Com um intervalo de menos de uma semana apresentaram-se na Gulbenkian dois excelentes quartetos de cordas, com programas estruturalmente análogos: uma obra nova, e em 1ª audição em Portugal, estreada por cada um desses quartetos e até ao momento só do reportório deles, Improvisation IV – “L’électricité de la pensée humaine” de Emmanuel Nunes pelos Diotima, o Quarteto nº 2 de Heinz Holliger pelos Zethemair, precedida por uma obra menos usual, respectivamente os Quartetos de Berg e Bruckner, e seguidas de obras das mais consagradas e admiráveis, o Quarteto nº14, “A Donzela e a Morte” de Schubert e o Quarteto op. 135 de Beethoven.
Acresce ainda que tanto um como outro quarteto seguem práticas pouco ou nada habituais: nos Diotima há a registar a alternância de 1º e 2º violinos; os Zethemair, que em anterior passagem pela Gulbenkian tocaram de pé, estiveram desta feita sentados, mas tocando as obras sem partitura (o que é um tour de force numa formação que tanto exige da coordenação exacta como o é o quarteto de cordas), excepto na obra de Holliger, interpretada com partitura mas colocada nas estantes em sequência, evitando qualquer desfasamento no voltar de páginas. E pode ainda acrescentar-se a coincidência do nome de um quarteto, “Diotima”, ser colhido em Hölderlin, referência fundamental de Heinz Holliger inclusive neste Quarteto nº2.
No Quarteto op. 3 de Alban Berg os Diotima optaram por uma interpretação de grande concentração, áspera e resolutamente modernista, sem o lado mais lírico e de reminiscências tardo-românticas que também existem na obra. Do mesmo modo na “Donzela e a Morte”, a sua leitura foi vibrante e de grande dramatismo, eventualmente à falta também de alguma expansividade lírica.
O pensamento musical de Emmanuel Nunes é eminentemente orquestral ou de formação de câmara alargada. Não é a Improvisation IV que desmente essa constatação. Mas a obra tem, em relação a outras do autor, uma qualidade a anotar, a concisão – de facto demora muito menos que os cerca de 25 min. indicados no programa. É aliás um interessante ciclo de variações, que todavia repete de modo algo enfadonho algumas características da escrita de Nunes tornadas verdadeiros “tiques”, como as frases ziguezagueantes e os tremolos.
No concerto dos Zethemair, a raridade do Quarteto em dó menor de Bruckner, obra menor, de aprendizagem, e aliás só identificada em 1950 (portanto mais de 50 anos após a morte do autor), pouco mais foi que uma introdução, ainda assim tendo sido interessante que os intérpretes sublinhassem a sua filiação em Mendelssohn, quando Bruckner, pelas suas grandes Sinfonias, está associado ao campo oposto, wagneriano. Depois veio o momento inolvidável e transcendente, a obra de Holliger.
Recordo que o músico suíço é um proeminente oboeísta e maestro também – dele a Gulbenkian já apresentou o maravilhoso Scardanelli Zyklus (Scardanelli sendo um nome adoptado por Hölderlin), seguramente uma das obras mais extraordinárias das últimas décadas, e já lhe dedicou um ciclo, em que além da apresentação de obras suas, Holliger foi também instrumentista e maestro.
Estreado em 2008, o Quarteto nº 2 revela o conhecimento íntimo da escrita instrumental, com uma variedade assombrosa de recursos, glissandi, pizzicatti, col legno, etc. Hölderlin e Celan são referências numa obra que contudo é prodigiosa antes do mais pelo conhecimento das possibilidades do quarteto de cordas, tão importante na História da música europeia (e essa noção da historicidade é da maior importância na obra), o único “género” praticado ininterruptamente desde o classicismo vienense.
O Quarteto é num único andamento, mas com seis partes, e faltam as palavras para falar da última daquelas, absolutamente assombrosa, qual “música das esferas” no seu jogo dos harmónicos – é uma obra magnífica, absolutamente magnífica, cujos ecos perduram ainda.
O choque foi de tal modo que na 2ª parte do programa o derradeiro Quarteto de Beethoven (embora não o mais extraordinário no portentoso conjunto dos últimos Quartetos) quase soou como um anti-climax – era a música de Holliger que perdurava.
A 1ª audição em Portugal deste Quarteto nº 2 de Heinz Holliger foi um acontecimento como raros.
Já que a Casa da Música fez a opção – algo contraditória para as normas de uma instituição deste género, mas não vou de novo insistir nesse ponto – de organizar a sua programação musical de acordo com calendário e não com a organização em temporada, iniciam-se pois agora as diversas séries e ciclos.
Uma prova de que esses podem ser cruzados e pensados em conjunto ocorre logo este fim-de-semana, com a apresentação sucessiva de duas obras de um dos máximos compositores contemporâneos, Gyorgy Ligeti (1923-2006) em dois concertos que se apresentam entre si desconexos.
Assim, hoje, às 21h, San Francisco Poliphony será executada num programa de título genérico “Novo Mundo” – este toque, ou tique não sei bem, de os concertos terem título é algo que me escapa, mas no caso este justifica-se plenamente, com um programa composto por uma raridade de Edgar Varèse, Tuning Up, Um Americano em Paris de Gershwin, a citada peça de Ligeti, New York Skyline de Villa-Lobos (pois que o Brasil é o “país tema” do ano) e a Sinfonia nº 9, “Do Novo Mundo” de Dvorak, com o maestro titular, Christopher König, dirigindo a Orquestra Nacional do Porto.
Amanhã, também às 21h, é a vez de começar a série do Remix, introduzindo o compositor residente deste ano, o britânico Jonathan Harvey. Mas com várias obras desse autor, e em concerto dirigido pelo maestro titular do agrupamento, Peter Rundel, será também executada uma das derradeiras obras de Ligeti, o Concerto de Hamburgo, obra destinada a uma formação bastante inusitada, trompa solista, quatro trompas naturais e conjunto.
San Francisco Poliphony (1973-74) estende a concepção polifónica de Ligeti da escala “micro”, que caracterizava as suas obras dos anos 60, a uma escala “macro”, com uma fascinante heterogenia das linhas melódicas combinando-se no entanto na grande forma. Se é ainda assim pertinente falar a propósito dessa obra de “campo harmónico”, no Concerto de Hamburgo (1998-99, 2003) há sim, de modo bastante mais lato, um espectro sonoro, com inusitadas sonoridades, consequência não só do peculiar conjunto como também da gama particular de cada instrumento ou conjunto de instrumentos. Mas uma e outra obras têm uma inconfundível sonoridade “ligetiana”.
A sucessão das duas obras é pois um “evento” de facto, embora não referenciado como tal na programação.
Já agora, um pequeno pormenor de ordem prática: sem necessidade de repetição exaustiva, ganhava-se ainda assim inteligibilidade se na parte final da brochura da programação da Casa da Música o calendário de todos os eventos não fosse tão sumário – é que, por exemplo num caso como este, é necessária alguma atenta observação para não escapar ao potencial interessado que entre um concerto da ONP e um outro do Remix, em dias sucessivos, sucede haver não certamente por acaso duas obras de um dos maiores compositores contemporâneos.
Mobilidade, sobreposições, as chamadas “modulações métricas”, tempo e tempos, jogo de grupos instrumentais e/ou de solista/s e grupos instrumentais – eis características da obra de Elliot Carter, da sua personalidade musical.
É importante notar, de resto, que o próprio Carter refere numerosos exemplos precedentes da sua metodologia e princípios composicionais na história da música, os madrigalistas e virginalistas inglesas, os cravistas franceses, as cenas de óperas de Mozart, Verdi ou Mussorgsky em que ocorrem acções paralelas com diferentes tempos e métricas, etc. Compreende-se assim que tenha retomado à sua própria maneira a noção de concerto, “concerto grosso” ou concerto solista, de obras para diferentes grupos instrumentais ou mesmo de episódios musicais separados. Como se compreende que o tempo e as temporalidades, uma concepção não-teleológica do tempo e da obra musical lhe sejam axiais – não há em Carter um princípio para chegar a um fim, o que o distingue não apenas dos princípios da tonalidade funcional como das concepções ontogenéticas do material nas correntes seriais e post-seriais.
Esta recusa do “pensamento teleológico”, com constantes acontecimentos e transformações, nada tem a ver com a concepção recorrente, simbólica e teológica do tempo musical que há em Messiaen - como em T.S. Elliot, ou pelo próximo, há em Messiaen não o "eterno retorno" de Nietzsche mas um retorno incessante, "O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no temo futuro/ E o tempo futuro contido no temppo passaado". Isso é o que radicalmente diferencia os dois compositores e no entanto também os aproxima enquanto singulares conceptualizadores do Tempo.
Por outro lado, pesem ainda algumas suas inusitadas combinações e/ou oposições instrumentais, Carter não é um colorista e pensadores dos timbres como Messiaen (é de notar por exemplo que escreveu cinco quartetos de cordas e o outro obviamente nenhum, pois não se imagina Messiaen trabalhando com um conglomerado tímbrico tão próximo), e pesem ainda a mobilidade e sobreposições não é, ao contrário do outro, um polirritmista.
Elliot Carter é antes do mais um construtivista, altamente complexo, mas em cuja música todavia se percepciona o movimento, o trajecto, a direcção das linhas musicais – e pois que evoquei tê-los vistos juntos em Varsóvia, em 1985, a ele e a Lutoslawski, ocorreu-me durante estes concertos na Casa da Música pensar que são dois diferentes mestres da direccionalidade, questão que hoje, contra a expansão magmática característica do pensamento ontogenético, é de novo de tanta actualidade.
Expostas estas características, foi representativo o conjunto de quatro obras, Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto e Three Occasions for Orchestra, apresentadas nesta celebração do duplo centenário na Casa da Música? Seguramente muitíssimo menos que as três obras apresentadas de Messiaen, sendo também certo que em termos estritos de execução Carter é um autor mais difícil.
Faltou uma obra indiscutivelmente maior, como por exemplo a Sinfonia de Três Orquestras, faltou um grande concerto solista, como, entre vários outros, o Concerto para Piano. Réflexions e Three Occasions for Orchestra são obras relativamente “ocasionais”, ainda que, pelo seu carácter festivo, houvesse algum sentido na presença da última na celebração deste compositor ora centenário. Particularmente representativas são sim Tempo e Tempi e Asko Concerto.
Desde que em 1975 compôs A Mirror on Which to Dwell sobre poemas de Elizabeth Bishop e Three Poems of Robert Frost, que Carter tem escrito algumas obras vocais. De facto, de modo explicito ou mais subterrâneo, a sua obra é marcada por poetas como William Carlos Williams, Hart Crane ou Wallace Stevens – e mais genericamente haveria todo um longo capítulo a escrever sobre influências literárias, de Joyce (o tempo, claro, a “epifania”) a Calvino, este objecto de uma obra, mas um trio instrumental, Com leggereza pensosa – Omaggio a Ítalo Calvino.
Tempo e Tempi é uma obra de grande importância, porque no poema de Eugénio Montale em que a obra colhe o título está inscrito uma concepção paralela à do próprio Carter: “Não há um tempo único: há muitas fitas / que paralelas deslizam”.Infelizmente, a soprano Claire Booth não teve o sabor da língua, do italiano dos versos de Montale, Quasímodo e Ungaretti.
Só no Asko Concerto, com Franck Ollu dirigindo o experimentado Remix, houve um momento à altura da clareza e da concisão da complexidade de Carter, ao nível mais representativo do compositor, com os 16 instrumentistas em solo ou indo participando de diferentes intra-formações, duos, trios ou um quintetos E reconheça-se, de qualquer modo, que as Three Occasions for Orchestra pela ONP dirigida por Stefan Asbury foram brilhantes.
Mesmo que no modo concreto como se realizaram as intencionalidades desta celebração dos 100 anos de Olivier Messiaen e Elliot Carter, o americano estivesse longe do nível de representatividade do outro, a ocasião de ouvir quatro obras suas foi suficientemente importante para ser devido assinalá-la.
A ficha do concerto com que o CCB assinalou o centenário do nascimento de Messiaen (no preciso dia em que ocorria) é inusitada, e desde logo indicadora de algumas questões: certo, o Quarteto para o fim do Tempo é uma obra imensamente sugestiva, mas será pertinente e mesmo legítimo enquadrá-la pela leitura de poemas e um dispositivo cenográfico?
Admitamos o seguinte, pelo menos enquanto interrogação: sabendo nós que a obra foi composto e estreado num campo de prisioneiros de guerra, podemo-nos abstrair do mais geral conhecimento dos factos dessa guerra, do nazismo e do processo concentracionário?
Uma coisa é a indispensável memória histórica, outra é a mescla de factos apesar de tudo de ordem diferente, e tanto mais a mescla envolvendo uma concreta apresentação de uma obra como a de Messiaen, eventualmente configurando um abuso.
Isto não significa de maneira nenhuma uma “suspensão” da memória do Holocausto – só que ela é no caso deslocada, de modo mutuamente infrutífero, para o Quator pour la fin des Temps e para a concreta memória do universo concentracionário e de extermínio, incluindo as manifestações artísticas que ainda ocorreram nesse terrível universo.
O Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A do campo de prisioneiros de Görlitz, e isso é parte da sua aura própria. Mas, meses depois, a 22 de Junho, já libertado, Messiaen apresentava a obra no Théâtre des Marthurins em Paris. O que eu desconhecia, e só fiquei a saber por um artigo no “Le Monde” da passada sexta-feira, foi que em Paris, durante a ocupação, qual acto cultural de “resistência”, foram apresentadas mais obras compostas por prisioneiros de guerra, tendo-se realizado inclusive um concerto dirigido por Charles Munch, só com obras originadas nessas circunstâncias, e tendo mesmo a SACEM, a sociedade de autores, aberto um concurso para os autores e compositores prisioneiros.
Radicalmente diferente foi a sorte de compositores como Viktor Ullmann, Gideon Klein, Erwin Schulhoff ou Hans Krása, vários deles tendo passado pelo campo de Theresienstadt, em que estavam internados sobretudo artistas e que os nazis utilizaram também para “proporcionarem” visitas de organizações como a Cruz Vermelha, e que todos esses acabaram vítimas do extermínio.
Aliás, o CCB vai apresentar em Fevereiro um ciclo de relevo, “O Nazismo e cultura: confrontações”, que incluirá nomeadamente a ópera que Ullmann escreveu no cativeiro, O Imperador da Atlântida. Acontece que fazer da apresentação do Quator pour la fin des Temps, obra de crença e de esperança, uma antecipação desse ciclo – o que objectivamente foi o programa – é um abuso histórico e foi também um abuso estético.
Falando da arte “depois de Auschwitz”, eu próprio tenho incorrido no lapso de citar recorrentemente Celan, omitindo Nelly Sachs, quando afinal desmentiram ambos o célebre ditame de Adorno de que não seria mais possível poesia depois de Auschwitz. É insólito que no programa figurassem os poemas de Nas Moradas da Morte, traduzidos por João Barrento, que Beatriz Batarda leu, poemas impregnadas da terrível experiência do Holocausto, da condição judaica diria mesmo, e não houvesse qualquer apresentação da poetisa, Prémio Nobel da Literatura de 1966, e desse livro, Den Wohnungen des Todes, publicado logo em 1947. Mas mais: sendo que por uma qualquer razão o evento teve lugar não no Pequeno Auditório do CCB, como seria curial, mas no Palco do Grande Auditório, dificilmente se conseguia ouvir Beatriz Batarda.
Mais grave ainda foi que Paulo Nozolino, um fotógrafo e artista que particularmente estimo, se deixou enredar nas teias desta deslocada e abusiva “sugestão concentracionária”, para que afinal foi ssolicitado. O seu “espaço cénico” eram fotografias de prisioneiros que imediatamente identificávamos como sendo de campo de concentração, em flagrante contraste com as características da obra musical e, pelo modo como suscitavam a atenção, limitativas da concentração na escuta.
Mas também a execução musical esteve longe de ser feliz. O Schostakovich Ensemble, criado pelo pianista Filipe Pinto-Ribeiro fez jus ao seu nome. O exacerbamento dramático, a pulsação e o “rubato”, por vezes mais se diriam por sua vez sugerir, pesem ainda as diferenças de “instrumentarium”, o Quarteto nº 8 de Chostakovich, com o violoncelista Pavel Gomzkiavov e sobretudo a violinista Priya Mitchell em exagero de “vibrato”. Apenas o conhecido clarinetista Pascal Moraguès, “et pour cause…” (é clarinete principal da Orquestra de Paris e professor no Conservatório Nacional Superior de Música daquela cidade) teve as cores que a obra solicita.
Tantos talentos estimáveis para uma tão infeliz e abusiva concepção do concerto e sua realização, bem ao estilo de alguma “interdisciplinaridade” a despropósito que vai sendo característica da programação do CCB na era Mega Ferreira, de resto para um público muito selecto. Mas, e Messiaen? Antes do mais, não era ele que era suposto celebrar-se?
NB – Para ser justo, devo referir que, hoje mesmo em Paris, um dos intérpretes por excelência de Messiaen, o pianista Pierre-Laurent Aimard, apresentou no Théâtre des Champs-Elysées um programa na aparência semelhante em que a execução do Quator pour la fin des Temps era precedida de leitura de extractos de Sem Destino, obra de um sobrevivente dos campos de concentração, o húngaro Imre Kertész. Mas ao contrário do “envolvimento” poético e fotográfico do Quator no CCB, esse programa de Aimard intitulava-se “Captivités – L’art au prises avec les camps”, e note-se o plural, referido portanto a situações diferentes, e além da obra de Messiaen incluía outras de Schönberg, Ligeti e Kurtag, um programa de alusões e confrontações em suma, não de sugestão directa.
Steven Osborne, piano, Viviane Hagner, violino, Alban Gerhardt, violoncelo, Kari Kriokku, clarinete
Gulbenkian, 1 de Dezembro
Pode o público ser sensível à fé que anima e inspira um criador artístico, um compositor no caso? Não me parece possível dar uma resposta genérica, desde logo porque esse “público” é composto de concretos indivíduos e haverá crentes, agnósticos e ateus, e inclusive crentes de outras confissões. Mas creio que a questão é inevitável a propósito de Messiaen e nomeadamente do Quator pour la fin des Temps.
Não havendo resposta genérica posso pois responder por mim dizendo que, para o agnóstico que sou, Messiaen é, com Bach e Bruckner, um dos três compositores que sinto sem dúvida animados por uma “transcendência”. Mas porque, por uma lado, coloquei genericamente a questão no campo artístico e, por outro, falei especificamente de Messiaen, direi então também que há um outro artista, um cineasta, Andrei Tarkovski, perante cujas obras sinto tão sensíveis sinais duma crença transcendente. Há por certo outros grandes cineastas transcendentais, Dreyer ou Bresson, mas se Tarkovski me toca de modo tão particular para o que aqui importa é porque os sinais de remissão para essa “transcendência”, a “presença” de uma outra ordem, os encontro também no modo como torna palpáveis as matérias sensíveis, os ícones, a lama, a água. Com Messiaen sucede-me é que as suas obras, pela miríade de cores, polirrítmias e imensidão do espaço sonoro, sugerem-me o que, extrapolando uma analogia cinematográfica, diria ser um “contracampo transcendental”, uma ordem não apenas da criação mas da Criação, no seu pleno sentido panteísta.
O Quator pour la fin du Temps (e já explicarei porque mantenho o título original em francês) é uma obra ímpar, extraordinária, plena de sugestões pelas suas características musicais e também pelas suas alusões programáticas referentes ao livro do Apocalipse. Mas é também uma obra rodeada de uma aura muito particular porque é difícil desconhecer que foi composta e estreada estava Messiaen prisioneiro de guerra no campo de Görlitz na Silésia. A sua específica instrumentação, piano, violino, violoncelo e clarinete, foi motivada por concretos músicos que estavam detidos nesse campo e pelos instrumentos disponíveis.
Talvez por auto-sugestão, Messiaen dissse que o Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A perante um público de 5.000 prisioneiros; contudo, segundo Étienne Pasquier, que tocou a parte de violoncelo, foram sim 200, número que se afigura mais provável (cf. Claude Samuel – Permanences de Messiaen – dialogues et commentaires,Actes Sud). Parco nas suas declarações sobre as circunstâncias concretas da composição Messiaen tão só confidenciaria: “Quando eu estava prisioneiro, a falta de comida provocava-me sonhos coloridos: via o arco-íris do Anjo e estranhas girândolas de cores”.
É importante, crucial mesmo, entender que a inspiração no Apocalipse não supõe que a obra seja “apocalíptica” no sentido mais corrente do termo. O que Messiaen reteve foi a imagem do Anjo tendo sobre a sua cabeça o arco-íris e que vem anunciar que “já não haverá mais tempo”, “La fin du Temps”, com “Temps” em maiúscula (é a esta particularidade que é preciso atender no título original francês). Este “tempo” reenvia-nos quer para os aspectos rítmicos (“O ritmo é, por essência, mudança e divisão. Estudar a mudança e a divisão é estudar o tempo”) quer para a teologia (“a perpétua conversão do tempo em passado, a noção de Eternidade”).
Este “fim do Tempo” (e não fim dos tempos”) é a sugestão de um tempo sem fim, a eternidade. A derradeira obra de Messiaen intitula-se Éclairs sur l’Au-Delá; o Quator pour la fin des Temps poderia também ser caracterizado como “Éclairs” de l’Eternité”, “lampejos”, “fulgurâncias” ou “visões”.
Em particular extraordinários no quadro programático ou alusivo da obra são “V – Louange à l’Éternité de Jésus”,com a sugestão do tempo suspenso, tempo musical e tempo teológico, e “VIII – Louange à l’Immortalité de Jésus” com a lenta linha ascendente até ao extremo-agudo do violino, sugerindo a ascensão de Jesus, do “Verbo feito carne, ressuscitado e imortal”. Pelo seu trabalho sobre o tempo e o rítmo, sobre as cores também, Messiaen sugeriu nesta obra-prima de modo único uma atemporalidade, uma u-cronia, uma eternidade sensível pela experiência da música.
O inusitado longo silêncio que acolheu a interpretação do quarteto Osborne-Hagner-Gerhardt-Kriikku na Gulbenkian foi a mais eloquente resposta do público a uma soberba interpretação, de tão assombrosas cores e noções do rítmo e do tempo. A clareza das dinâmicas e rítmos em “II – Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps”, a mestria de Kriikku no extraordinário solo de clarinete que é “III – Abîme des oiseaux”, a linha hipnótica do violoncelo de Gerhardt em “V – Louange à l’Éternité de Jésus”, as cores do piano de Osborne em “VII – Foullis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps”, as mutações de cor ao longo das alturas de Hagner em “VIII – Louange à l’Immortalité de Jésus”, eis alguns exemplos concretos desta experiência transcendente, um dos momentos mais marcantes das comemorações em Portugal dos 1000 anos do nascimento de Olivier Messiaen.
Lembro-me de ter conhecido Elliot Carter no Outono de Varsóvia em 1985, tinha a lei marcial sido levantada há pouco tempo. Lembro-me de os ver juntos, ele prestes a fazer 78 anos e Witold Lutoslawski com 74, dois decanos entre os compositores.
Como imaginar então as surpresas que Carter ainda nos reservaria, obras tão marcantes como o Concerto para Oboé (1987), Three Occasions para orquestra (1989), o Concerto para Violino (1990), o tríptico Symphonia: sum fluxe pretium para orquestra (1998), o Concerto para Clarinete (1996), surpresa maior, a ópera de câmara (nunca Carter se tinha aventurado em tal território) What Next?, com libreto do musicólogo Paul Griffiths (1997), Tempo e Tempi, para soprano, oboé, violino e violoncelo (1999), o Asko Concerto (2000), o Concerto para Violoncelo (2000), Three Ilusions for Orchestra (2004) ou Soundings para piano e orquestra (2005), sim, quem diria, quem ousaria imaginar um tal florescimento criativo num compositor de 80 anos passados?!
E Elliot Carter continua activo: na semana passada houve a estreia de Interventions para piano e orquestra, por Daniel Barenboim e a Orquestra Sinfónica de Boston, dirigida por James Levine, em Boston, os mesmos intérpretes tocando hoje a obra no Carnegie Hall de Nova Iorque. E já há notícia do trabalho num novo ciclo de canções baseado nos Pisan Cantos de Ezra Pound.
Elliot Carter nasceu numa família abastado, de quem um agente de seguros era nada menos que o fundador da música americana, Charles Ives. Esse contacto terá sido um primeiro encorajamento na direcção da música. Em Harvard licenciou-se em inglês e mais tarde também em música. Um dos seus professores foi Walter Piston, e a influência daquele, de Roy Harris e de Aaron Copland, orientou-o inicialmente no sentido da nascente escola “nacional” americana – chegou mesmo a escrever Pocahontas, uma composição coreográfica.
Como vários outros músicos americanos, rumou a Paris, para se aperfeiçoar junto de Nadia Boulanger, obtendo em 1935 um doutoramento em música pela École Normale de Paris. Se mais tarde voltaria costas à orientação neo-clássica de então (e, por exemplo, também se distanciou do “período neo-clássico” de Stravinsky, compositor de quem no entanto recolheu a complexidade de A Sagração da Primavera), Carter permaneceu sempre “o mais europeu dos compositores americanos”.
É então interessante equacionar essa caracterização, por um lado, e o facto de ter tido o contacto inicial com Ives, o “fundador” dessa música americana, no que tem de mais intrinsecamente original, de um novo “continente musical” mesmo. Se Carter se aparta de Ives na utilização de “música correntes” (fanfarras, hinos), irá no entanto aproximar-se dele, de modo muito próprio, num aspecto capital: uma constante mobilidade de eventos, de sucessão (e/ou sobreposições) de tempos, formulado “modulações métricas” ou uma polifonia das próprias dinâmicas. Em 1951, com o Quarteto nº 1, Elliot Carter reinventa-se, ou mesmo “inventa-se”, no sentido em que passou o ser uma personalidade musical original e reconhecível.
Carter é um compositor da racionalidade e da complexidade trabalhando sobre grupos de acordes, o caso mais extraordinário (e incrivelmente difícil) sendo o uso simétrico e invertido de acordes de todas as 12 notas, na prodigiosa obra que é Night Fantasies (1980) para piano. Mesmo um compositor-intérprete como Pierre Boulez reconheceu que inicialmente teve dificuldades em compreender a complexidade das obras de Elliot Carter.
Mas a noção de ritmo que lhe é própria permitiu estruturar (e de algum modo “estratificar”) um sentido único do tempo e da mobilidade. Desde o citado Quarteto nº1, Carter concebeu a sua música como uma espécie de argumento para “dramatis personae”.Isso verifica-se nos quartetos, cinco, e nas obras orquestrais e concertantes – e não por acaso tem escrito tanto concertos e obras com solistas, com destaque para o Duplo Concerto para Piano, Cravo e Duas Orquestras de Câmara (1961), o Concerto para Orquesta (1969) a Sinfonia de Três Orquestras (1976) ou o já citado Asko Concerto, ou ainda no modo como faz uso de diferentes andamentos, ou “quadros”, numa obra. É essa mobilidade e “dramaticidade” que permitem a percepção e a claridade de uma música tão complexa.
Parabéns Elliot Carter!
NB – 1) Há um sítio dedicado à programação comemorativa do centenário de Carter, www.carter100.com ; 2) Na Casa da Música, nas celebrações do duplo centenário de Messiaen e Carter, ouvir-se-ão quatro importantes obras, Tempo e Tempi e Reflexions, amanhã às 21h, e Asko Concerto e Three Occasions for Orchestra sábado às 18h.
Concertos comemorativos do centenário do compositor:
Lisboa
CCB, hoje, às 21 - Quator pour la fin du Temps - Schostakovich Ensemle (Pascale Moraguès, clarinete, Priya Mitchell, violino, Pavel Gomziakov, violoncelo, Filipe Pinto-Ribeiro, piano), com leitura de poemas de Nelly Sachs por Beatriz Batarda e espaço cénico de Paulo Nozolino.
Sé de Lisboa - Conclusão da integral da obra para orgão: hoje, Missa de Homenagem a Olivier Messiaen; sábado, Livre du Saint Sacrement (II); domingo, La Nativité du Seigneur; segunda-feira, Monodie, Dyptique, Offrande au Saint-Sacrement, Verset pour la fête de la Dédidace, Apparition de l'église eternelle e Le banquet céleste, sempre às 21h30. Mais informações aqui.
Porto
Casa da Música
Hoje, às 19h30 - Quator pour la fin du Temps - solistas do Remix Ensemble
Dupla homenagem a Messiaen e Elliot Carter (o compositor americano celebra amanhã 100 anos) - sexta, às 21h - Carter, Tempo e Tempi, Reflexions, Messiaen, Oiseaux Exotiques, Chonochromie - Claire Booth (soprano), Jonathan Ayerst (piano), Remix Ensemble, dir. Stefan Asbury; sábado ás 18h - Messiaen - Et exspecto ressurrectionem mortuorum, Carter, Three Occasions for Orchestra - ONP, dir. Stefan Asbury; sábado, às 13h - Visions de l'Amen - Nina Schumann e Luís Magalhães (pianos); domingo, às 12h - L'Ascension - Jonathan Ayerst (orgão).
Braga
Auditório Vita
Integral da Música de Câmara : hoje, às 21h30 - La Merle Noir, Fantasie, Visions de l'Amen; sábado ás 21h30 - Thème e variations, Pièce pour piano et quatour à cordes, Quator pour la fin du Temps - António Saiote (clarinete), Gerardo Ribeiro (violino), Paulo Gaio Lima (violoncelo), Miguel Borges Coelho e Marta Zabaleta (pianos), Nuno Inácio (flauta), Quarteto de Cordas de Matosinhos.
Sexta, às 21h30, projeção de Le Charme des impossibilités, filme sobre a génese do Quator pour la fin du Temps.
Este documentário é verdadeiramente precioso, porque tem uma única presença real, a do próprio Olivier Messiaen, dele e das suas obras.
São dos mais qualificados os intérpretes que vemos e ouvimos, Yvonne Loriod, Pierre Boulez, Pierre-Laurent Aimard, Seiji Osawa ou José van Dam, todavia, contrariamente a usos mais habituais em documentários, eles não dão outro testemunho senão o da sua condição de intérpretes. Pesem ainda algumas imagens originais, como a desse Monte Messiaen no Utah, em homenagem ao facto desse vasto e impressionante espaço ter inspirado a Messiaen uma das suas obras maiores, Des Canyons aux étoiles, ou então imagens de interpretações das obras, com destaque para as da célebre produção da ópera Saint François de Assise em 1992, em Salzburgo, encenada por Peter Sellars (espectáculo deslumbrante, memória pessoal fortíssima, que essas imagens reavivam), pesem essas imagens ou algum uso, parco, da “voz off”, o essencial é uma montagem de documentos de arquivos com Messiaen, captados entre 1965 e 1987. É a sua presença a razão de ser do documentário.
Há momentos verdadeiramente extraordinários, do ponto de vista de elucidação das características que sabemos terem sido as suas, como toda a parte inicial sobre os pássaros e a ornitologia ou o extracto de uma aula em que Messiaen debate com os seus alunos logo a obra que mais decisivamente o marcou, o Pelléas et Mélisande de Debussy. Há o modo como ele fala da sua fé, das cores, do Oriente, da sua posição de organista ou dos instrumentos de percussão.
O documentário intitula-se Liturgia de Cristal, que é citação do 1º andamento do Quator pour la fin du Temps, referido à passagem do Apocalipse em que fala de um anjo “e sobre a sua cabeça estava o arco-íris”; é justamente a noção das cores de Messiaen que melhor transparece. Notem-se a propósito três afirmações: “Posso ser tonal, modal, tudo o que quiserem, de facto sou sobretudo um colorista”; “sou compositor, ritmista, ornitólogo”; “os pássaros são artistas que são como eu sensíveis à cor”.
Mas além dos pássaros havia a Fé, ou melhor a crença religiosa católica (“croyant”, repetia ele insistentemente), factor que em si mesmo não é dado musical. Como o documentário explica, a sua posição de organista na Igreja da Sainte Trinité em Paris foi o modo concreto de, como músico, participar na liturgia, mas o órgão em si mesmo foi também o seu “laboratório”, o instrumento em que praticou e experimentou durações, cores e ressonâncias.
Não houve apenas o cristal, houve os vitrais de cores de música, as catedrais sonoras e os grandes espaços que Messiaen ergueu.
Ter um tão elucidativo documento sobre tão singular e genial é facto precioso – de conhecimento indispensável mesmo.
Para o centenário do nascimento de Oliver Messiaen – 10-11-08
Espírito crente, compositor, organista e professor, Olivier Messiaen teve uma influência capital no pós-guerra, abrindo caminho à vanguarda de então, a de Boulez ou Stockhausen. Foi também ornitologista - o canto dos pássaros apaixonava-o.
Na música europeia deste século houve dois momentos de clivagem correspondentes a dois traumas na própria História da Europa: as duas Grandes Guerras. Depois da Primeira, o grande florescimento modernista definhou e novos sistemas se definiram, o dodecafonismo ou o neo-classicismo. Este último, hegemónico entre as guerras, foi abalado com a Segunda, no pós-guerra tendo triunfado a radicalização serial do dodecafonismo.
Se houve compositor fulcral na passagem da primeira para a segunda metade do século, e que involuntariamente ainda ofereceu aos então jovens Boulez e Stockhausen um modelo que serviria de paradigma para a vanguarda do pós-guerra, esse compositor foi certamente Olivier Messiaen.
Nascido em Avignon em 1908, o futuro compositor teve um primeiro impacto com a descoberta de Pelléas et Mélisande de Debussy. Organista, foi nomeado aos 22 anos titular da Igreja da Trinité em Paris, posto que ocupou até à morte, mais de seis décadas passadas, em Abril de 1992. La Nativité du Seigneur e Les Corps Glorieux, duas obras para órgão, são aliás das mais destacadas entre as compostas ainda antes da Guerra. Uma guerra que Messiaen iria viver de perto. Mobilizado, capturado, seria no campo de prisioneiros de guerra de Gorlitz que ele comporia o extraordinário Quator pour la fin du Temps, estreado em condições inauditas nesse mesmo Stalag VIII-A.
Espírito imensamente curioso, Messiaen dedicou-se sistematicamente à ornitologia, transcrevendo centenas de cantos de pássaros, que muitas vezes constituíram indicações para obras musicais, como o extraordinário Catalogue des oiseaux para piano ou os Oiseaux exotiques para orquestra. Espírito religioso, Messiaen compôs numerosíssimas obras de referência cristã, como L’Ascension, Les Couleurs de la Cité Céleste, Et Expecto Resurectionem Mortuorum para orquestra (no ultimo caso apenas sopros e percussão), a oratória La transfiguration de Nôtre Seigneur Jésus-Christ para coro e orquestra; as Visions de l’Amen ou Les Vingt Regards Sur L’Enfant Jésus para piano, culminando numa ópera em torno da figura de quem o seu panteísmo estaria mais próximo, Saint François de Assise.
Os sons, as cores, as paisagens, aquilo que para ele seria a dádiva de Deus aos homens, desfrutou-as Messiaen em muitas paragens. Aos ecos transfigurados dos cantos dos pássaros, associaram-se variadíssimos elementos provenientes de músicas extra-europeias. Os sons dos “gagakus” do Japão, dos gamelãos de Bali, dos gongues dos Tibetes reapareceram nas suas obras. A influência extra-europeia, por exemplo das métricas indianas, tornou-se notória nas gamas e nas estruturas rítmicas das suas obras.
Foi precisamente num dos Quatro Estudos de Ritmo, para piano, designado por Modo de Valores e Intensidades, que Messiaen formulou uma possibilidade de organização dos parâmetros musicais que viria a ser absolutamente crucial para a conceptualização serial de Boulez ou Stockhausen – ele próprio achando, todavia, de todo desproporcionada a influência imensa dessa peça. Para esses compositors e para outros (Xenakis, por exemplo), Messiaen foi “o mestre”, nas suas obras e no seu ensino, designadamente nas classes de harmonia e análise no Conservatório de Paris.
Dizia: “O papel de um professor é o de encontrar a via que o seu aluno deve seguir e não a de ensinar o que ele próprio faz. Na minha aula fiz sempre abstracção dos meus próprios gostos, a fim de mostrar aos alunos tudo o que podia existir, não apenas na música clássica, mas também na música antiga ou exótica como na música moderna ou ultra-moderna. Tudo lhes mostrei, mas sobretudo procurei para cada um o que poderia ser a sua própria via, mesmo quando o músico que eu sou não acreditava nesta ou naquela orientação. Escrevi o que amava, mas nunca impus os meus amores aos meus alunos”.
Religioso, panteísta, curioso, Messiaen revelou-se musicalmente um mestre incomparável da cor. Obras como a Turangalîla-Symphonie, Des Canyons aux étoiles ou Chronochromie são magistrais exposições das possibilidades tímbricas de uma orquestra sinfónica. A primeira é uma das obras dos últimos sessenta anos mais regularmente tocadas e gravadas. Mas também as obras para piano ou para órgão apelam aos instrumentistas, Messiaen sendo certamente um dos autores contemporâneos mais amado por intérpretes, entre os quais ocupou lugar particular a sua esposa, a pianista Yvonne Loriod. A sua última obra, Éclairs sur L’Au-Delá é outra visão da transcêndencia, de que Messiaen não obstante procurava também os concretos indícios terrenos como no canto dos pássaros.
Oliver Messiaen foi uma das figuras musicais mais singulars e importantes do século XX, absolutamente capital mesmo.
No 1º aniversário da morte de Karlheinz Stockhausen
Stockhausen
Stimmung
Theatre of Voices, Paul Hillier
Harmonia Mundi
Stimmung é uma das mais fascinantes e encantatórias composições de Stockhausen.
A obra começou a ser escrita nos Estados Unidos, depois de uma viagem pelo México, Havai e Califórnia, em 1968. O facto está longe de ser menor. Por um lado, e ainda que a ambição de cosmogenia de Stockhausen estivesse já patente numa obra de pouco anterior, Hymnen (1966/67), que por sua vez tão influente seria nos grupo de rock “psicadélico” (Pink Floyd, etc.), é Stimmung que anuncia a viragem no sentido do misticismo, absorvendo influências extra-europeias – mesmo que, diferentemente de John Cage, Stockhausen tenha permanecido, ponto importante, um mestre-compositor, um demiurgo sim, mas no sentido da tradição europeia -, misticismo que se tornaria decisivo, não sem muito ganga “kitsch” também, no monumental ciclo Licht, encetado em 1977, com as suas sete “óperas”, uma para cada dia da semana, a que ainda se seguiria um outro ciclo, Klang, para as 24 horas do dia.
Ainda que muitas das palavras escritas tivessem sido retidas pelo seu valor fonético (outras são nomes mágicas, e uma, a do “modelo” 28 – a obra engloba 51 “modelos” - é uma prédica, “Langsamen…”), não é certamente por acaso que uma dessas seja “hippy” – 1968 na Califórnia , onde Stockhausen ensinou no Mills College, foi o momento de apogeu dos “flower people”. Mas, mais importante, e tenha sido caso de conhecimento directo ou não, Stimmung liga-se à tendência minimal que já despontava, depois do seminal In C de Terry Riley, de 1964 – e a obra constrói-se a partir de um si bemol, não de um “acorde de si bemol”, mas de 16 notas a partir dos harmónicos dessa outra, polar. Por sua vez Stimmung iria ter uma enorme influência nos sucessivos minimalistas (mesmo em Steve Reich, diga ele hoje o que disser) e muito em particular nos trabalho vocais de Robert Ashley e de Meredith Monk – e se pensarmos no que uma Björk por sua vez deve a Meredith Monk, o lastro continua.
“Stimmung” é aliás uma palavra que significa quer “afinação”, quer “disposição” ou “humor” em sentido lato – além de evocar “Stimme”; voz. De certa maneira Stimmung no mais genérico sentido de “disposição” ou “humor”, de “l’air du temps”, é uma das mais representativas obras dos anos finais da década de 60. Mas num outro sentido, é uma obra trans-histórica.
Os seis cantores, três masculinos e três femininos, dispõem-se ao centro, sentados no chão com as pernas cruzadas, “à oriental”, com o público à volta, cada um deles com um microfone. Ocorre virem por sua vez para trás do público – Stimmung é uma cerimónia, um ritual, mas também uma prodigiosa invenção de uma nova vocalidade, como no maneirismo o tinham sido os madrigais de Gesualdo (e de Luzzaschi) e depois o foram os de Monteverdi – e era esse o reportório do grupo que solicitou a obra, o Collegium Vocale Köln. A obra dá campo à livre escolha dos intérpretes, é aleatória, e mesmo, prosseguindo os princípios de música intuitiva que Stockausen tinha já praticado em Aus den Sieben Tagen (imediatamente anterior, obra “libertária", de Maio de 68!), ainda que num quadro mais prescrito, apela às suas reacções imediatas, à reacção a um som, a uma vibração.
Cada interpretação de Stimmung é assim diferente – pelo menos, certamente, cada uma por intérpretes diferentes. Em Portugal, em Lisboa, houve duas realizações inolvidáveis: uma, em 1972, pelos criadores da obra, o Collegium Vocale Köln, no Instituto Alemão dos tempos áureos, dirigido por Curt Meyer-Claison, outra no Festival Música Viva em 2006, na Sala do Capítulo do Mosteiro dos Jerónimos, por estes mesmos e excelentes Theatre of Voices dirigidos por Paul Hillier (que será o maestro titular do novel Coro da Casa da Música).
A proliferação de gravações “live” está também a alterar alguns dados da escuta. Por mim, ironizando, costumo dizer que ainda terei de arranjar uma estante para discos e dvds em que “compartilho” da respiração de fundo, isto é, de concertos ou espectáculos de ópera em que estive presente. Mais latamente, a memória concreta suscita um suplemento de emoção na escuta.
Este caso é diferente – fatalmente, estou em crer, pelas características da obra. Reouvida agora, a versão (porque cabe falar em “versões” e não apenas em “interpretações”) do Theatre of Voices parece-me menos incisiva, de algum modo mais macia, que a dos Singcircle dirigidos por Gregory Rose, em que Paul Hillier aliás era um dos participantes (Hyperion). Mas porque cada versão é diferente, cada uma se justifica.
E o caso é também diferente de outras audições porque requer condições especiais, de preferência na penumbra, tomando os devidos cuidados (com os telefones etc.) para não haver interrupções