Natalie Dessay, Karine Deshayes, Philippe Jaroussky, Toby Spence, Laurent Naouri
Le Concert d’Astrée, Emmanuelle Haïm
Virgin/EMI
Coisa de todo diversa do anterior é este disco. Eis outro caso de marketing discográfico, puro caso de marketing discográfico mesmo. Bach+Haendel, duas célebres composições, o Magnificat e o Dixit Dominus, o agrupamento barroco de serviço na Virgin e outro (quase) “all- stars cast” que também vai sendo recorrente na editora.
E para quê? Realizações pesadas e empasteladas, de sofrível articulação e coro, de uma mediocridade geral em que se salvam o virtuosismo de Jaroussky e, com alguma surpresa diga-se, mas pela notável versatilidade e agilidade, a Dessay, em que se dois cantores de reconhecidas qualidades, Spence e Naouri (este uma vez mais vindo parar a um disco com a esposa Dessay), se integram problematicamente, e em que quanto à única solista sem renome, Deshayes, melhor seria terem-nos poupado.
Note-se que o Dixit Dominus é uma obra do período romano de Haendel, em que conheceu e assimilou as obras de Corelli e Alessandro Scarlatti – Andrew Parrott propôs mesmo umas hipotéticas Vésperas Carmelitanas (Virgin) só com obras de Haendel, incluíndo como é óbvio o Dixit Dominus. Mas dessa concreta obra nunca é possível esquecer a extraordinária gravação de Gardiner com o Monteverdi Choir em 1977, gravação ainda com os intrumentos tradicionais da então designada Monteverdi Orchestra, antes da formação dos English Baroque Soloists com instrumentos de época, realização de um virtuosismo e esplendor vocais incomparáveis (inclusive o “remake” do próprio Gardiner não atinge tais níveis), disco Erato que ainda se encontra a preço económico – e um dos grandes registos haendelianos e, a meu ver, uma das extraordinárias gravações de uma obra coral.
E quanto ao Magnificat, há dois grandes paradigmas interpretativos, em tudo contrastantes: a exuberância festiva quase teatral de Gardiner, com a Cantata BWV 51 “Jauchzet Gott in allens Landen”,e o fervor filo-pietista de Herreweghe, numa coplagem em especial coerente com a Cantata BWV 80 “Ein fest Burg ist unser Gott”.
“Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne” [“Tauerode –‘Lass, Fürstin’”]
Prelúdio e Guga BWV 544, Missa BWV 234
Katharine Fuge, Carlos Mena, Jan Kobow, Stephan MacLeod
Francis Jacob
Ricercar Consort, Philippe Pierlot
Mirare, dist. Harmonia Mundi
Pesem ainda algumas qualidades, e mesmo o interesse musicológico da proposta, todavia concretizada de modo incipiente, este disco não deixa também de merecer uma particular chamada de atenção por motivos que vão sendo “representativos” mas não dos mais lisongeiros.
As práticas musicológicamente fundamentadas da “nova música antiga e barroca” têm também conduzido ao uso e abuso das operações de “reconstituição”, nomeadamente em disco. E assim sucede por vezes assistirmos mesmo a cenas caricatas de distribuidores e vendedores a clamar “premième mundial!, première mundial!”, quando não se trata de mais que outra designação, outra embalagem, ou quanto muito outra hipótese, para obras bem conhecidas.
Olhando para a capa deste disco, o seu modo de apelo público, alguém pode perguntar: “Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne”?! Um inédito de Bach, pelo menos um inédito discográfico?!
Pensando um momento, para quem minimamente conheça, não será difícil contudo identificar a obra, a célebre Ode Fúnebre, “Lass, Fürstin”. Christiane Eberhardine de Branderburg-Bayreuth permaneceu fiel à Igreja Reformada e retirou-se quando o marido, o Eleitor Frederico Augusto I da Saxónia, se converteu ao catolicismo, condição “sine qua non” para ser proclamado Rei da Polónia – e circunstância na origem de Bach ter escrito para a côrte de Dresden a sua grande obra de rito latino, a Missa em si menor.
Quando a princesa morreu, um serviço fúnebre em sua homenagem realizou-se na Igreja de São Paulo da Universidade de Leipzig. Se é certo que “Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne” é a indicação constante no manuscrito de Bach, pois que o francês era a língua culta, não menos se deve considerar elementar que uma obra seja identificada nos termos em que é devidamente conhecida.
De resto, o interesse da proposta está propriamente na hipótese de reconstituição. Um dos grandes estudiosos de Bach, Gilles Cantagrel, que também assina as notas do livrete, tinha colocado a possibilidade de um nexo entre o Prelúdio e Fuga BWV 544 e a Ode, de resto ambas na tonalidade de si menor. Os testemunhos referindo que uma peça de orgão foi tocado no início do ofício e outro no fim, a hipótese estabelecida neste disco é que foram os referidos Prelúdio e Fuga, sendo ainda interpolada outra peça de orgão entre a primeira e a segunda partes da Ode, correspondente ao momento em que na cerimónia terá ocorrido propriamente a oração fúnebre. A anteceder figura uma das quatro breve Missas, apenas com “Kyrie” e “Gloria”, de acordo com uma prática conservada na liturgia reformada.
“Hèlas, hèlas, hèlas!”. O debate sobre “o coro de Bach”, depois das teses minimalistas de Joshua Rifkin, tem agitado as hostes musicológicas como nenhum outro – ou antes, só como as polémicas em torno de Chostakovich, subsequentes ao discutível Testemunho publicado por Solomon Volkov. Mas nem vale a pena citar os argumentos em confronto perante a manifesta evidência de que este coro de quatro solistas se abeira da indigência, e que o mesmo cabe dizer das intervenções individuais, excepto um momento de Graça particularmente dolorosa: a ária de contralto com violas “Wie starb die Heldin” por Carlos Mena – e o contratenor revelou-se, recorde-se, quando da primeira Festa da Música em Lisboa, em 2000, cantando Bach com este mesmo Ricercar Consort, e recorde-se também que a Mirare é a editora entretanto criada por René Martin, director artístico do evento entretanto “expulso” do CCB.
A qualidade da realização instrumental, do orgão solo de Francis Jacob e das flautas de Marc Hantaï e Georghes Barthel em particular, é inegável, mas insuficiente perante a manifesta inépcia da concepção e escolhas vocais.
E, para além disso, é incómodo verificar uma vez mais que são pequenas editoras independentes, e sobretudo votadas ao barroco e à música antiga, que optam por estratégias de marketing discográfico alardeando uma novidade que quanto muito é relativa, e em todo o caso sem a probidade suficiente nos seus modos de apresentação pública.
Quanto à Tauerode -‘Lass, Fürstin’, por mim continuo fidelíssimo a uma interpretação que se me afigura uma das escolhas mais salientes na discografia de Bach, a de Philippe Herreweghe, na Harmonia Mundi.
Árias e trechos de Bellini, Pacini, Persiani, Hummel, Mendelssohn, Halévy, Rossi, Manuel García e Maria Malibran
Orquestra La Scintilla, Adam Fischer
Decca/Universal
Com Maria, disco de homenagem a Maria Malibran, Cecilia Bartoli dá um passo não apenas arriscado, o que na sequência dos àlbuns Vivaldi, Salieri, Gluck e Opera proibita é afinal o que a distingue, mas mesmo eventualmente de uma ousadia excessiva, temerário.
Convirá, todavia, atender a quadros mais genéricos para perceber o âmbito deste passo. É sabido que a reapropriação de certos repertórios, com fundamentação musicológica,
foi e é característica dessa verdadeira revolução interpretativa consagrada na expressão “nova música antiga”, abrangendo o barroco, que depois foi englobando também o classicismo no seu campo de reinvenções interpretativas, e mais recentemente o primeiro romantismo. Prenunciada no recital Live in Italy, a integração da Bartoli neste campo estabeleceu-se desde o Vivaldi Album.
Um dos terrenos particulares de aproximação que tem vindo a ocorrer é o do recital com base no repertório histórico de um cantor. Nicholas McGegan foi no caso o pioneiro, dirigindo o conjunto de quatros recitais de “Arias for...” quatro intérpretes emblemáticos de Haendel: a Durastanti, a Cuzzoni, “Senesino” e Mantagnana. Seguiu-se René Jacobs, de resto atento ao sucesso vivaldiano de Bartoli, no passo excessivamente ambicioso das árias para Farinelli, que propulsou Vivica Genaux, Andreas Schöll retomando o repertório do “Senesino” ou, muito recentemente, Phillipe Jaroussky abordando o repertório de “Crescentini”, em disco ainda não distribuído em Portugal.
Deve também dizer-se que no campo musicológico tem havido estudos sistemáticos de perfis de certos cantores históricos, até para melhor perceber o tipo de “vocalità” que as óperas de facto solicitavam, sendo certo que eram compostas com vista também a intérpretes concretos.
Só por ignorância, snobismo alarve ou facciosismo de tertúlia se poderá pois recusar “à priori” uma proposta como esta agora, sendo para mais conhecidas as muitas e cintilantes provas já dadas por essa intérprete verdadeiramente excepcional que é Cecilia Bartoli.
Tudo isto dito, não é menos que abordar a Malibran, aquela que até à Callas foi por excelência a “diva”, é passo temerário.
Contudo, em termos estritamente musicológicos, o objecto Malibran não deixa de ser dos mais fascinantes, sabendo-se como houve um repertório especificamente seu, com árias escritas só para ela (árias que alguns compositores para ela escreveram para serem interpoladas em óperas de outros) ou particulares versões – caso da chamada “versão Malibran” da Sonâmbula de Bellini, a qual todavia, e apesar da enorme admiração do compositor pela cantora e da sua disponibilidade para proceder a justamentos de óperas suas para os requisitos dela (como no caso dos Puritanos) não deverá ser do próprio Bellini mas de Henry Bishop, facto que o livrete, documentadissimo como sempre nos discos da Bartoli, todavia não refere.
Aos nossos hábitos de audição soará estranho ouvir uma “mezzo” cantar A Sonâmbula, Os Puritanos ou Norma, mas as primeiras grandes divas, Pasta ou Malibran (e foi sobretudo para Giuditta Pasta que Bellini escreveu essas óperas, depois reapropriadas pela Malibran) eram de facto o que hoje designamos de “mezzo”, ainda que com agilidade nos agudos e mesmo sobreagudos, numa tessitura mais próxima dos “castrati contraltini” a que sucederam – e no caso da Norma não há mesmo qualquer dúvida que, contrariamente à tradição instituída, o papel titular é sim mais grave, e não mais agudo, do que de Adalgisa.
É assim todo um repertório que Bartoli revela neste álbum, caso por exemplo das árias de Pacini (que, como um Mercadante, foi um dos importantes autores da primeira geração romântica da ópera italiana, eclipsados por Bellini e Donizetti, e pela rivalidade entre esses) ou, já conhecida esta, da Ines de Castro de Persiani, bem como alguns trechos mais circunstanciais ou de menor relevo musical, do pai Manuel Manuel García, da própria Malibran ou uma ária tirolesa de Hummel.
Mas, evidentemente, os trechos bellinianos são uma vertente axial desta proposta. E se é miraculoso o modo como Bartoli soa etérea na Amina da Sonâmbula ou na Elvira dos Puritanos, já a “Casta Diva” da Norma (com a flauta “obligatta” restaurada) é assaz singular, quase murmurada, e hipnótica nesse murmúrio, mas contudo sem o carácter extático da invocação.
A destreza e a bravura de Cecilia Bartoli são incomparáveis – e que “panache” no Rataplan da própria Malibran! Mas também há passagens de registo pouco conseguidas e sobretudo uma espampanante tendência à ornamentação algo mecanicista dos vocalizos.
A afinação a 430Hz é particularmente confortável para a “mezzo” nestas páginas (e filologicamente pertinente) e são excelentes as cores da Scintilla, o conjunto de instrumentos de época da Ópera de Zurique, dirigido por Adam Fischer.
Supervisando a Bartoli todos os aspectos da operação, também há a dizer que a embalagem de luxo e o marketing do produto têm neste caso aspectos poucos felizes, com os seus dourados, mas sobretudo insistindo num jogo de espelhos Malibran/Bartoli que não deixa de favorecer a leitura mais redutora deste projecto, a de um puro acto de “divismo”, quando é outra coisa, e mais, muito mais que isso.