A ficha do concerto com que o CCB assinalou o centenário do nascimento de Messiaen (no preciso dia em que ocorria) é inusitada, e desde logo indicadora de algumas questões: certo, o Quarteto para o fim do Tempo é uma obra imensamente sugestiva, mas será pertinente e mesmo legítimo enquadrá-la pela leitura de poemas e um dispositivo cenográfico?
Admitamos o seguinte, pelo menos enquanto interrogação: sabendo nós que a obra foi composto e estreado num campo de prisioneiros de guerra, podemo-nos abstrair do mais geral conhecimento dos factos dessa guerra, do nazismo e do processo concentracionário?
Uma coisa é a indispensável memória histórica, outra é a mescla de factos apesar de tudo de ordem diferente, e tanto mais a mescla envolvendo uma concreta apresentação de uma obra como a de Messiaen, eventualmente configurando um abuso.
Isto não significa de maneira nenhuma uma “suspensão” da memória do Holocausto – só que ela é no caso deslocada, de modo mutuamente infrutífero, para o Quator pour la fin des Temps e para a concreta memória do universo concentracionário e de extermínio, incluindo as manifestações artísticas que ainda ocorreram nesse terrível universo.
O Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A do campo de prisioneiros de Görlitz, e isso é parte da sua aura própria. Mas, meses depois, a 22 de Junho, já libertado, Messiaen apresentava a obra no Théâtre des Marthurins em Paris. O que eu desconhecia, e só fiquei a saber por um artigo no “Le Monde” da passada sexta-feira, foi que em Paris, durante a ocupação, qual acto cultural de “resistência”, foram apresentadas mais obras compostas por prisioneiros de guerra, tendo-se realizado inclusive um concerto dirigido por Charles Munch, só com obras originadas nessas circunstâncias, e tendo mesmo a SACEM, a sociedade de autores, aberto um concurso para os autores e compositores prisioneiros.
Radicalmente diferente foi a sorte de compositores como Viktor Ullmann, Gideon Klein, Erwin Schulhoff ou Hans Krása, vários deles tendo passado pelo campo de Theresienstadt, em que estavam internados sobretudo artistas e que os nazis utilizaram também para “proporcionarem” visitas de organizações como a Cruz Vermelha, e que todos esses acabaram vítimas do extermínio.
Aliás, o CCB vai apresentar em Fevereiro um ciclo de relevo, “O Nazismo e cultura: confrontações”, que incluirá nomeadamente a ópera que Ullmann escreveu no cativeiro, O Imperador da Atlântida. Acontece que fazer da apresentação do Quator pour la fin des Temps, obra de crença e de esperança, uma antecipação desse ciclo – o que objectivamente foi o programa – é um abuso histórico e foi também um abuso estético.
Falando da arte “depois de Auschwitz”, eu próprio tenho incorrido no lapso de citar recorrentemente Celan, omitindo Nelly Sachs, quando afinal desmentiram ambos o célebre ditame de Adorno de que não seria mais possível poesia depois de Auschwitz. É insólito que no programa figurassem os poemas de Nas Moradas da Morte, traduzidos por João Barrento, que Beatriz Batarda leu, poemas impregnadas da terrível experiência do Holocausto, da condição judaica diria mesmo, e não houvesse qualquer apresentação da poetisa, Prémio Nobel da Literatura de 1966, e desse livro, Den Wohnungen des Todes, publicado logo em 1947. Mas mais: sendo que por uma qualquer razão o evento teve lugar não no Pequeno Auditório do CCB, como seria curial, mas no Palco do Grande Auditório, dificilmente se conseguia ouvir Beatriz Batarda.
Mais grave ainda foi que Paulo Nozolino, um fotógrafo e artista que particularmente estimo, se deixou enredar nas teias desta deslocada e abusiva “sugestão concentracionária”, para que afinal foi ssolicitado. O seu “espaço cénico” eram fotografias de prisioneiros que imediatamente identificávamos como sendo de campo de concentração, em flagrante contraste com as características da obra musical e, pelo modo como suscitavam a atenção, limitativas da concentração na escuta.
Mas também a execução musical esteve longe de ser feliz. O Schostakovich Ensemble, criado pelo pianista Filipe Pinto-Ribeiro fez jus ao seu nome. O exacerbamento dramático, a pulsação e o “rubato”, por vezes mais se diriam por sua vez sugerir, pesem ainda as diferenças de “instrumentarium”, o Quarteto nº 8 de Chostakovich, com o violoncelista Pavel Gomzkiavov e sobretudo a violinista Priya Mitchell em exagero de “vibrato”. Apenas o conhecido clarinetista Pascal Moraguès, “et pour cause…” (é clarinete principal da Orquestra de Paris e professor no Conservatório Nacional Superior de Música daquela cidade) teve as cores que a obra solicita.
Tantos talentos estimáveis para uma tão infeliz e abusiva concepção do concerto e sua realização, bem ao estilo de alguma “interdisciplinaridade” a despropósito que vai sendo característica da programação do CCB na era Mega Ferreira, de resto para um público muito selecto. Mas, e Messiaen? Antes do mais, não era ele que era suposto celebrar-se?
NB – Para ser justo, devo referir que, hoje mesmo em Paris, um dos intérpretes por excelência de Messiaen, o pianista Pierre-Laurent Aimard, apresentou no Théâtre des Champs-Elysées um programa na aparência semelhante em que a execução do Quator pour la fin des Temps era precedida de leitura de extractos de Sem Destino, obra de um sobrevivente dos campos de concentração, o húngaro Imre Kertész. Mas ao contrário do “envolvimento” poético e fotográfico do Quator no CCB, esse programa de Aimard intitulava-se “Captivités – L’art au prises avec les camps”, e note-se o plural, referido portanto a situações diferentes, e além da obra de Messiaen incluía outras de Schönberg, Ligeti e Kurtag, um programa de alusões e confrontações em suma, não de sugestão directa.
Chegam-me informaçãos que ontem o filme Afraid to Die de Yasuro Mazumuro - que aliás tem o título original de Karakkare yarô -, em que Yukio Mishima é o protagonista, foi passado no CCB em dvd, sem que o público tivesse sido previamente informado, numa sala sem condições, e com preço de entrada de 3 €.
Sim senhor, muto respeito pelo público há nas nas megas-realizações culturais desse espaço cultural público - ou estaremos também esquecido do episódio, para mais malcriado, do abrupto cancelamento da Festa da Música?!
Desde que António Taurino Mega Ferreira assumiu as funções de Presidente do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém, a sua preocupação tem sido uma: programar e programar a seu gosto.
As questões, no que supõem de confusão entre as funções de Presidente de um CA e um Administrador encarregado da programação, como até então sempre houvera, no modo como se exerce uma “política do gosto” ou como o Presidente, homem inegavelmente brilhante, se rodeia contudo de uma corte de medíocres, são demasiados graves – e por isso as abordarei em futuro próximo.
Por agora, faço notar que uma das inovações de Mega, em si mesmo interessante, foi passar a dedicar ciclo a escritores – obviamente escolhendo favoritos seus, Paul Bowles, Thomas Bernhard e agora Yukio Mishima, mas não são essas escolhas, amplamente justificáveis para além das marcas da “política do gosto”, que estão em causa.
Sucede, todavia, que com tanta presunção, vaidade e mesmo gabarolice, há lapsos surpreendentes – hoje mesmo, por exemplo.
O dia de hoje é dedicado ao cinema, com três filmes, Afraid to Die de Yasuro Mazumuro, em que Mishima é protagonista, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, de Lewis John Carlino Carlino, a partir do texto homónimo do escritor japonês, e o ensaio biográfico Mishima: A Life in Four Chapters de Paul Schrader.
Ora, para quem se interesse pela importante relação de Mishima com o cinema, ou, tout court, quem se interesse por Mishima, logo nota que afinal a peça essencial está ausente: Yokoku/Patriotismo, o filme que o próprio realizou em 1966, dado como perdido durante muito tempo, mas cujo negativo foi reencontrado em 2005 e que, inclusive, já está editado em dvd pela Criterion.
Trata-se uma peça tanto mais essencial quanto, abordando a rebelião militar de 1936, é premonitória da tentativa de golpe de estado do próprio Mishima e da sua escolha de morte por seppuku.
Eu sei bem, por experiência própria, quanto por vezes pode ser difícil obter a cópia de um filme para exibição. Mas sucede num caso como este que os propósitos do ciclo dentro do ciclo se reduzem virtualmente a um somatório quanto falta a peça essencial.
Mais: quer no anúncio do CCB, quer do texto de apresentação de João Lopes (que, é-me penoso dizer isto, se tornou num escrevinhador sobre cinema com fórmulas feitas e ligeireza, perdido o gosto da descoberta), é completamente ignorada a existência de Patriotismo.
Tanta presunção, à la Mega, son excelence, e afinal tão pouca investigação. Assim andam “entregues” mega-instituições culturais públicas!
Salvaguarde-se que, a abrir a temporada, em Setembro/Outubro, haverá o Siegfried, prosseguindo a encenação da Tetralogia de Wagner por Graham Vick – e, cabe notar, espera-se apenas que, como inicialmente previsto, O Anel se venha de facto a concluir em temporada futura com a representação integral sucessiva da Tetralogia, o que nunca sucedeu em nenhuma das vezes que foi encenada em São Carlos, espera-se, repito, que haja as devidas garantias.
Feita a ressalva, o panorama aproxima-se de um desastre generalizado e da maior incúria.
Sobre esta próxima temporada paira claramente a sombra do ex-secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, que de resto, em vários textos no “Público” e uma resposta ao actual ministro no “Expresso”, tem dados mostras suficientes de que não se dá por vencido, antes que continua a ser o ideólogo.
Acha ele, achou ele sempre, que em ópera se dá demasiada importância aos cantores?! Pronto, passou-se à prática: salvaguardado o Siegfried, repito, cantores de distinção não os há, excepto Elisabete de Matos em arriscada estreia no papel titular da Salomé.
Mas mais: sabe-se como o modelo que o ex-secretário de Estado achou frutífero foi o de Carlos Fragateiro no Teatro da Trindade, nomeando-o mesmo director do Teatro Nacional D. Maria, de resto tendo-se aquele mantido em funções no Trindade, em clara contravenção da exclusividade exigida por lei. Escrevi eu isso mesmo, e demitiu-se em seguida Fragateiro do Trindade, quando aí anunciou umas Bodas de Fígaro encenadas por Maria Emília Correia. Pois a conexão Vieira de Carvalho-Fragateiro-Dammann confirma-se agora com um Don Giovanni encenada pela mesma Maria Emília Correia. Lamento, por toda a consideração que tenho por ela, mas isto é puro disparate, além de revelador das linhas que se cosem.
Mas mais: ao senhor Christoph Dammann escapam os requisitos musicais para ser director de um teatro de ópera, e vou dar três exemplos.
Ponto 1) O aspecto mais catastrófico da sua gestão da temporada anterior foi a escolha de maestros. Agora já não há sequer a possível desculpa do pouco tempo disponível para escolhas e contratações até porque, satisfeito, Dammann resolve repetir.
Na Clemenza di Tito de Mozart houve aspectos infelizes na encenação de Joaquim Benite (os figurinos de Filipe Faísca, o “parti-pris” do estatismo do coro) mas também outros pertinentes (por exemplo, a opção pela monumentalidade). Lamentável sim, além de uma cantora que confundiu Vittelia com a Santuzza da Cavalleria Rusticana, foi a direcção musical de Johannes Start, totalmente privada da energia mozartiana. Pois o dito Start volta, e de novo para dirigir Mozart, e nada menos que o Don Giovanni.
Ponto 2) O senhor Dammann achou interessante retomar uma prática do século XVIII, com um intermezzo bufo interpolado numa opera seria. Esquece-se que os tempos de duração praticados eram muitíssimos mais longos e que, digamos, os “tempos de recepção” também eram outros.
Mas, vai daí, em Agrippina, a mais esplêndida ópera do período italiano de Haendel, vai ser interpolado Intermezzo, ópera encomendada a Nuno Côrte-Real, com libreto de José Luís Peixoto. Ora, não só isso obrigará a cortes ainda mais drástico na ópera de Haendel, como este tipo de encomenda de intermezzo só teria sentido se os respectivos autores dominassem os códigos dos géneros operáticos para com eles jogarem – e não há o menor indício que isso suceda com Peixoto e Côrte-Real.
Ponto 3) Para mais Agrippina requer quatro ou cinco grandes cantores; nem um só dos anunciados é de relevo. E pior: Dammann tem uma tal noção da interpretação historicamente informada que dispensa um agrupamento com instrumentos de época e põe a obra a ser executada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, tal como aliás, num concerto, outra obra-prima barroca, o Te Deum de Charpentier.
Além de tudo o mais, há a dizer que a informação do director do teatro se revela escassa e parcial.
Anuncia-se finalmente um Estúdio de Ópera no São Carlos. Acho importante, gostaria de saber mais, e é uma das questões, tal como a da nefasta OPART EPE que deixo para próximos textos. Mas nesse espectáculo do Estúdio de Ópera, além do já citado The Telephone de Menotti encenado por Karoline Gruber, a tal que depois de Das Märchen pelos vistos aqui também tomou residência, há Comedy on The Bridge do compositor checo Bohuslav Martinu encenada por Paula Gomes Ribeiro. E a que propósito? Porque se desconsideram, por exemplo, os casos mais prometedores revelados nos dois cursos de encenação de ópera da Gulbenkian? Será porque Gomes Ribeiro integra o CESEM, o Centro de Estudos de Estética e Sociologia da Música do Prof. Vieira de Carvalho?
Não sabe o director de teatro das temporadas de outras instituições em Lisboa? Porquê celebrar o centenário de Messiaen com uma interpretação da Turangalîla-Symphonie quando já houve uma no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian este ano, e não faltam outras grandes obras do autor que era importante dar a ouvir? Porquê aceder ao capricho pessoal do presidente, director-geral e intendente de programação do CCB, António Mega Ferreira, que resolveu achar-se também decisor musical, e fazer de novo um Fidelio de Beethoven em versão de concerto?
Tudo isto demonstra, além de graves incúrias, desde logo do director Christoph Dammann, esta espécie de “domínios privados” em que transformaram as instituições culturais: são as opções de Mário Vieira de Carvalho ou os “contributos” de Fragateiro e Mega Ferreira. E é um disparate anunciado, e o plano inclinado do vazio de perspectivas no São Carlos.
(Como disse, deixarei para textos posteriores mais em concreto as questões do Estúdio de Ópera e da OPART)
Na sua edição de hoje, pág. 27, o jornal “Público” dá notícia de que “O ministro da Economia e Inovação, Manuel Pinho, revelou sábado que o projecto arquitectónico do novo Museu Nacional dos Coches, a construir na zona de Belém, em Lisboa, está concluído e vai ser apresentado publicamente em Julho. ‘Vai ser uma obra arquitectónica marcante’, comentou o ministro durante uma visita ao Algarve [ao ALLgarve?]. Questionado pela agência Lusa sobre a data do arranque da construção do museu, projectado pelo arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, Manuel Pinho afirmou que as obras deverão começar até ao final do ano. ‘Já vi a maqueta final e gostei muito’, comentou, elogiando a qualidade do trabalho do arquitecto que em 2006 recebeu o mais importante galardão mundial da arquitectura, o prémio Pritzker.”
Essa é uma das tarefas concretas da Sociedade Frente do Tejo, presidida por um convertido ao socratismo e ex-mandatário da candidatura municipal de António Costa, José Miguel Júdice, embora, em abono da verdade, para o quadro ser completo, não falte também a orientação de António Mega Ferreira, que passou directamente de director de campanha da candidatura de Mário Soares para Presidente do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém, em que aliás, ao longo deste ano, tem seguido uma político auto-comemorativa do 10 º aniversário da EXPO-98, não hesitando sequer em reescrever história para ir forjando a sua própria narrativa.
«Somos um país muito merdoso!”, afirmava o ano passado Júdice. “Quem governa tem de se encher de paciência, tem às vezes de ter vergonha de quem está a governar. Mas tem de aguentar. Porque ninguém é obrigado a governar. Quem foi para lá foi porque quis”.. As palavras fiquem com quem as prefere, já que “vergonha” certamente é algo de que Júdice não sente falta.
E, claro, no meio disto, continua desaparecido na Ajuda quem é o titular nominal da Cultura.