No dia do derradeiro concerto de Alfred Brendel, em Viena
A capa desta caixa, aliás as capas, exterior e interior, bem como as fotos do livrete, induzem em erro: são fotos recentes de Alfred Brendel, quando as gravações registadas nestes cinco dvds datam de há 30 anos, isto é de meados dos anos 70.
Devidamente estabelecidos os factos, estes, longe de diminuírem o valor do testemunho, pelo contrário tornam-no mesmo mais precioso – ouso mesmo dizer, pelas razões que explicarei, como um dos intrinsecamente mais valiosos testemunhos de arte pianística publicados em dvd, e que só em dvd podiam ser publicados, malgrado a mediocridade da realização televisiva.
Recordo que Brendel iniciou a sua carreira em 1948. Desde cedo, é certo, dedicou-se a Beethoven e Mozart (e continuo a ter – como tive aliás ocasião de lhe dizer – uma intensa relação afectiva com os seus primeiros registos de concertos do segundo, os discos que na adolescência me fizeram verdadeiramente descobrir Mozart, e no tocante a este compositor ainda, continuo a pensar que o seu disco em duo com outro pianista, hoje pouco lembrado, Walter Klien, é uma peça a considerar na discografia geral do autor), afinal os dois compositores entre outros canónicos, mas é curial também lembrar factos que hoje muitos nos podem espantar, como que a sua 1ª gravação foi do Concerto nº 5 de Prokofiev, que se dedicou aos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky ou a Islamey de Balakirev, em suma a um repertório virtuosístico, ainda que o inevitável Liszt fosse já então por ele abordado numa perspectiva mais abrangente e menos puramente de fogos de artificio – para se ter a concreta noção pode-se ouvir a recente colectânea completa das gravações, a preço muito acessível, “Young Brendel”.
Mas nos anos 70, Alfred Brendel “reinventou-se” ou consagrou-se como o Brendel que tanto viríamos a admirar, e a este respeito é pertinente abrir um horizonte mais geral.
De facto não foi assim há tanto tempo, 30 anos, mas hoje é de tal modo uma evidência que tendemos a obliturar a contextualização de um facto da maior importância para a arte pianística e para a arte da interpretação musical: nos anos 70, dois pianistas, Alfred Brendel e Maurizio Pollini operaram por assim dizer um “corte epistemológico”, com interpretações muito mais “pensadas” analiticamente e, quando caso, fundadas em pesquisas musicológicas. A contextualização e identificação deste “corte” de tão vastas consequências suscita aliás duas questões colaterais: 1) dificilmente é apenas coincidência que tenha ocorrido no momento de eclosão da “nova música antiga”, filológica e historicamente fundada, e 2) ambos os pianistas se interessaram também por música mais recente no tempo, sendo mesmo que os dois, Brendel e Pollini, foram quais “apóstolos” do Concerto de Schönberg, Pollini tendo-se também dedicado mesmo à música contemporânea (Stockhausen, Nono) que se Brendel não praticou seguiu curioso nalguns casos, como o dos Estudos de Ligeti.
Haverá sempre quem toque ainda como se esta mutação não tivesse existido mas, directa ou indirectamente, a maioria dos pianistas posteriores, dos actuais pianistas portanto, é devedor deste decisivo “corte epistemológico” operado há 30 anos por Brendel e Pollini – por isso parece uma evidência quando afinal esta radical alteração foi ainda há relativamente pouco tempo.
O repertório em que os dois pianistas eminentemente assinalaram um tal “corte” foi o ciclo beethoveniano e as obras de Schubert.
Claro que no tocante a Schubert havia o exemplo precursor de Arthur Schnabel, desde os anos 30, tinha havido Wilhelm Kempf e sobretudo o maravilhoso Rudolf Serkin, mas é importante frisar que Brendel e Pollini iriam, facto inaudito, colocar as tão contestadas ao longo do tempo três últimas Sonatas de Schubert ao nível das suas homólogas de Beethoven – Brendel afirma aliás essa sua convicção nesta série, no dvd 4, na apresentação da Sonata D. 958, a 1º das três últimas.
Vamos então aos factos: estes cinco dvds recolhem um conjunto de 13 programas feitos para a Rádio de Bremen em associação com uma produtora televisiva, em meados dos anos 70, como se disse, e para além da qualidade das interpretações, por vezes excepcional, como as da Sonata D784, da op. 42 D 845, da op. 53 D 850 “Gastein”, da D. 894, da D. 959 ou dos Impromptus, é uma lição analítica absolutamente magistral
Iimporta aliás notar que no momento porventura mais elucidativa do projecto, a introdução à penúltima Sonata D. 959, Brendel explica com assinalável clarividência as razões da “démarche” : “sempre me preocupei em saber o que distingue uma obra-prima das obrras de um compositor menor”. Como se “racionaliza” essa diferença (e uma tal “racionalização” foi crucial ao tal “corte” por isso mesmo “epistemológico”)? Daí surgem a explicação e os detalhes.
Diria mesmo mais: a disciplina de “análise musical” é muitas vezes árida, mais, o seu uso na música contemporânea tornou-se muitas vezes um exercício de legitimação que quase se diria dispensar o real acto de concretização da obra, de a tornar pública através de uma real interpretação. Ao longo das introduções, mas em particular neste momento no último dvd introduzindo a Sonata D. 959 dir-se-ia que a lição de Brendel é tal modo elucidativa que mesmo os alunos de “análise musical” lhe deviam atender.
Quando se ouviu actuarem autênticos “monstros sagrados” do piano, “lendas vivas” tidas como “grandes anciãos”, como um Rubinstein, um Horowitz ou um Arrau, mais se diria haver um sentimento perplexo de perda agora na despedida de Alfred Brendel. No entanto o pianista austríaco está na mesma casa de idades de c. 75 anos dos outros, 77 para ser preciso.
Para além da emoção que em si mesmo suscita a despedida de um tal intérprete, de onde provém esta ideia de discrepância, afinal factualmente errónea? Em parte do facto de Brendel também ser de algum modo um pianista relativamente “recente”, de reputação só consolidada a partir dos anos 70, e da sua ligação discográfica à Philips. Mas também porque Brendel foi um pianista “moderno”, que impôs Haydn e Liszt no reportório (não o Liszt de brilho e fogos de artificio que sempre foi tocado, mas um outro, o da Sonata em si menor por exemplo), ou o Concerto de Schönberg. Mas sobretudo porque o seu rigor intelectual e prolongado contacto com as obras, o seu “sentir” delas, foram modulando uma arte da música ao piano prodigiosamente decantada – e o extraordinário recital de ontem na Gulbenkian (não, não foi apenas a emoção do momento foi mesmo extraordinário) foi disso exemplo acabado, mesmo o mais extraordinário dos seus recitais em Portugal depois daquele, verdadeiramente “histórico”, no Porto, no Rivoli, integrado no 5º Festival da Póvoa do Varzim ao tempo ainda sob a direcção artística de Sequeira Costa, a 16-07-83, em que interpretou as três últimas sonatas de Beethoven – e em que tantos fomos os idos de Lisboa que felizmente a casa não estava vazia!
A decisão de se retirar, por muito que nos custe, é ainda um acto de inteligência, como se deduz do comunicado. “Alfred Brendel, um dos mais célebres pianistas do mundo, anunciou que dará o último concerto da sua carreira em Viena a 18 de Dezembro de 2008. Interpretará o Concerto para piano nº9 ‘Jeunehomme’ de Mozart [que escolha, reveladora de um dos mais fortes traços da sua personalidade, o sorriso irónico] no Musikverein com a Orquestra Filarmónica de Viena dirigida por Charles Mackerras. Nessa data terá setenta e sete anos e terá passado mais de sessenta anos da sua vida a dar concertos. O Senhor Brendel sempre anunciou a sua intenção de findar a sua carreira no auge desta, num momento em que o interesse do público através do mundo não tivesse decrescido. Longe da ideia de digressão ou concerto de despedida, ele prefere simplesmente parar. O Senhor Brendel vai prosseguir actividades que lhe são caras como a literatura, campo no qual tem tido já grande sucesso, e fará conferências em universidades e instituições musicais”.
“Parar”, seja – mas como não sentir ainda assim a emoção da “despedida”?! O certo é que, como se apresentou, está no “auge”, no “auge” da sua tão particular arte do classicismo.
Tendo vindo a restringir o seu reportório ao longo dos anos, Brendel apresentou ontem um programa exemplar do classicismo e do primeiro romantismo, um programa exemplarmente vienense com as Variações em fá menor, Hob VVII: 6 de Haydn, a Sonata em fá maior K.5333/494 de Mozart, a Sonata em mi bemol maior, op 27, nº1, Quasi una fantasia de Beethoven e a derradeira Sonata em si bemol maior D. 960 de Schubert – e pode notar-se um dos seus princípios, o de sempre apresentar obras em tonalidades diferentes.
É extraordinário como ele consegue pôr em relevo o “carácter” de cada obra, tornar o sentir delas como princípio, “o alfa e o ómega de um músico” como diz. Depois, é a prodigioso articulação, a pertinente discreção dos pedais, os harpejos e trilos assombrosos, enfim, a desenvoltura do discurso, de uma arte íntima de conversação (já agora, não por acaso um dos desejos de Brendel é o de um público silencioso e que só aplauda no fim – e a conhecida síndrome das “tosses na Gulbenkian” fê-lo parar duas vezes seguidas no 1º andamento da Sonata de Schubert).
Este foi um daqueles momentos, um daqueles recitais, que podemos ter de certeza certa que ficará memorável, pelo adeus e por ter sido tão maravilhoso. Esperemos agora continuar a ter notícias de Alfred Brendel, ou por “novas antigas” gravações, aquelas que ele encontra em arquivos e autoriza para edição, ou pela publicação de novos livros.
Muito obrigado, Alfred Brendel.
Adenda – Por uma vez, porque o caso é de facto diferente, merecem consideração as três peças que Brendel tocou em extra, um Impromptu de Schubert, depois, surpresa, No lago de Wallenstadt dos Années de Pèlerinage – Première année: La Suisse de Lizst (qual “reminiscência” – para empregar um termo também lisztiano – de um compositor a que esteve tão associado e de modo tão importante, mas que deixou nos seus programas) e uma das Bagatelas de Beethoven. É que a interpretação destas miniaturas foi exemplar da tal questão do “carácter” da obra, da reflexão sobre elas que permite compreendê-las e senti-las. Como é que, por uma, uma Bagatela se torna uma “obra” por inteiro, eis o prodígio. E, pensando bem, terminar um tal concerto de despedida com uma Bagatela, eis o que, acaso que também seja, é uma faceta da postura de Brendel.
Há músicos que podem ser superlativos mas que sempre se mantêm dentro dos canônes estabelecidos. Há outros que são movidos pela curiosidade intelectual e propriamente musical. Há pianistas que até podem ser superlativos mas tão só virtuoses do instrumento. Christian Zacharias é um músico, que aliás, além de tocar piano se vem também dedicando à direcção de orquestra, um músico que tem preferido fazer um trajecto singular mesmo que isso signifique menos holofotes.
Começar e terminar um recital com as negligenciadas sonatas de Haydn, enquadrando uma das peças mais raras em concerto de Schumann, a Humoresque e, qual corpo aparentemente estranho, alguns Prelúdios de Debussy, como foi o caso do recital de ontem na Gulbenkian, corresponde a uma verdadeira declaração de princípios – ou a um modo de se estar no mundo da música.
Na Sonata em fá maior, Hob. XVI: 29 de Haydn, imbuído de um misto de style galante e Empfindsamkeit (de facto os estilos “galante” e “sensível” não são exactamente o mesmo), obra de algum modo ainda mais pré-clássica que em rigor clássica, logo Zacharias patenteou uma aguda compreensão, na precisão do staccato, no controle dos planos, na discreção dos pedais, na flutuação dos tempos ou na subtileza do toucher. Posso pensar que compreendo melhor a obra, por assim dizer na sua objectualidade física, com interpretações em pianoforte de época (como as de Ronald Brautigam), mas também não posso deixar de reconhecer o modo inteligentíssimo como Zacharias faz uso do piano moderno, um uso por assim dizer limitado.
Pessoalmente também, em particular no caso de uma peça como a Humoresque, penso que Schumann requer um “suplemento de alma”, uma passionalidade temperamental, e nesse caso tenho mais dúvidas que a deliberada retracção de Zacharias (uma opção de rigor e de recusa da espectacularidade) se adeqúe com o mesmo sucesso a um propósito que requer o arrebatamento – mas só abalançar-se à Humoresque é, em si, um gesto musical eminente.
Os tais “inesperados” Prelúdios de Debussy vieram-nos afinal em concreto recordar que, por via do seu aperfeiçoamento junto do grande Vlado Perlemuter, o alemão Christian Zacharias também é um pianista de “escola francesa”. Foi um Debussy sem maneirismos rebuscados e de belíssimos rendilhados, nem sempre plenamente sugestivo mas com uma La cathédrale engloutie prodigiosa de definição de planos.
Mas o melhor seria a conclusão, de novo Haydn, com a Sonata em ré maior, Hob. XVI: 24, esta de factura mais francamente clássica. E que dizer senão que foi um puro deslumbramento?! Uma tal compreensão, uma tal fluência, um tal domínio dos tempos, só podem ser fruto de uma grande inteligência musical e de uma prolongada maturação. Uma interpretação de Haydn assim está a um nível dos grandes mestres que são “apenas” Richter, Gould e Brendel.
Eu bem tinha avisado que Christian Zacharias era um dos maiores embora também mais discretos pianistas da actualidade.
Uma vez que a referi no texto anterior, “recupero” agora esta gravação do ano passado. De resto seria desnecessário invocar pretextos para pôr em relevo este disco extraordinário, seguramente o mais notável e surpreendente registo de sinfonias de Mozart em anos recentes.
René Jacobs, como bem sabemos, foi cantor, um contra-tenor superlativamente admirável. A sua dedicação à direcção foi de par com o progressivo afastamento de cena como cantor. Não se tratou apenas de um facto ser paralelo ao outro. “Diriger c’est chanter” disse ele, e a sua actividade concentrou-se na direcção de óperas e oratórias, com algumas gravações, de Monteverdi, Cavalli, Caldara ou Alessandro Scarlatti que são das mais belas de toda a discografia do barroco. Depois veio também Mozart, em particular um admirável Così Fan Tutte que nos deu a ouvir, como nunca antes, as relações intricadas das linhas de canto e das madeiras. Mas abordar o repertório estritamente sinfónico é uma outra história.
Certo que essa nova faceta se prenunciava num disco com as Sinfonias nº 91 & 92 “Oxford” de Haydn, mas essas ainda acompanhadas de uma obra vocal, a Scena di Berenice. Este é pois o seu primeiro disco estritamente sinfónico – e que disco!
Ouça-se o primeiro andamento da Sinfonia “Praga”. Tem esse andamento uma eara em Mozart estrutura à la Haydn, com uma introdução Adagio ao Allegro. Ora, logo no ataque inicial afirma-se nesse Adagio um tom marcadamente teatral, qual Abertura do Don Giovanni. Com uma energia e mesmo um furore de excepção, com uma mestria esplendorosa dos contrastes, Jacobs e os Freiburger tornam esta interpretação da Sinfonia nº38 numa das magníficas da discografia.
Equiparáveis qualidades reencontram-se na Sinfonia “Júpiter”, nos transbordantes andamentos extremos, vivace, vivacíssimos mesmo, num caprichoso Andante cantabile, prodigioso no uso do rubato e dos contrastes tímbricos, num Menuetto já sem réstea de salão, qual antecedente directo dos scherzi beethovenianos.
De facto, um disco deveras extraordinário e por certo, em particular, uma das mais portentosas interpretações da Sinfonia nº38 “Praga”.
Podia esperar-se – e, no caso, mesmo temer – que Carminogla desse mostras do seu virtuosismo vertiginoso e sentido exuberante da ornamentação, que o tornaram um intérprete emblemático de Vivaldi, mas que seriam despropositado nos Concertos de Mozart.
Isso não ocorre. É de ter em conta que a gravação ocorreu depois de três anos de trabalho comum. Se há uma espantosa facilidade, muito caracteristicamente italiana, no manejo do arco, e uma sonoridade luminosa, Carmignola, e com ele a direcção de Abbado, dão mostras de uma permanente invenção do fraseado mas também de uma linha ampla. A finura e a elegância do desenho, a sonoridade resplandecente e o subtil recurso a um vibrato muito controlado, tornam o entendimento excepcional, o pico sendo o Rondó do Concerto nº 5. Mesmo que se sinta que na Sinfonia Concertante (que é, repete-se, uma das grandes obras de Mozart), a co-solista Danusha Waskiewicz não está exactamente ao mesmo nível (e a este respeito convém lembrar que na mesma obra, e numa edição que tem também os cinco Concertos para Violino, um Isaac Stern teve como cúmplice um intérprete tão qualificado como Pinchas Zukerman), esta publicação, e esta surpreendente estreia de Abbado à frente de uma formação com “instrumentos de época”, é de facto excepcional.
Contrariamente ao disco dos Concertos, no das Sinfonias a Orchestra Mozart apresenta-se com instrumentos tradicionais, ainda que, seguramente, com cordas de tripa e com alguns instrumentos de sopro também de “época”.
“Cada coisa é o que é”, e por isso não se pode deixar, antes do mais, de notar a concretização. Não fosse o disco de René Jacobs com as mesmas Sinfonias nº 38 e 41, editado no ano passado, e este disco teria de ser citado como o mais notável registo recente de sinfonias mozartianas. Acontece que esse tal outro disco existe, como existem os de Harnoncourt com a Concertgebow. As comparações tornam ainda mais elucidativas algumas menores valias deste disco.
Diga-se que a escolha do programa é inteligentíssima, mostrando que Abbado fez uma funda redescoberta, uma reaprendizagem mesmo, da interpretação mozartiana. Faz todo o sentido incluir a Sinfonia nº 29, por assim dizer a primeira das sinfonias tardias, ou a observação que Abbado faz nas notas que o desenvolvimento do 1º andamento da “Haffner” prenuncia o primeiro tema do andamento final da “Júpiter”.
A variedade incisiva dos ataques é outro clara confirmação que em três anos Abbado e a Orquestra Mozart trabalharam aprofundadamente. No caso do maestro então, ele está literalmente “irreconhecível”, por comparação com todos os seus anteriores registos mozartianos. Tudo isto salientado como é devido, há também a dizer que o escrúpulo filológico que leva nomeadamente à observação de todas as repetições, e que faz em particular que o andamento inicial da Sinfonia “Praga” demore quase 18’, não deixa também de dar azo a que a tensão nem sempre seja constante, de resto nessa sinfonia como na derradeira “Júpiter”, e que haja um insuficiente relevo dos sopros.
É bem provável que, a existir apenas este disco das sinfonias, a reacção pudesse ainda assim ser mais entusiástica, tal o exemplo de inteligência e de autêntica “re-aprendizagem” por parte de Abbado. Mas não só essa escuta comparativa com Harnoncourt e Jacobs - e este último tanto mais quanto o programa coincide com o segundo disco do presente registo - elucida alguns limites, como sobretudo é o brilhantismo excepcional do disco dos Concertos de Violino que abre campo a que se considere que esta outra interpretação das sinfonias, notável que é, não atinge contudo os mesmos níveis.
Mas que fique bem claro que esse disco dos Concertos de Violino é doravante uma peça a considerar na discografia mozartiana em geral.
Claudio Abbado é um músico de excepção, não apenas pelas suas eminentes qualidades
interpretativas, mas também porque, tendo ainda ocupado os mais altos cargos institucionais, do Scala a Viena e à Filarmónica de Berlim, não se restringiu, contudo, ao repertório e práticas canónicas.
Relembro, entre outros factos, os concertos para os trabalhadores das fábricas que organizou nos anos 70, a fundação da Orquestra de Jovens Gustav Mahler ou a sua dedicação à nova música, em especial a sua relação próxima com Luigi Nono – e é uma memória das mais intensas a estreia de Prometeo la Tragedia dell’Ascolto de Nono, sob a sua direcção em Veneza, em Setembro de 1984 – e acrescento que outra das minhas mais fortes experiências musicais foi o Concerto em sol maior de Ravel, sendo solista Martha Argerich e com os jovens da Mahler, em Agosto de 2002, em Edimburgo, quando Abbado regressou ao pódio após uma doença que o manteve afastado durante dois anos.
Claudio Abbado completou 75 anos no passado dia 26 de Junho. Como vai sendo prática rotineira, a Deutsche Grammophon assinala o evento com algumas reedições e novas edições. Não creio que, no denso panorama das integrais das Sinfonias de Beethoven, aquela que Abbado realizou com os Berliner tenha um relevo de maior. Também quanto à integral dos Concertos para piano do mesmo Beethoven com Maurizio Pollini, haverá a dizer que o pianista tem outras interpretações com mais relevo desses mesmos concertos, uma anterior integral tendo como maestros Karl Böhm e Eugen Jochum – sendo que na longa colaboração e fraternidade de Pollini e Abbado mais há a recordar os Concertos de Brahms e Bartók, ou ainda e talvez sobretudo, a inusitada associação dos Concertos de Schumann e Schönberg.
Mas a DG tinha também anunciado para esta ocasião um dos projectos discográficos mais inesperados do ano: a associação de Abbado com Giuliano Carmignola para os Concertos de Violino de Mozart – o máximo expoente hoje da interpretação da escola violinística barroca italiana e um maestro do repertório sinfónico (e de ópera) dos séculos XIX e XX?!
O encontro tem uma história, não tanto o facto de há 30 anos atrás Carmignola ter integrado os Filarmonici do Scala sob a direcção do outro, mas a fundação de uma nova Orquestra Mozart por Abbado, em Bologna, em 2004 – e Bologna, como se sabe, é uma cidade do itinerário mozartiano, quando o então jovem Wolfgang Amadeus foi aí aluno do Padre Martini.
O caso não é único em rigor. Diferentemente da obstinada reserva às interpretações “de época” de em especial um Pierre Boulez, já um Simon Rattle – o sucessor de Abbado em Berlim – vem de há anos dirigindo também a Orchestra of The Age of Enlightment. Mas Abbado não iniciou uma colaboração com uma formação já existente, de novo fundou uma orquestra, votada especificamente a Mozart.
Os Concertos de Violino não são certamente o que de mais relevante Mozart, mas dois intérpretes em particular, Arthur Grumiaux e sobretudo Isaac Stern, guindaram-nos ao nível de presenças indiscutíveis numa discografia mozatiana.
Sendo publicada também um outro disco duplo, com cinco Sinfonias de Mozart captadas em alguns concertos da Orquestra Mozart, são neste caso uma útil informação as entrevistas com Carmignola e Abbado incluídas nos respectivos livretes. Enquanto o violinista cita Grumiaux e o seu professor Franco Gulli, o maestro fala de Rudolf Serkin e George Szell. Estas últimas referências justificam algumas considerações.
O problema dos concertos gravados por Serkin e Abbado é o próprio maestro, que de modo algum acompanha a linha desse supremo intérprete mozartiano que o pianista foi. Por outro lado, a referência a Szell é muito interessante: mais, a meu ver, que o inevitavelmente sempre citado Bruno Walter, creio que os grandes intérpretes tradicionais das sinfonias de Mozart foram sim Szell e Krips (e o caso muito particular de Fritz Reiner).
A evolução interpretativa de Abbado é flagrante nas suas sucessivas gravações das Sinfonias de Mahler, incomparavelmente mais impressionantes as mais recentes. Mas neste caso não se trata de “evolução” mas de uma inequívoca “transfiguração”: estas são interpretações mozartianas como nunca esperámos ouvir de um Abbado, tornando-o próximo do que com formações de instrumentos de época realizou um Frans Brüggen ou, mais recentemente, um René Jacobs, ou do que com todo o seu saber e experiência acumulada o que um Nikolaus Harnoncourt logrou obter de uma orquestra tradicional, a da Concertgebow de Amesterdão, essa, a orquestra, também literalmente “transfigurada” pelo maestro.
Estes dois discos são uma total surpresa, e em particular o dos Concertos de Violino mais a Sinfonia Concertante para violino e viola (esta, uma das grandes obras de Mozart) é excepcional.