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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

A Quimera do Olhar (Manoel de Oliveira - I)

 

Rodagens de “Douro, Faina Fluvial” (em cima) e de “O Quinto Império” (ao centro) e plano de “O Passado e o Presente”.
 
 
 
 
No dia dos 100 anos de Manoel de Oliveira
 
 
Que alguém chegue aos 100 anos em plena lucidez e labor, já é facto mais que digno de nota e admiração. E tanto mais o é quanto a energia é muito e esse alguém, Manoel de Oliveira, continua a fazer planos para o futuro; depois de Singularidades de Uma Rapariga Loura, a partir de Eça de Queiroz, actualmente em rodagem, já se prepara para realizar enfim Angélica, projecto de 1954, que até agora tinha o estranho estatuto de se poder considerar uma das peças chaves para tentar compreender Oliveira, sendo contudo um argumento não concretizado.
 
Atente-se na data, 1954. E será 55 anos volvidos, esperemos, que o Manoel o vai enfim concretizar, o que diz bem da sua obstinação. Acrescente-se – intransigência e integridade artística. Um caso de intransigência e integridade que combinado com a longevidade e a lucidez é absolutamente único.
 
No final dos anos 20, no período final do mudo, um dos momentos mais inventivos da história do cinema, o desportista e galã que Oliveira era quis experimentar essa arte então ainda jovem. Com um fotógrafo amador, António Mendes, na câmara, rodou Douro, Faina Fluvial, quando ocorria já a passagem ao sonoro. Depois, durante 40 anos, apenas lhe foi possível concretizar uma única longa-metragem, o célebre Aniki-Bóbó.
 
Em 1970, quando a geração do novo cinema português se reuniu na cooperativa Centro Português de Cinema, com o apoio da Gulbenkian, o “regresso” de Oliveira era um ponto de honra. Assim surgiu O Passado e o Presente, ocasião para a primeira das várias polémicas públicas sobre o seu cinema, e início da “Tetralogia doa Amores Frustrados”, prolongada com Benilde ou a Virgem-Mãe (uma dos filmes máximos), o Amor de Perdição cuja exibição televisiva provocaria as máximas polémicas, e Francisca, o mais sublime dos seus filmes– e “amores frustrados” que seriam ainda prolongados em Le Soulier de Satin, o filme para a peça de Claudel.
 
Em 1981, Francisca marcou também marcou também o encontro com o produtor Paulo Branco. Foi uma longa e decisiva relação. Sejam quais tenham sido as razões do desentendimento, 23 anos depois, ache-se o que se entender da postura e acções de Branco nos últimos anos, ele deu a Oliveira uma decisiva projecção internacional.
 
Contando também com um continuado apoio do Estado, não sem outras acrescidas polémicas, e sendo certo que assim teve meios que outros não lograram (basta citar o caso de Dreyer na Dinaamarca, Dreyer o cineasta mais amado por Oliveira), é ainda assim absolutamente prodigioso e só explicável pela sua extraordinária energia que, desde 1986, tinha ele então 77 anos, Oliveira tenha realizado 21 filmes!
 
Os seus parceiros foram-no reconhecendo como decano reverenciado. Em 1993, Tom Luddy, meu colega no júri de Cannes, e que era director do Festival de Telluride no alto das Montanhas Rochosas (e que trabalha com Coppola na Zoetrope), viu Vale Abraão em Cannes, mas na Quinzena – viu ele e vi eu, escapulindo-me por um momento das obrigações oficiais de jurado, para afinal compartilhar também da maior ovação (10 minutos de “standing ovation”) com que alguma vez vi um filme ser recebido. Tom Luddy seleccionou o filme para o festival mas pediu-me um favor: que para uma projecção surpresa levasse eu próprio uma cópia de Douro Faina Fluvial. Lá fui com uma lata carregada ao braço, para Nova Iorque, para Denver, para Telluride. Sendo este um festival da comunidade cinéfila, lá estavam boquiabertos de admiração Wim Wenders, John Boorman, Otar Iosseliani ou Bertrand Tavernier, mal querendo acreditar que tinham ali à frente o autor daquele filme do “mudo”, um artesão que começara a montar directamente no positivo em cima de uma mesa de bilhar – e Tavernier, cinéfilo inveterado, dizia taxativo que Douro era muito melhor que o seu modelo, a Sinfonia de uma Capital de Ruttmann. O abraço de homenagem de homenagem que no Festival de Cannes deste ano lhe veio dar Clint Eastwood, que como “derradeiro dos clássicos” è a seu modo “o decano” do cinema americano, foi outro gesto simbólico desse reconhecimento que apenas pode surpreender os incautos ou cinematograficamente idiotas.

 

 

 

 

Mas se tudo isto já é único e singular, o mais extraordinário e ao mesmo tempo mais difícil de precisar são as próprias características do cinema de Oliveira.
 
Em 1981, quando do cinquentenário de Douro e num momento que era também o de Francisca, tive ocasião de fazer (eu e José Nascimento) um filme sobre Manoel de Oliveira, que passados todos estes anos pude rever recentemente em Serralves (também foi exibido na RTP/2). A certa altura Agustina faz uma comparação entre Régio (a mais marcante das influências culturais no cineasta) e Oliveira: “para Régio as relações eram uma desilusão, para Oliveira são uma falha”.
 
Em Francisca, filme “agustiniano” segundo Fanny Owen, há a célebre frase, “A alma é um vício”,que se repercutirá muito anos depois em O Princípio da Incerteza, “A alma é uma quimera”.
 
Oliveira olha, interroga e disseca não apenas os corpos e as matérias, dir-se-ia que tenta mesmo aproximar-se do “infilmável”, quiçá essa quimera de alma, interroga-se sobre as relações e a própria condição humanas – em O Princípio da Incerteza, o dito princípio é o das relação homens-mulheres (as tais que tanto suscitam também “amores frustrados”), mas afinal, esclarece-o o filme seguinte, o desvairado Espelho Mágico, a incerteza é a da própria existência humana. Por isso também, Manoel de Oliveira é um cineasta funesto, de tantos temores, e de tantas e tão terrivelmente belas mortes. E como todos os grandes artistas é bem mais que apenas um mestre na sua arte particular.

 

Parabéns aos Mestres!

 

 
Manoel de Oliveira, cineasta, português, e Eliott Carter, compositor, norte-americano, são os decanos da arte mundial. Por espantosa coincidência, nasceram ambos a 11 de Dezembro de 1908 e continuam em actividade (Louise Bourgeois é três anos mais nova). Parabéns pois a estes dois mestres no seu 99º aniversário.