto, perfeitamente legítima - não conhecemos por exemplo trans­crições que Bach fez das suas próprias obras?
 
Do que duvido é que as Peças de Forqueray sejam das mais in­dicadas para isso - escritas para viola de gamba e baixo continuo, publicadas por Jean-Baptiste Antoine, filho do compositor e tal como ele "virtuose" do ins­trumento (a sua dificuldade era de tal ordem que na edição figuram indicações detalhadas das po­sições) foram esquecidas com o abandono da viola em favor do violoncelo, o que acarretou o eclipse do próprio compositor a quem uma das últimas referências é uma peça de Duphly chamada "La Forqueray",segundoos há­bitos franceses de designação (por exemplo Rameau e Forqueray compuseram cada um peças com o nome do outro, e uma das do segundo tem o nome de "La Portugaise"). No cravo, estas peças (Leonhardt interpretou algumas constantes da Suite V em dó menor) tornaram-se pouco contrastadas pelo carácter lu­thié (utilização constante do abafador) e por se desenvolverem quase exclusivamente nos graves.
 
As obras de Duphly e Bach, foram assim bem mais claras do estilo de Leonhardt. que po­deremos caracterizar por um toucher extremamente preciso, pela riqueza da articulação, pelo rigor rítmico em que uma pulsação rígida não obsta à prática de descontinuidades e de abandonos retidos mas controlados (criando a sensação de improvisações), pelo carácter arpejado e sobretudo por uma agógica que valoriza a expres­sividade de cada frase preservando a arquitectura fundamental da obra. Talvez que poucas peças possibilitem uma tão clara cons­tatação destas características como a grande Chacone da Partita de Bach. com que terminou (em extra ainda houve outra trans­criação bachiana, a Sarabanda da 3ª Suite para violoncelo) um prodigioso recital.
 
Se no órgão Leonhardt mantém as mesmas características fun­damentais, numa forma porventura menos clara, outro aspecto das suas interpretações é no entanto patente - em oposição às grandes massas sonoras das concepções românticas, Leonhardt segue uma via "linear", clarificadora das diversas "vozes". Mas, no caso concreto do recital na Sé de Lis­boa, é de lamentar que seguindo um estilo de programas que lhe é peculiar. (constituído por peças raramente interpretadas). Leo­nhardt não tenha incluído qual­quer obra de autores para cuja descoberta foi fun­damental, como Frescobaldi,  Froberger e Sweelinck; se assim ouvimos as duas obras de Kerll (com a de Purcell. os pontos altos do recital), dispensaríamos bem outras como a de Eberlin.
 
O êxito obtido, sobretudo a ovação sem precedentes que lhe foi tributada na Sé, terá sido a mais evidente demonstração da neces­sidade de continuar a programar Música Antiga; é particularmente necessário que se resolva a incrível situação de não existir um cravo barroco em Lisboa; é particular­mente necessário (mas para isso o cravo é fundamental) que depois deste marco fundamental que foram os recitais de Leonhardt. possamos ouvir agrupamentos dedicados à música barroca, que têm sido talvez os mais descurados entre nós -se exceptuarmos esses pioneiros (mas cujas concepções em apectos tão fundamentais como o vibrato e a articulação, são hoje criticáveis) que foram a Schola Cantorum Basiliensis e August Weizinger, apenas ouvimos o Collegium Aureum (já depois dos seus tempos áureos com Leonhardt e os Kuijken) e a Musica de Camera de Amesterdão, com Ton Koopman.
 
Aguardemos que os Segréis de Lisboa passem a abordar também esse campo, como foi prenunciado pela sua interpretação da ária da Música do Orfeo de Monteverdi. e é possibilitado pela sua recente obtenção de violinos barrocos, e entretanto aqui fica uma pequena lista de espera: Nikolaus Har­noncourt e o Concentus Musius Wien, Jaap Schröder e o Concerto Amsterdam, o Quadro Amsterdam (Frans Brüggen, Leonhardt, Schroder e Anner Bylsma), Sigis­wald, Wieland e Barthold Kuijken, Trevor Pinnock e The English Concert, Cristopher Hogwood e The Academy of Ancient Music. Para quando?
 
 
Expresso 12-05-79
 
 
 
Como fica claro, a vinda de uma das figuras tutelares dos novos conceitos interpretativos de música barroca tornou-se efectivamente num momento fundador. Na temporada seguinte, e de resto por uma sugestão minha à então subdirectora do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian, Maria Fernanda Cidrais (que também me importa evocar pelo seu tão importante contributo de programação), vieram os Kuijken, que interpretaram Trios de Haydn. Logo depois, no início da temporada 80/81 começaram as Jornadas de Música Antiga.
 
Mas para se ter em conta o provincianismo que havia, acrescento que no “Comércio do Porto” foi publicada uma “crítica” dizendo da surpresa por a sala do Ateneu se ter enchido para ouvir um “intérprete desconhecido” (!), e que para mais se dedicava ao cravo, “esse instrumento arqueológico” (!!).