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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Casa da Música - IV

 

 

 

Sempre fui defensor do modelo de fundação e de parceria público-privado, como em Serralves, para a Casa da Música – quem porventura tiver presente uma brochura editada pelo “Público” quando da inauguração da Casa em Abril de 2004, poderá constatar ser essa a posição que eu defendia. Entendo isso, por várias razões, nomeadamente por achar fundamental a atração mecenática de capitais para a cultura, uma gestão mais profissionalizada sem os vícios das burocracias estatais e também uma maior autonomia face à tutela política, em que, como tivemos recente exemplo no consulado Pires de Lima / Vieira de Carvalho, afinal ainda ocorrem recorrentemente tentações dirigistas.*
 
Mas a entrega das responsabilidades de gestão directa a alguém vindo do sector privado não deixa de trazer também alguns riscos. Como me dizia recentemente um produtor de indústrias cultural “o problema dos gestores é que pensam nos fins e não nos meios”, ou seja, no caso, que podem não ter devidamente em conta as valias culturais para além da sua tradução imediata em afluências de públicos, ou “box-office”.
 
Instituída a Fundação, foi escolhido como administrador-delegado Nuno Azevedo, o filho mais velho de Belmiro de Azevedo. Que ele tenha optado por um projecto cultural em vez do “universo Sonae” é algo que já diz muito da sua motivação para o cargo. Ao longo destes três anos, tenho sido testemunha do modo como Nuno Azevedo “abraçou a causa”, não sem alguns excessos: se compreendo que tenho dito que “Agora a Casa da Música é um diamante delapidado. Antes, era um diamante em estado bruto”, já me parece demasiado auto-congratulatório e mesmo injusto que, no balanço dos três anos, fundamentalmente tenha assinalado “o facto de termos conseguido inverter a ideia praticamente generalizada de que o projecto da Casa da Música era frágil” (“DN” de 14-04-07).
 
Mas, exemplo do seu empenho, ainda muito recentemente, na “Sábado” da passada semana, Nuno Azevedo usou o Direito de Resposta para detalhadamente e com números concretos contestar uma nota anterior de Pacheco Pereira que tinha dito estranhar “o desperdício” da brochura da programação de 2009 ter sido distribuída com o “Público” – comentário aliás sumamente hipócrita porque Pacheco começava por dizer “Tenho a maior das estimas pela Casa da Música e não me pronuncio sobre o mérito da sua programação, nem sobre o modo como anuncia os seus programas, a não ser quando estranho o desperdício”, sendo que a sua “maior das estimas” é incongruente pois que é inimigo jurado dos investimentos públicos na cultura (e foi o Estado que construiu a Casa da Música), e ninguém o imagina a assistir a um concerto – como a ver um espectáculo ou a ver um filme.
 
Mas por todas estas razões há também que fazer notar que, sendo Nuno Azevedo o administrador-delegado, os laços Casa da Música – Sonae estão em risco de se tornarem em ligações perigosas.
 
Não me choca nada que uma grande campanha promocional da Casa seja feita no “Público”, porque, apesar do seu triste declínio, o diário da Sonae.com é ainda de modo claro aquele que tem públicos que mais potencialmente são também os da Casa. Mas já me parece muito questionável que no piso térreo do edifício haja agora uma loja da Optimus e francamente indecoroso que entre os benefícios oferecidos pelo Cartão Amigo Casa da Música se conte “Entradas gratuitas do Continente online em compras superiores a € 75”, como se podia constatar na promoção inserida no “Ípsilon” da semana passada.
 
Por isso, para benefício geral, creio importante uma chamada de atenção.
 
 
 
 
* Também debalde tive esperanças que a constituição de uma tal fundação contribuísse para revitalizar no mesmo sentido, que legalmente é o que tem, a Fundação Centro Cultural de Belém, e acho que não se pode deixar de assinalar uma flagrante discrepância, mais outra, Lisboa-Porto, sendo que na primeira o Estado investe por inteiro ou quase, e na segunda é que faz parcerias e solicita mecenaticamente capitais privados.

 

A sonegação do mecenato

Está escrito o seguinte no Programa do Governo, de resto o programa com que o PS se apresentou ao eleitorado:
 
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo, importando retomar a trajectória de aproximação interrompida no passado recente. Ao mesmo tempo, o Governo fixa quatro objectivos complementares: a) desenvolver programas de cooperação entre Estado e autarquias, que estimulem também o crescimento da proporção de fundos públicos regionais e locais investidos na cultura; b) valorizar o investimento culturalmente estruturante, na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio (2007-2013); c) rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão; d) alargar a outras áreas e, em particular, ao funcionamento dos organismos nacionais de produção artística, o princípio de estabilização de um financiamento plurianual”.
 
Já nem vou falar da famosa meta de 1% do Orçamento de Estado a qual é mais é que óbvio não ser com este governo, e na presente situação,  referência nenhuma, nem a médio nem a longo prazo. Em todo o caso,  “Rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, era um objectivo de grande importância para as dinâmicas culturais, sabendo-se que tem havido uma preversidade intrínseca em captar os apoios mecenáticos para os grandes projectos, e designadamente para as próprias instituições públicas, em primeiro lugar colmatando os limites orçamentais do Ministério da Cultura.
 
Ora, na extraordinária página electrónica desse mesmo Ministério da Cultura, nessa em que o último comunicado data de Junho, está há muito em destaque um suposto “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural”, que de novo nada tem. Ao lado, muito discretamente, de modo quase oculto, quando na secção correspondente se cliqua em Estatuto, aí sim está a informação real, que é estranho ter passado tão despercerbida:“O Decreto-Lei n.º 74/99, que aprova o Estatuto de Mecenato, foi revogado, tendo os incentivos fiscais à Cultura sido incorporados no Estatuto dos Benefícios Fiscais (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro)”, isto é, no Orçamento de Estado.
 
O presente governo, em vez de “rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, fez a mais completa marcha a trás, como se pode verificar pelo clausado legal de Donativo, nos termos do Capítulo X – “Benifícios Fiscais”, Art.º 56- “Noção de Donativo”, D – “Dedução para efeitos do lucro tributável das empresas “, nº6, do O.E.:
 
“São considerados custos ou perdas de exercícios, até ao limite de 6/1000 do volume de volume de vendas ou dos serviços prestados [até 0,6%, n.b, não vá a dedução para efeitos tributáveis ser mais afectada], os donativos atribuídos às seguintes entidades:
a)      Cooperativas culturais, institutos e associações que prossigam actividades de investigação, excepto as de natureza científica, de cultura e de defesa do património histórico-cultural e do ambiente, e bem assim outras entidades sem fins lucrativos que desenvolvam acções no âmbito do teatro, do bailado, da música, da organização de festivais e outras manifestações artísticas e de produção cinematográfica, áudio-visual e lietrária;
b)      Museus, bibliotecas e arquivos históricos e documentais;..
 
Artº 87 -3 – São igualmente revogados: f) O Estatuto do Mecenato, aprovado pelo Decreto_lei nº74/99, de 18 de Agosto”.
 
 
 
Dir-se-á: o Mecenato é um Benifício Fiscal. Certamente que sim. Mas por alguma razão lhe é reconhecido um estatuto próprio, que estava legalmente consignado. Quando era antes preciso criar um quadro alargado de incentivos ao mecenato, com o fim de possibilitar cada vez mais dinâmicas próprias e menos dependentes de apoios estatais; quando era urgente e expresso no próprio Programa do Governo a necessidade de consideração de apoios também a “projectos culturais de pequena e média dimensão”; quando era sim preciso quebrar o ciclo viciado pelo qual até agora, e basicamente, o mecenato tem sido, no fundamental, um complemento financeiro das actividades estatais e não tanto um estímulo a acção autómonas; quando tudo isso era imperioso, o enquadramento legal foi remetido para o regime anual dos Orçamentos de Estado, colocado a níveis em que só pode em termos reais ser minimamente significativo por parte de muito grande empresas.
 
E é facto da mais patente hipocrisia política que na página electrónica do Ministério da Cultura esteja em destaque um pretenso “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural” quando este governo procedeu sim ao fim do Enquadramento do Mecenato Cultural.

O BCP, a sua medalha de mérito e o mecenato dela

 

 

Em plena tormenta, o BCP teve pelo menos um momento de reconhecimento, uma comenda mesmo.
 
No passado dia 12, a ministra da Cultura, Profª Isabel Pires de Lima, teve à noite uma agenda preenchida: antes de se dirigir à Gulbenkian, para a ante-estreia de Cristovão Colombo – O Enigma de Manoel de Oliveira, nos 99 anos do cineasta, foi à Gala do Millennium BCP, “Mecenas Exclusivo do Teatro Nacional de São Carlos”,  galardoar a instituição bancária com a medalha de Mérito Cultural, “pelo seu contributo para o reforço do tecido cultural e a formação de públicos em Portugal” – e essa foi a razão, de imperiosa agenda, pela qual ficou adiada para o dia seguinte a inauguração da nova livraria Byblos. Com o acto de medalha, quis o Ministério da Cultura, esclareceu o próprio em comunicado, prestar uma “simbólica homenagem a uma entidade empresarial privada que coloca a Cultura no centro da sua participação cívica”.
 
O Millenium BCP constitui um caso particularmente relevante de mecenato, nalguns casos até com uma presença que, embora por responsabilidades compartilhadas, se torna agressiva: que páginas de cultura e crítica no caderno Actual do “Expresso” tenham o patrocínio de uma instituição financeira é facto por demais insólito. Ainda assim, é óbviamente mais que desejável a existência de  mecenas, e não só por motivos financeiros – tudo o que fôr no sentido de diminuir a estrita dependência do aparelho burocrático do Ministério da Cultura é auspicioso. E os casos prosseguidos e bem sucedidos de mecenato devem tanto mais ser assinados quanto não são de votar ao esquecimento contra-exemplos, como o fim dos Concertos PT/ Em Órbita, que eram um sucesso, e que a empresa então presidida por Miguel Horta e Costa decidiu abruptamente acabar.
 
Mas a comenda, há que dizê-lo, teve o seu quê de hipócrita, e tanto mais nas circunstâncias em que foi entregue, a Gala do “Mecenas Exclusivo”.
 
O Millenium BCP é o mecenas principal de actividades do Ministério da Cultura, e tanto mais o é este ano, num apoio que atinge os 2  milhões de euros: a 1 milhão para o São Carlos e 600 mil euros para o Museu Nacional de Arte de Antiga e 200 mil para o Soares dos Reis, objectos de protocolos, acrescem 200 mil euros, mais outros 200 mil a serem entregues em Janeiro, para a “jóia da coroa” de Isabel Pires de Lima, a exposição do Hermitage.
 
Sem o apoio do Millenium BCP, o regular funcionamento do São Carlos, como de resto o novo dinamismo que o Museu de Arte Antiga teve durante a direcção de Dalila Rodrigues, seriam sériamente afectados. Isso não obsta a que a fórmula de “mecenatos exclusivos” para as grandes instituições públicas, criada na parte final do consulado de Manuel Maria Carrilho, dando ainda estabilidade de financiamento, seja bastante problemática, quando não seriamente contestável.
 
Até por ter ocorrido no São Carlos o exemplo original convirá atentar ao caso. Em 1993, tinha sido criada a Fundação de São Carlos, entidade de direito privado e utilidade pública, em que ao Estado estavam associadas empresas como a RTP, RDP e PT. É um facto que a Fundação estava falida e era largamente uma entidade fictícia. Ainda assim, a “re-estatização” do Teatro, pelo Decreto-Lei 88/98 (que vigorou até à recente criação da aberrante OPART E.P.E. pelo Decreto-Lei nº160-2007 de 27 de Abril), de resto no momento em que a tendência de grande parte dos teatros congéneres europeus ia no sentido precisamente da transformação em Fundações, colocava problemas entre a exacerbada retórica do diploma e as limitações de dotação orçamental, ou seja, a necessidade de, não obstante, encontrar parceiros externos. Carrilho encontrou esse parceiro no BCP e o mecenato teve um preço – a gala anual reservada do “mecenas exclusivo”, isso que é como a récita comprada por uma empresa, verdadeira singularidade que desconheço em qualquer outro teatro público de ópera.
 
Ressalvando devidamente que o Millenium BCP é um caso relevante de actividade mecenática, não deixa de ser deveras extraordinário que a senhora ministra da Cultura tenha ido medalhar a instituição com o Mérito Cultural designadamente “pelo seu contributo para a formação de públicos em Portugal” numa récita para público exclusivo e, de resto, numa instituição, como o Teatro Nacional de São Carlos, onde a formação ou renovação de públicos vai sendo nenhuma, antes pelo contrário (e sei do que falo, porque também frequento outros teatros de óperas), e isto até quando o superintendente-geral, o secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, tem como tese de doutoramente um estudo sobre “O Teatro de São Carlos na mudança dos sistemas sociocomunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias” – a precisar por certo de urgente opúsculo complementar.
 
Mas o o mais grave, e que cabe assinalar à margem desta medalha de Mérito Cultural, é que as políticas governamentais no sentido do enquadramento do mecenato estão cada vez mais afunilada com um único fito: conseguir dos privados as verbas complementares às próprias actividades do Ministério da Cultura. E tanto mais é assim quanto, quase sem ninguém se aperceber, e contrariando uma vez mais as perspectivas enunciadas no próprio programa do Governo, sucedeu antes ter sido revogado o Estatuto do Mecenato. A ministra da Cultura medalhou o “mecenas exemplar” quando neste momento, à face da lei, “mecenas” é coisa que não existe.