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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

A lenda de Maria Malibran - II

 

 

Cecilia Bartoli
Maria
Árias e trechos de Bellini, Pacini, Persiani, Hummel, Mendelssohn, Halévy, Rossi, Manuel García e Maria Malibran
Orquestra La Scintilla, Adam Fischer
Decca/Universal
 
 
 
Com Maria, disco de homenagem a Maria Malibran, Cecilia Bartoli dá um passo não apenas arriscado, o que na sequência dos àlbuns Vivaldi, Salieri, Gluck e Opera proibita é afinal o que a distingue, mas mesmo eventualmente de uma ousadia excessiva, temerário.
 
Convirá, todavia, atender a quadros mais genéricos para perceber o âmbito deste passo. É sabido que a reapropriação de certos repertórios, com fundamentação musicológica,
foi e é característica dessa verdadeira revolução interpretativa consagrada na expressão “nova música antiga”, abrangendo o barroco, que depois foi englobando também o classicismo no seu campo de reinvenções interpretativas, e mais recentemente o primeiro romantismo. Prenunciada no recital Live in Italy, a integração da Bartoli neste campo estabeleceu-se desde o Vivaldi Album.
 
Um dos terrenos particulares de aproximação que tem vindo a ocorrer é o do recital com base no repertório histórico de um cantor. Nicholas McGegan foi no caso o pioneiro, dirigindo o conjunto de quatros recitais de “Arias for...” quatro intérpretes emblemáticos de Haendel: a Durastanti, a Cuzzoni, “Senesino” e Mantagnana. Seguiu-se René Jacobs, de resto atento ao sucesso vivaldiano de Bartoli, no passo excessivamente ambicioso das árias para Farinelli, que propulsou Vivica Genaux, Andreas Schöll retomando o repertório do “Senesino” ou, muito recentemente, Phillipe Jaroussky abordando o repertório de “Crescentini”, em disco ainda não distribuído em Portugal.
 
Deve também dizer-se que no campo musicológico tem havido estudos sistemáticos de perfis de certos cantores históricos, até para melhor perceber o tipo de “vocalità” que as óperas de facto solicitavam, sendo certo que eram compostas com vista também a intérpretes concretos.
 
Só por ignorância, snobismo alarve ou facciosismo de tertúlia se poderá pois recusar “à priori” uma proposta como esta agora, sendo para mais conhecidas as muitas e cintilantes provas já dadas por essa intérprete verdadeiramente excepcional que é Cecilia Bartoli.  
 
Tudo isto dito, não é menos que abordar a Malibran, aquela que até à Callas foi por excelência a “diva”, é passo temerário.
 
Contudo, em termos estritamente musicológicos, o objecto Malibran não deixa de ser dos mais fascinantes, sabendo-se como houve um repertório especificamente seu, com árias escritas só para ela (árias que alguns compositores para ela escreveram para serem interpoladas em óperas de outros) ou particulares versões – caso da chamada “versão Malibran” da Sonâmbula de Bellini, a qual todavia, e apesar da enorme admiração do compositor pela cantora e da sua disponibilidade para proceder a justamentos de óperas suas para os requisitos dela (como no caso dos Puritanos) não deverá ser do próprio Bellini mas de Henry Bishop, facto que o livrete, documentadissimo como sempre nos discos da Bartoli, todavia não refere.
 
Aos nossos hábitos de audição soará estranho ouvir uma “mezzo” cantar A Sonâmbula, Os Puritanos ou Norma, mas as primeiras grandes divas, Pasta ou Malibran (e foi sobretudo para Giuditta Pasta que Bellini escreveu essas óperas, depois reapropriadas pela Malibran) eram de facto o que hoje designamos de “mezzo”, ainda que com agilidade nos agudos e mesmo sobreagudos, numa tessitura mais próxima dos “castrati contraltini” a que sucederam – e no caso da Norma não há mesmo qualquer dúvida que, contrariamente à tradição instituída, o papel titular é sim mais grave, e não mais agudo, do que de Adalgisa.
 
É assim todo um repertório que Bartoli revela neste álbum, caso por exemplo das árias de Pacini (que, como um Mercadante, foi um dos importantes autores da primeira geração romântica da ópera italiana, eclipsados por Bellini e Donizetti, e pela rivalidade entre esses) ou, já conhecida esta, da Ines de Castro de Persiani, bem como alguns trechos mais circunstanciais ou de menor relevo musical, do pai Manuel Manuel García, da própria Malibran ou uma ária tirolesa de Hummel.
 
Mas, evidentemente, os trechos bellinianos são uma vertente axial desta proposta. E se é miraculoso o modo como Bartoli soa etérea na Amina da Sonâmbula ou na Elvira dos Puritanos, já a “Casta Diva” da Norma (com a flauta “obligatta” restaurada) é assaz singular, quase murmurada, e hipnótica nesse murmúrio, mas contudo sem o carácter extático da invocação.
 
A destreza e a bravura de Cecilia Bartoli são incomparáveis – e que “panache” no Rataplan da própria Malibran! Mas também há passagens de registo pouco conseguidas e sobretudo uma espampanante tendência à ornamentação algo mecanicista dos vocalizos.
 
A afinação a 430Hz é particularmente confortável para a “mezzo” nestas páginas (e filologicamente pertinente) e são excelentes as cores da Scintilla, o conjunto de instrumentos de época da Ópera de Zurique, dirigido por Adam Fischer.
 
Supervisando a Bartoli todos os aspectos da operação, também há a dizer que a embalagem de luxo e o marketing do produto têm neste caso aspectos poucos felizes, com os seus dourados, mas sobretudo insistindo num jogo de espelhos Malibran/Bartoli que não deixa de favorecer a leitura mais redutora deste projecto, a de um puro acto de “divismo”, quando é outra coisa, e mais, muito mais que isso.

A lenda de Maria Malibran - I

Maria Malibran no papel
de Desdemona
 
 
 
“A mais tocante e universalmente admirada das cantoras românticas tornou-se, depois da morte, num objecto de culto. Ela é um dos fundamentos do mito da diva”, escrevem Roger Blanchard e Roland de Candé sobre Maria Malibran (1808-1836) em Dieux et Divas de l’opéra (Plon, 1987). De resto, “la Malibran” foi uma figura de tal modo decisiva na configuração de um novo tipo de estética vocal e de apreciação pública dos cantores, que os dois volumes dessa enciclopédica obra a retêm como figura divisória – já que os subtítulos do vol. I são “Des origines au Romantisme” ou “Des origines à la Malibran”.
 
Há que recordar que o “divismo” foi antes do mais matéria respeitante aos seres fabulosos e monstruosos que eram os “castrati”. Pesem ainda famosos casos de “prime donne”, como as “rival queens” para Haendel, a Bordoni e a Cuzzoni, ou Luisa Todi, os objectos de adoração e delírio foram os “Nicolino”, “Senesino”, “Farinelli, “Cafarelli”, Guadagni, “Crescentini” ou "Carestini".
 
Com o romantismo tudo mudou, da rejeição do acto castrador, que ficou apenas entregue aos cuidados e à piedade da Igreja Católica Romana, à reconsideração da mulher. O movimento romântico, do mesmo modo que no bailado deu origem aos novos seres etéreos de La Sylphide ou Giselle, chorou as desgraças das heroínas de ópera e colocou no pedestal as suas intérpretes –  colocou as cantoras, antes do mais.
 
Mas se houve uma ruptura, e uma ruptura cultural profunda, houve também uma transição: os intérpretes da primeira geração romântica formaram-se ainda no canto rossiniano, isto é, no derradeiro esplendor do “bel canto” ornamentado – donde também o uso da equívoca e mesmo de algum modo contraditória noção de “bel canto romântico”, usado a propósito das óperas de Bellini e Donizetti, os compositores dessa primeira geração, certamente já de estética romântica, embora vocalmente ainda com traços belcantistas.
 
No caso de Maria Malibran essa formação no canto rossiniano foi mesmo familiar: era filha de Manuel García, nomeadamente o criador de Almaviva no Barbeiro de Sevilha. Um dos momentos mais célebres da carreira da Malibran ocorreu aliás, quando interpretando Desdemona no Otelo de Rossini “morreu” às mãos do esposo despeitado, que não era outro senão o próprio pai, Manuel García.
 
Mas se foi celebrada cantante rossiniana terá estado longe de ser das mais eméritas. Entre as grandes intérpretes do compositor, e para além daquelas para quem as obras foram directamente escritas, a mais saliente foi Giuditta Pasta (1797-1865), que simultaneamente foi, ela sim, a primeira “diva” romântica, para a qual Donizetti escreveu Ana Bolena e Bellini A Sonâmbula. O próprio Rossini aliás preferia a irmã de Maria Malibran, Pauline Viardot (e ainda houve na escola familiar de canto um irmão, Manuel García Junior), aquela para quem Berlioz fez a versão do Orfeu e Euridice de Gluck que se manteve como norma até muito recentemente, Pauline Viardot, a amiga de Chopin, a amada de Turgueniev.
 
“Mais, voilá”, enquanto Pasta viveu 68 anos, a Malibran morreu com 28, e era bela enquanto, disse Saint-Saëns, “Madame Viardot n’était pas belle, elle était pire!”. Bela, de vida sentimental atribulada de dois casamentos, dotada de uma voz de “mezzo” incrivelmente extensa de quase três oitavas, atingindo o mi sobreagudo, a Malibran deslumbrava e era adulada. E como “morrem cedo aqueles que os deuses amam”, Maria Malibran sucumbiu depois de um concerto em Manchester. Com ela se fundamentou não tanto o culto mas mais o mito romântico da diva – foi afinal percursora tanto de Maria Callas quanto de Marilyn Monroe.
 
O mais operático dos realizadores contemporâneos, Werner Schröter, recriou a lenda em A Morte de Maria Malibran (1971), que nada tem de “biopic” (ou não fosse um filme de Schröter), mas que é um admirável gesto passional e melodramático, em que Maria morre junto de Schumann e Liszt, consumida na intensidade do seu canto, do seu canto até à morte.
 
 
 
“A Morte de Maria Malibran”