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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Messiaen - X, discos - II, Quator - III

 

 

 

Messiaen
Quator pour la fin du Temps
Erich Gruenberg, Gervaise de Peyer, William Pleeth, Michel Béroff
EMI

 

 

 

Já agora, cabe assinalar o reaparecimento no mercado de umas das grandes interpretações do Quator pour la fin du Temps. Com efeito, na 20ª série de (re)edições dos “Great Recordings of the Century” da Emi, marcando aliás o 10º aniversário desse selo de prestígio, surge uma interpretação do Quator gravada em 1968, e “liderada” pelo então jovem Michel Béroff, à época recém-laureado do Concurso Messiaen, com um curioso e talvez algo extravagante “trio” de músicos britânicos, Erich Gruenberg, William Pleeth e Gervaise de Peyer – este o mais célebre dos clarinetistas incluídas na discografia da obra, e todavia talvez destes quatro intérpretes aquele cuja adequação é mais discutível.
 
Em qualquer caso, aí está nos escaparates, e é sem dúvida uma das três ou quatro grandes interpretações da obra, como haverá ocasião de analisar num sobrevoo dessa discografia. Em complemento, uma obra chave, Chronochromie, numa interpretação dirigida por Antal Dorati, com a Orquestra da BBC – e se bem que haja claramente uma interpretação superior desta obra, a de Boulez com a Orquestra de Cleveland, a aproximação de duas obras tão eminentemente fundadas também nas singularidades de cores, da “chromie”, não deixa de ser interessante.

 

Messiaen - IX, discos - I

 

 

Messiaen
La Transfiguration, Couleurs de la cite celeste, Oiseaux exotiques, Visions de l’Amen, Des Canyons aux étoiles…
Reinbert de Leeuw, Yvonne Loriod, Pierre Boulez…
6 cds Montaigne Naïve, dist. Andante
 
 
O centenário de Messiaen deu origem à publicação de algumas volumosas edições: a “Complete Edition” da Deutsche Grammophon (32 cds), a “Anniversary Box” da Emi (14 cds) ou duas caixas da Decca, “Orchestral and Chamber Works and Song Cycles” (6 cds) e “Piano and Organ Music” (7 cds). Nenhuma dessas se encontra no mercado português. Há ainda, inevitavelmente, uma edição da recordista das caixas super-económicas, a Brilliant Classics, muito parcial, com as integrais das obras de órgão e piano mais as melodias (17 cds) e uma caixa de “Orchestral Works” da Hanssler (8 cds), que essa ainda deve aparecer no mercado nacional. Mas diga-se, de resto, que a discografia de Messiaen, numerosa e com escolhas de qualidade para todas as suas obras de relevo, não o justifica como compositor a adquirir “de atacado”.
 
No mercado português encontra-se sim uma valiosa caixa de seis cds dos discos Montaigne, ou quatro cds dois dos quais duplo, de grande relevo – e em relação à qual, de qualquer modo, existem os discos separados.
 
Ausentes estão as duas obras mis célebres, o Quator pour la fin du Temps e a Turangalîla-Symphonie, e isso, que pode parecer uma falta, é indirectamente um valor acrescentado a esta caixa. Com efeito essas duas obras, a Turangalîla sobretudo, têm por si só discografias de relevo (que aliás a seu tempo se comentará), e como tal esta caixa não colide com essas nem com as mais significativas obras para piano, os Vingt regards sur l’Enfant Jésus, ou para órgão, o Livre d’orgue ou o Livre du Saint-Sacrement.
 
Os discos Montaigne são o repositório de registos de concertos no Théâtre des Camps Elysées em Paris (o local da famosa estreia da Sagração da Primavera) situados na avenida com o nome do filósofo, e dedicam-se à publicação de obras do século XX, e ora também XXI. Messiaen não podia estar ausente.
 
Quanto ao roteiro é o seguinte: 1) La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ, a obra que a Gulbenkian encomendou a Messiaen, estreada a 7 de Junho de 1969 no Coliseu dos Recreios, pelo Coro e Orquestra da Rádio de Hilversum, direcção de Reinbert de Leeuw disco duplo; 2) Sept haikai, Couleurs de la cité celeste, Un Vitrail et des oiseaux e Oiseaux Exotiques por Yvonnne Loriod e o Ensemble Intercontemporain dirigido por Pierre Boulez; 3) Visions de L’Amen por Maarten Bon e Reinbert de Leeuw, e 4) Des Canyons aux étoiles… pelo Asko Ensemble e Schönberg Ensemble, direcção de De Leeuw, disco duplo.
 
Embora o conjunto seja bastante apreciável, não deixa de ser desigual, pelo que, se a caixa tem um respeitável valor em si mesma, é curial ter presente que há a possibilidade de obter separadamente os discos.
 
Aquele que menos se impõe, face à proeminência dos registos dos próprios Messiaen e Loriod e de Martha Argerich e Alexandre Rabinovitch, é o das Visions de l’Amen. Creio também, no tocante a Des Canyons aux étoiles…, que não me canso em sublinhar ser uma das obras maiores do autor, que a prodigiosa sugestão da vastidão dos espaços é mais bem lograda na integração de Myung-Wha Chung (DG) que nesta de De Leeuw. Inversamente penso agora que a interpretação de De Leeuw da Transfiguration se impõe como aquela que põe em relevo os traços mais originais e caracteristicamente “messiaenescos”, mais que as de Dorati e Chung. Enfim, o disco com Yvonne Loriod, a mulher do compositor, e o Ensemble Intercontemporain dirigido por Boulez é certamente uma das grandes peças da discografia do autor, com interpretações antológicas das Couleurs de La Cité Celeste e de Oiseaux exotiques.

Duplo centenário (Messiaen - VIII, Elliot Carter - II)

 

 

 
Olivier Messiaen
Oiseaux Exotiques, Chronochromie, Et expecto ressurrectionem mortuorum
Elliot Carter
Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto, Three Occasions for Orchestra
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Stefan Asbury, Franck Ollu
Casa da Música, 12 e 13 de Dezembro
 
 
Olivier Messiaen nasceu a 10 de Dezembro de 1908, Elliot Carter um dia depois. Ao longo do ano, os respectivos centenários têm sido assinalados, compreensivelmente com maior incidência o do compositor francês. Não obsta a que este dia único de intervalo entre o nascimento de um e de outro sugeria também a possibilidade de uma celebração conjunta.
 
É um outro activo a assinalar à Casa da Música ter organizado um programa de concertos comemorativo deste “duplo centenário”, sendo que no caso o facto é assinalável mesmo no panorama internacional. Celebrar conjuntamente os dois compositores implica também as suas diferenças, muitas, e eventuais aproximações. Esse é um primeiro ponto. Um segundo diz concretamente respeito a estes concertos.
 
Uma das valias da Casa da Música, como amiúde tenho assinalado, é contar com a Orquestra Nacional do Porto e o Remix Ensemble como agrupamentos residentes. Já no programa “Música e Revolução” deste ano (o ciclo especial da Casa em torno da data do 25 de Abril, embora abordando latamente o conceito de “revolução), a que infelizmente não pude assistir, foram programados concertos tendo o Remix na 1ª parte e a ONP na 2ª, com “troca” de maestros, nesse caso mesmo os directores titulares de uma e outra formação, respectivamente Peter Rundel e Christopher König (em rigor na altura ainda maestro titular indigitado), ou seja Rundel, maestro do Remix, também dirigiu a ONP, e König, maestro da ONP, também dirigiu o Remix. Um mesmo procedimento, mas com maestros convidados, ainda que presenças regulares, foi seguido agora.
 
No concerto de dia 12, Asbury, que foi o primeiro director do Remix, dirigiu essa formação na 1ª parte com Oiseaux Exotiques de Messiaen e Tempo e Tempi e Réflexions de Carter e na 2ª parte Ollu dirigiu a ONP em Chronochromie, uma das mais importantes obras de Messiaen, finalmente em 1ª audição em Portugal. No concerto de dia 13, Ollu dirigiu o Remix em Asko Concerto de Carter* e na 2ª parte Asbury dirigiu a ONP em Three Occasions for Orchestra de Carter e Et expecto ressurrectionem mortuorum** de Messiaen.
 
Assim, além da eventual aproximação (e divergência) dos dois compositores, primeiro ponto, implicando também saber se o conjunto das obras de cada um apresentadas era representativo das respectivas personalidades musicais, isto é, a intencionalidade geral da proposta, o segundo ponto colocava questões de intencionalidades particulares no modo como, para realizar a proposta geral, se organizaram os quatro pares, dois compositores, dois concertos, dois maestros e duas formações. É preciso ter todos estes dados em conta para atender às particularidades do discurso crítico sobre este evento, sendo que não tem o menor sentido, num projecto tão carregado de intencionalidades, falar apenas de um ou de outro dos concertos, ou falar deles como eventos separados.
 
Parece-me indiscutível em primeiro lugar, que Messiaen teve uma presença muito mais representativa, pois que Oiseaux Exotiques, Chronochromie e Et expecto ressurrectionem mortuorum são três obras seguramente maiores, e pelo menos Chronochromie (senão Et expecto… também) uma das mais extraordinárias, e até de toda a música do século XX. Todavia também foi patente uma diferença de afinidades no tocante aos maestros.
 
Compara-se muitas vezes a Turangalîla-Symponie com a Sagração da Primavera de Stravinsky; o paralelo é no entanto erróneo. Se há obra de Messiaen que na sua extraordinária densidade se pode aproximar da de Stravinsky, essa é sim Chronochromie – e de resto também não lhe faltou o “escândalo” na estreia, que na tradição da narrativa da modernidade inaugurada justamente pela Sagração é parte integrante da “aura” de tão decisivas obras. Deduzir-se-á pelo exposto que esta obra portentosa não é nada fácil para uma orquestra e portanto também para quem dirige. Ollu optou pela segurança possível, mas ouvindo antes Oiseaux Exotiques como no dia seguinte Et expecto… ficou confirmado que Asbury é um maestro de muito maiores afinidades com Messiaen, deixando portanto a sensação que há a lamentar não ter sido ele a dirigir também Chronochromie – serão, compreensivelmente, dados inerentes a  uma programação exigente, em que havia de repartir as tarefas, mas o certo é também que a audição se ressentiu.
 
Extraordinária, apoteose desta dupla jornada, e um dos grandes momentos*** das celebrações de Messiaen em Portugal foi a interpretação de Et expecto ressurrectionem mortuorum. A obra exige meios de uma orquestra mas não é para orquestra, é sim para um alargado conjunto de quarenta instrumentistas de sopros e percussões metálicas. Asbury fez verdadeiramente a obra soar como vinda das profundezas (“Des profondeurs de l’abîme…”, 1º andamento) até à resplandecente glória – simplesmente inolvidável!
 
 
 
 
 
* Nessa 1º parte do 2º concerto foi também apresentada, em estreia, Quem chama?, obra da sueca Karin Rehnqvist, que neste ano do “Focus Nórdico” foi na Casa da Música “compositora associada” – obra a que ainda farei uma referência.
 
** Et expecto… tinha sido estreado em Portugal no passado dia 19 de Março pela Orquestra Metropolitana de Lisboa dirigida por Michael Zilm. Não tendo escrito na altura, ainda retomarei esse concerto, bem como a Turangalîla-Symphonie pela Orquestra de Baden-Baden dirigida por Sylvain Cambreling, a 29 de Janeiro, no Ciclo das Grandes Orquestras da Gulbenkian, numa rememoração deste “ano Messiaen”
 
*** O programa na Casa da Música incluiu também, além do Quator pour la fin du Temps, antes destes concertos, as Visions de L’Amen para dois pianos e L’Ascension, na versão para órgão, que não ouvi.  

 

Uma concepção abusiva (Messiaen - VII, Quator - II)

 

 

Messiaen
Quarteto para o fim do Tempo
Schostakovich Ensemble
Poemas de Nelly Sachs ditos por Beatriz Batarda
Espaço Cénico Paulo Nozolino
CCB, 10 de Dezembro
 
 
A ficha do concerto com que o CCB assinalou o centenário do nascimento de Messiaen (no preciso dia em que ocorria) é inusitada, e desde logo indicadora de algumas questões: certo, o Quarteto para o fim do Tempo é uma obra imensamente sugestiva, mas será pertinente e mesmo legítimo enquadrá-la pela leitura de poemas e um dispositivo cenográfico?
 
Admitamos o seguinte, pelo menos enquanto interrogação: sabendo nós que a obra foi composto e estreado num campo de prisioneiros de guerra, podemo-nos abstrair do mais geral conhecimento dos factos dessa guerra, do nazismo e do processo concentracionário?
 
Uma coisa é a indispensável memória histórica, outra é a mescla de factos apesar de tudo de ordem diferente, e tanto mais a mescla envolvendo uma concreta apresentação de uma obra como a de Messiaen, eventualmente configurando um abuso.
 
Isto não significa de maneira nenhuma uma “suspensão” da memória do Holocausto – só que ela é no caso deslocada, de modo mutuamente infrutífero, para o Quator pour la fin des Temps e para a concreta memória do universo concentracionário e de extermínio, incluindo as manifestações artísticas que ainda ocorreram nesse terrível universo.
 
O Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A do campo de prisioneiros de Görlitz, e isso é parte da sua aura própria. Mas, meses depois, a 22 de Junho, já libertado, Messiaen apresentava a obra no Théâtre des Marthurins em Paris. O que eu desconhecia, e só fiquei a saber por um artigo no “Le Monde” da passada sexta-feira, foi que em Paris, durante a ocupação, qual acto cultural de “resistência”, foram apresentadas mais obras compostas por prisioneiros de guerra, tendo-se realizado inclusive um concerto dirigido por Charles Munch, só com obras originadas nessas circunstâncias, e tendo mesmo a SACEM, a sociedade de autores, aberto um concurso para os autores e compositores prisioneiros.
 
Radicalmente diferente foi a sorte de compositores como Viktor Ullmann, Gideon Klein, Erwin Schulhoff ou Hans Krása, vários deles tendo passado pelo campo de Theresienstadt, em que estavam internados sobretudo artistas e que os nazis utilizaram também para “proporcionarem” visitas de organizações como a Cruz Vermelha, e que todos esses acabaram vítimas do extermínio.
 
Aliás, o CCB vai apresentar em Fevereiro um ciclo de relevo, “O Nazismo e cultura: confrontações”, que incluirá nomeadamente a ópera que Ullmann escreveu no cativeiro, O Imperador da Atlântida. Acontece que fazer da apresentação do Quator pour la fin des Temps, obra de crença e de esperança, uma antecipação desse ciclo – o que objectivamente foi o programa – é um abuso histórico e foi também um abuso estético.
 
Falando da arte “depois de Auschwitz”, eu próprio tenho incorrido no lapso de citar recorrentemente Celan, omitindo Nelly Sachs, quando afinal desmentiram ambos o célebre ditame de Adorno de que não seria mais possível poesia depois de Auschwitz. É insólito que no programa figurassem os poemas de Nas Moradas da Morte, traduzidos por João Barrento, que Beatriz Batarda leu, poemas impregnadas da terrível experiência do Holocausto, da condição judaica diria mesmo, e não houvesse qualquer apresentação da poetisa, Prémio Nobel da Literatura de 1966, e desse livro, Den Wohnungen des Todes, publicado logo em 1947. Mas mais: sendo que por uma qualquer razão o evento teve lugar não no Pequeno Auditório do CCB, como seria curial, mas no Palco do Grande Auditório, dificilmente se conseguia ouvir Beatriz Batarda.
 
Mais grave ainda foi que Paulo Nozolino, um fotógrafo e artista que particularmente estimo, se deixou enredar nas teias desta deslocada e abusiva “sugestão concentracionária”, para que afinal foi ssolicitado. O seu “espaço cénico” eram fotografias de prisioneiros que imediatamente identificávamos como sendo de campo de concentração, em flagrante contraste com as características da obra musical e, pelo modo como suscitavam a atenção, limitativas da concentração na escuta.
 
Mas também a execução musical esteve longe de ser feliz. O Schostakovich Ensemble, criado pelo pianista Filipe Pinto-Ribeiro fez jus ao seu nome. O exacerbamento dramático, a pulsação e o “rubato”, por vezes mais se diriam por sua vez sugerir, pesem ainda as diferenças de “instrumentarium”, o Quarteto nº 8 de Chostakovich, com o violoncelista Pavel Gomzkiavov e sobretudo a violinista Priya Mitchell em exagero de “vibrato”. Apenas o conhecido clarinetista Pascal Moraguès, “et pour cause…” (é clarinete principal da Orquestra de Paris e professor no Conservatório Nacional Superior de Música daquela cidade) teve as cores que a obra solicita.
 
Tantos talentos estimáveis para uma tão infeliz e abusiva concepção do concerto e sua realização, bem ao estilo de alguma “interdisciplinaridade” a despropósito que vai sendo característica da programação do CCB na era Mega Ferreira, de resto para um público muito selecto. Mas, e Messiaen? Antes do mais, não era ele que era suposto celebrar-se?
 
 
 
NB – Para ser justo, devo referir que, hoje mesmo em Paris, um dos intérpretes por excelência de Messiaen, o pianista Pierre-Laurent Aimard, apresentou no Théâtre des Champs-Elysées um programa na aparência semelhante em que a execução do Quator pour la fin des Temps era precedida de leitura de extractos de Sem Destino, obra de um sobrevivente dos campos de concentração, o húngaro Imre Kertész. Mas ao contrário do “envolvimento” poético e fotográfico do Quator no CCB, esse programa de Aimard intitulava-se “Captivités – L’art au prises avec les camps”, e note-se o plural, referido portanto a situações diferentes, e além da obra de Messiaen incluía outras de Schönberg, Ligeti e Kurtag, um programa de alusões e confrontações em suma, não de sugestão directa.

 

A eternidade sensível (Messiaen - VI, Quator - I)

 

Messiaen
Quarteto para o fim do Tempo
Steven Osborne, piano, Viviane Hagner, violino, Alban Gerhardt, violoncelo, Kari Kriokku, clarinete
Gulbenkian, 1 de Dezembro
 
Pode o público ser sensível à fé que anima e inspira um criador artístico, um compositor no caso? Não me parece possível dar uma resposta genérica, desde logo porque esse “público” é composto de concretos indivíduos e haverá crentes, agnósticos e ateus, e inclusive crentes de outras confissões. Mas creio que a questão é inevitável a propósito de Messiaen e nomeadamente do Quator pour la fin des Temps.
 
Não havendo resposta genérica posso pois responder por mim dizendo que, para o agnóstico que sou, Messiaen é, com Bach e Bruckner, um dos três compositores que sinto sem dúvida animados por uma “transcendência”. Mas porque, por uma lado, coloquei genericamente a questão no campo artístico e, por outro, falei especificamente de Messiaen, direi então também que há um outro artista, um cineasta, Andrei Tarkovski, perante cujas obras sinto tão sensíveis sinais duma crença transcendente. Há por certo outros grandes cineastas transcendentais, Dreyer ou Bresson, mas se Tarkovski me toca de modo tão particular para o que aqui importa é porque os sinais de remissão para essa “transcendência”, a “presença” de uma outra ordem, os encontro também no modo como torna palpáveis as matérias sensíveis, os ícones, a lama, a água. Com Messiaen sucede-me é que as suas obras, pela miríade de cores, polirrítmias e imensidão do espaço sonoro, sugerem-me o que, extrapolando uma analogia cinematográfica, diria ser um “contracampo transcendental”, uma ordem não apenas da criação mas da Criação, no seu pleno sentido panteísta.
 
O Quator pour la fin du Temps (e já explicarei porque mantenho o título original em francês) é uma obra ímpar, extraordinária, plena de sugestões pelas suas características musicais e também pelas suas alusões programáticas referentes ao livro do Apocalipse. Mas é também uma obra rodeada de uma aura muito particular porque é difícil desconhecer que foi composta e estreada estava Messiaen prisioneiro de guerra no campo de Görlitz na Silésia. A sua específica instrumentação, piano, violino, violoncelo e clarinete, foi motivada por concretos músicos que estavam detidos nesse campo e pelos instrumentos disponíveis.
 
Talvez por auto-sugestão, Messiaen dissse que o Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A perante um público de 5.000 prisioneiros; contudo, segundo Étienne Pasquier, que tocou a parte de violoncelo, foram sim 200, número que se afigura mais provável (cf. Claude Samuel – Permanences de Messiaen – dialogues et commentaires,Actes Sud). Parco nas suas declarações sobre as circunstâncias concretas da composição Messiaen tão só confidenciaria: “Quando eu estava prisioneiro, a falta de comida provocava-me sonhos coloridos: via o arco-íris do Anjo e estranhas girândolas de cores”.
 
É importante, crucial mesmo, entender que a inspiração no Apocalipse não supõe que a obra seja “apocalíptica” no sentido mais corrente do termo. O que Messiaen reteve foi a imagem do Anjo tendo sobre a sua cabeça o arco-íris e que vem anunciar que “já não haverá mais tempo”, “La fin du Temps”, com “Temps” em maiúscula (é a esta particularidade que é preciso atender no título original francês). Este “tempo” reenvia-nos quer para os aspectos rítmicos (“O ritmo é, por essência, mudança e divisão. Estudar a mudança e a divisão é estudar o tempo”) quer para a teologia (“a perpétua conversão do tempo em passado, a noção de Eternidade”).
 
Este “fim do Tempo” (e não fim dos tempos”) é a sugestão de um tempo sem fim, a eternidade. A derradeira obra de Messiaen intitula-se Éclairs sur l’Au-Delá; o Quator pour la fin des Temps poderia também ser caracterizado como “Éclairs” de l’Eternité”, “lampejos”, “fulgurâncias” ou “visões”.
 
Em particular extraordinários no quadro programático ou alusivo da obra são “V – Louange à l’Éternité de Jésus”,com a sugestão do tempo suspenso, tempo musical e tempo teológico, e “VIII – Louange à l’Immortalité de Jésus” com a lenta linha ascendente até ao extremo-agudo do violino, sugerindo a ascensão de Jesus, do “Verbo feito carne, ressuscitado e imortal”. Pelo seu trabalho sobre o tempo e o rítmo, sobre as cores também, Messiaen sugeriu nesta obra-prima de modo único uma atemporalidade, uma u-cronia, uma eternidade sensível pela experiência da música.
 
O inusitado longo silêncio que acolheu a interpretação do quarteto Osborne-Hagner-Gerhardt-Kriikku na Gulbenkian foi a mais eloquente resposta do público a uma soberba interpretação, de tão assombrosas cores e noções do rítmo e do tempo. A clareza das dinâmicas e rítmos em “II – Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps”, a mestria de Kriikku no extraordinário solo de clarinete que é “III – Abîme des oiseaux”, a linha hipnótica do violoncelo de Gerhardt em “V – Louange à l’Éternité de Jésus”, as cores do piano de Osborne em “VII – Foullis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps”, as mutações de cor ao longo das alturas de Hagner em “VIII – Louange à l’Immortalité de Jésus”, eis alguns exemplos concretos desta experiência transcendente, um dos momentos mais marcantes das comemorações em Portugal dos 1000 anos do nascimento de Olivier Messiaen.

 

Oferendas por Messiaen (V)

Concertos comemorativos do centenário do compositor:

 

Lisboa

 

CCB, hoje, às 21 - Quator pour la fin du Temps - Schostakovich Ensemle (Pascale Moraguès, clarinete, Priya Mitchell, violino, Pavel Gomziakov, violoncelo, Filipe Pinto-Ribeiro, piano), com leitura de poemas de Nelly Sachs por Beatriz Batarda e espaço cénico de Paulo Nozolino.

 

 

Sé de Lisboa - Conclusão da integral da obra para orgão: hoje, Missa de Homenagem a Olivier Messiaen; sábado, Livre du Saint Sacrement (II); domingo, La Nativité du Seigneur; segunda-feira, Monodie, Dyptique, Offrande au Saint-Sacrement, Verset pour la fête de la Dédidace, Apparition de l'église eternelle e Le banquet céleste, sempre às 21h30. Mais informações aqui.

 

 

Porto

 

Casa da Música

 

Hoje, às 19h30 - Quator pour la fin du Temps - solistas do Remix Ensemble

 

Dupla homenagem a Messiaen e Elliot Carter (o compositor americano celebra amanhã 100 anos) - sexta, às 21h - Carter, Tempo e Tempi, Reflexions, Messiaen, Oiseaux Exotiques, Chonochromie - Claire Booth (soprano), Jonathan Ayerst (piano), Remix Ensemble, dir. Stefan Asbury; sábado ás 18h - Messiaen -  Et exspecto ressurrectionem mortuorum, Carter, Three Occasions for Orchestra - ONP, dir. Stefan Asbury; sábado, às 13h - Visions de l'Amen - Nina Schumann e Luís Magalhães (pianos); domingo, às 12h - L'Ascension - Jonathan Ayerst (orgão).

 

 

Braga

 

Auditório Vita

 

Integral da Música de Câmara : hoje, às 21h30 - La Merle Noir, Fantasie, Visions de l'Amen; sábado ás 21h30 - Thème e variations, Pièce pour piano et quatour à cordes, Quator pour la fin du Temps - António Saiote (clarinete), Gerardo Ribeiro (violino), Paulo Gaio Lima (violoncelo), Miguel Borges Coelho e Marta Zabaleta (pianos), Nuno Inácio (flauta), Quarteto de Cordas de Matosinhos.

 

Sexta, às 21h30, projeção de Le Charme des impossibilités, filme sobre a génese do Quator pour la fin du Temps.

 

Presença de Messiaen (IV)

 

No dia do centenário do nascimento do compositor

 

 

 

 

Olivier Messiaen – La liturgie de cristal
realização de Olivier Mille
dvd Idéale Audience, dist. CNM

 

 

 

 

 

Este documentário é verdadeiramente precioso, porque tem uma única presença real, a do próprio Olivier Messiaen, dele e das suas obras.
 
São dos mais qualificados os intérpretes que vemos e ouvimos, Yvonne Loriod, Pierre Boulez, Pierre-Laurent Aimard, Seiji Osawa ou José van Dam, todavia, contrariamente a usos mais habituais em documentários, eles não dão outro testemunho senão o da sua condição de intérpretes. Pesem ainda algumas imagens originais, como a desse Monte Messiaen no Utah, em homenagem ao facto desse vasto e impressionante espaço ter inspirado a Messiaen uma das suas obras maiores, Des Canyons aux étoiles, ou então imagens de interpretações das obras, com destaque para as da célebre produção da ópera Saint François de Assise em 1992, em Salzburgo, encenada por Peter Sellars (espectáculo deslumbrante, memória pessoal fortíssima, que essas imagens reavivam), pesem essas imagens ou algum uso, parco, da “voz off”, o essencial é uma montagem de documentos de arquivos com Messiaen, captados entre 1965 e 1987. É a sua presença a razão de ser do documentário.
 
Há momentos verdadeiramente extraordinários, do ponto de vista de elucidação das características que sabemos terem sido as suas, como toda a parte inicial sobre os pássaros e a ornitologia ou o extracto de uma aula em que Messiaen debate com os seus alunos logo a obra que mais decisivamente o marcou, o Pelléas et Mélisande de Debussy. Há o modo como ele fala da sua fé, das cores, do Oriente, da sua posição de organista ou dos instrumentos de percussão.
 
O documentário intitula-se Liturgia de Cristal, que é citação do 1º andamento do Quator pour la fin du Temps, referido à passagem do Apocalipse em que fala de um anjo “e sobre a sua cabeça estava o arco-íris”; é justamente a noção das cores de Messiaen que melhor transparece. Notem-se a propósito três afirmações: “Posso ser tonal, modal, tudo o que quiserem, de facto sou sobretudo um colorista”; “sou compositor, ritmista, ornitólogo”; “os pássaros são artistas que são como eu  sensíveis à cor”.
 
Mas além dos pássaros havia a Fé, ou melhor a crença religiosa católica (“croyant”, repetia ele insistentemente), factor que em si mesmo não é dado musical. Como o documentário explica, a sua posição de organista na Igreja da Sainte Trinité em Paris foi o modo concreto de, como músico, participar na liturgia, mas o órgão em si mesmo foi também o seu “laboratório”, o instrumento em que praticou e experimentou durações, cores e ressonâncias.
 
Não houve apenas o cristal, houve os vitrais de cores de música, as catedrais sonoras e os grandes espaços que Messiaen ergueu.
 
Ter um tão elucidativo documento sobre tão singular e genial é facto precioso – de conhecimento indispensável mesmo.
 
 
 
Ver também aqui.

 

Catálogo de Messiaen (III)

 

Para o centenário do nascimento de Oliver Messiaen – 10-11-08
 
 
 
 
Espírito crente, compositor, organista e professor, Olivier Messiaen teve uma influência capital no pós-guerra, abrindo caminho à vanguarda de então, a de Boulez ou Stockhausen. Foi também ornitologista - o canto dos pássaros apaixonava-o.
 
Na música europeia deste século houve dois momentos de clivagem correspondentes a dois traumas na própria História da Europa: as duas Grandes Guerras. Depois da Primeira, o grande florescimento modernista definhou e novos sistemas se definiram, o dodecafonismo ou o neo-classicismo. Este último, hegemónico entre as guerras, foi abalado com a Segunda, no pós-guerra tendo triunfado a radicalização serial do dodecafonismo.
 
Se houve compositor fulcral na passagem da primeira para a segunda metade do século, e que involuntariamente ainda ofereceu aos então jovens Boulez e Stockhausen um modelo que serviria de paradigma para a vanguarda do pós-guerra, esse compositor foi certamente Olivier Messiaen.
 
Nascido em Avignon em 1908, o futuro compositor teve um primeiro impacto com a descoberta de Pelléas et Mélisande de Debussy. Organista, foi nomeado aos 22 anos titular da Igreja da Trinité em Paris, posto que ocupou até à morte, mais de seis décadas passadas, em Abril de 1992. La Nativité du Seigneur e Les Corps Glorieux, duas obras para órgão, são aliás das mais destacadas entre as compostas ainda antes da Guerra. Uma guerra que Messiaen iria viver de perto. Mobilizado, capturado, seria no campo de prisioneiros de guerra de Gorlitz que ele comporia o extraordinário Quator pour la fin du Temps, estreado em condições inauditas nesse mesmo Stalag VIII-A.
 
Espírito imensamente curioso, Messiaen dedicou-se sistematicamente à ornitologia, transcrevendo centenas de cantos de pássaros, que muitas vezes constituíram indicações para obras musicais, como o extraordinário Catalogue des oiseaux para piano ou os Oiseaux exotiques para orquestra. Espírito religioso, Messiaen compôs numerosíssimas obras de referência cristã, como L’Ascension, Les Couleurs de la Cité Céleste, Et Expecto Resurectionem Mortuorum para orquestra (no ultimo caso apenas sopros e percussão), a oratória La transfiguration de Nôtre Seigneur Jésus-Christ para coro e orquestra; as Visions de l’Amen ou Les Vingt Regards Sur L’Enfant Jésus para piano, culminando numa ópera em torno da figura de quem o seu panteísmo estaria mais próximo, Saint François de Assise.
 
Os sons, as cores, as paisagens, aquilo que para ele seria a dádiva de Deus aos homens, desfrutou-as Messiaen em muitas paragens. Aos ecos transfigurados dos cantos dos pássaros, associaram-se variadíssimos elementos provenientes de músicas extra-europeias. Os sons dos “gagakus” do Japão, dos gamelãos de Bali, dos gongues dos Tibetes reapareceram nas suas obras. A influência extra-europeia, por exemplo das métricas indianas, tornou-se notória nas gamas e nas estruturas rítmicas das suas obras.
 
Foi precisamente num dos Quatro Estudos de Ritmo, para piano, designado por Modo de Valores e Intensidades, que Messiaen formulou uma possibilidade de organização dos parâmetros musicais que viria a ser absolutamente crucial para a conceptualização serial de Boulez ou Stockhausen – ele próprio achando, todavia, de todo desproporcionada a influência imensa dessa peça. Para esses compositors e para outros (Xenakis, por exemplo), Messiaen foi “o mestre”, nas suas obras e no seu ensino, designadamente nas classes de harmonia e análise no Conservatório de Paris.
 
Dizia: “O papel de um professor é o de encontrar a via que o seu aluno deve seguir e não a de ensinar o que ele próprio faz. Na minha aula fiz sempre abstracção dos meus próprios gostos, a fim de mostrar aos alunos tudo o que podia existir, não apenas na música clássica, mas também na música antiga ou exótica como na música moderna ou ultra-moderna. Tudo lhes mostrei, mas sobretudo procurei para cada um o que poderia ser a sua própria via, mesmo quando o músico que eu sou não acreditava nesta ou naquela orientação. Escrevi o que amava, mas nunca impus os meus amores aos meus alunos”.
 
Religioso, panteísta, curioso, Messiaen revelou-se musicalmente um mestre incomparável da cor. Obras como a Turangalîla-Symphonie, Des Canyons aux étoiles ou Chronochromie são magistrais exposições das possibilidades tímbricas de uma orquestra sinfónica. A primeira é uma das obras dos últimos sessenta anos mais regularmente tocadas e gravadas. Mas também as obras para piano ou para órgão apelam aos instrumentistas, Messiaen sendo certamente um dos autores contemporâneos mais amado por intérpretes, entre os quais ocupou lugar particular a sua esposa, a pianista Yvonne Loriod. A sua última obra, Éclairs sur L’Au-Delá é outra visão da transcêndencia, de que Messiaen não obstante procurava também os concretos indícios terrenos como no canto dos pássaros.
 
Oliver Messiaen foi uma das figuras musicais mais singulars e importantes do século XX, absolutamente capital mesmo.

 

Messiaen - II, Turangalîla - II

 

 

 

Olivier Messiaen
Turangalîla-Symphonie
Markus Bellheim, Philippe Arrieus
Orquesta Sinfonia Portuguesa; Julia Jones
CCB, 16 de Novembro


É uma coincidência, importante de resto, mas por inteiro se justifica passar à estreia de outro novo director titular, o da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Julia Jones, e assim também retomar a sequência das comemorações do centenário do nascimento de Olivier Messiaen.

 

Antes do mais, alguns dados: esta grande obra-prima foi estreada em Portugal a 11 de Novembro de 1967, pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, no Tivoli, com intérpretes de referência, as irmãs Yvonne (mulher do compositor) e Jeanne Loriod, direcção de Maurice de Le Roux, em presença do autor. Depois, a obra esteve ausente dos programas 35 anos, até ser de novo interpretada, pela Orquestra de Baden-Baden, direcção de Sylvain Cambreling, a 8 de Abril de 2003 no Europarque de Vila da Feira. De súbito, neste ano do centenário é a inflação: foi feita a 26 de Janeiro, na Casa da Música, pela Orquestra Nacional do Porto, direcção de Michael Zilm, de novo logo três dias depois em Lisboa no Coliseu dos Recreios, no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian, de novo por Cambreling e Baden-Baden (o texto crítico ficou em falta, mas já segue) e agora pela ONP!

 

Como já tive ocasião de dizer a propósito da temporada do São Carlos, a programação do óbvio revelou neste caso uma notória falta de imaginação, pois foi delineada quando já se sabia das outras duas execuções, e foi mesmo anunciada posteriormente. Sendo que uma outra grande obra para orquestra, Chronochromie, será feita pela ONP na Casa da Música, no próximo dia 12, em vez desta terceira Turangalila bem que antes podia ter sido sim feita a outra grande orquestral do autor, a mais vasta em termos de espaço sonoro, Des Canyons aux étoiles, o que completaria o quadro. Enfim…

 

(Isto dito, também devo acrescentar contudo que o público que acorreu ao CCB para este concerto da ONP foi substancialmente daquele outro que assistiu à interpretação no Ciclo das Grandes Orquestras).

 

Julia Jones começou com um gesto amplo mas, a pouco, os “Bien modéré” foram-se tornando uniformes, e sentiu-se que a maestrina ainda está a “tactear” a relação com a ora “sua” orquestra. O mais surpreendente ocorreu contudo do lado dos solistas: ainda que laureado do Concurso Messiaen, o pianista Markus Bellheim exibiu um nada apropriado “toucher” duro, enquanto por outro lado, se em geral aquilo que à época da criação era o aspecto mais “modernista” da obra, o uso das ondas Martenot, surge agora como o mais datado, o solista, Philippe Arrieus, impôs-se pela sua sensibilidade – e nunca me tinha ouvir, em concerto ou em disco um caso em que ondas Martenot se destacassem mais que o piano.

 

De algum modo, esta execução, apesar dos seus muitos limites, não deixou de ser empolgante – porque a Turangalîla-Symphonie é uma obra tal que, a menos seja um desastre, sempre empolga. Mas houve os tais muitos limites.
 

Messiaen - I, Turangalîla - I

 

Olivier Messiaen
Turangalîla-Symphonie
Stefan Litwin, Valérie Hartman-Claverie
Orquestra Nacional do Porto
Michael Zilm
Casa da Música, 26 de Janeiro
 
 
As comemorações do centenário do nascimento de Olivier Messiaen (1908-1992) não têm em Portugal a mesma intensidade que noutros países – e não só em França – mas começam agora por uma circunstância absolutamente excepcional, com duas sucessivas interpretações de uma das mais emblemáticas obras do compositor, e uma das mais extraordinárias obras orquestrais do século XX, a Turangalîla-Symphonie.
 
A primeira ocorreu no sábado, no Porto, na Casa da Música, a segunda será hoje, em Lisboa, no Coliseu dos Recreios, concerto integrado no ciclo de Grandes Orquestras da Gulbenkian.
 
Desde 1967, quando da sua 1ª audição em Portugal, que a Turangalîla não é ouvida em Lisboa e desde essa mesma data, quando foi executada pela então Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, que não figurava no programa de nenhuma orquestra portuguesa.
 
O segundo facto, por si só, diz bem do particular relevo que teve o concerto de sábado. É efectivamente preciso uma orquestra que seja um corpo constituída com suficiente solidez para se abalançar à gigantesca e deslumbrante partitura de Messiaen, com a sua miríade de cores. E, para todos os efeitos, a continuidade de trabalho da ONP faz dela, de facto, a única orquestra sinfónica portuguesa, tanto mais que a propriamente chamada Orquestra Sinfónica Portuguesa continua em termos reais a ser a formação do São Carlos, do teatro de ópera, sem as desejáveis condições de trabalho, e sem uma programação de concertos com a regularidade suficiente para a tornar perceptível em termos públicos.
 
 
 
 
 
Esta foi uma outra ocasião em que a ONP afirmou os frutos do seu continuado trabalho. E foi também uma outra ocasião para confirmar a particular inclinação de Michael Zilm para o reportório de grandes dimensões sinfónicas, pós-romântico e do século XX.
 
A Turangalîla-Symphonie é uma obra cósmica, em que a construção temática e o jogo de timbres e dinâmicas exigem uma grande precisão e clareza. Foi isso que Zilm logrou, nomeadamente nos grandes crescendos da obra, na definição de planos dos “naipes”, na clara legibilidade dos temas estruturais, sobretudo o “tema do amor”.
 
 
 
 
Sendo sabido o particular conhecimento e a virtuosidade que a linguagem pianística de Messiaen sempre requer, mesmo no caso das intervenções do instrumento nesta obra, foi também apreciável o contributo de Stefan Litwin.
 
Entretanto, e dentro da margem de imponderáveis de qualquer realização musical, é outro grande momento que, com fundadas razões, se pode esperar hoje no Coliseu. Nesse intervalo de 40 anos, houve uma única execução da Turangalîla em Portugal, a 8 de Abril de 2003 no Euro-Parque de Santa Maria da Feira, justamente com a mesma orquestra e maestro, a Orquestra Sinfónica da Rádio de Baden-Baden e Freiburg e Sylvain Cambreling – e foi um concerto memorável, de intensas emoções.
 
O programa geral da Gulbenkian é omisso quanto aos solistas, mas podendo o panorama internacional das celebrações ser seguido no site www.messiaen2008.com, a informação aí existente é a de que na digressão da Orquestra fazendo esta obra os solistas são Valérie Hartman-Claverie em Ondas Martenot, tal como no concerto da ONP, e um dos máximos intérpretes pianísticos actuais de Messiaen, Roger Muraro.
 
E, a propósito, refiram-se então alguns dos maiores destaques deste Ano Messiaen: o Festival dirigido por outro grande intérprete e pianista, Pierre-Laurent Aimard, na South Bank de Londres, o “Parcours Messiaen” que decorre desde o passado dia 19 em Avignon (terra natal do compositor) e se prolonga até Dezembro, as representações de Saint-François de Assise na Ópera da Holanda em Junho, e a série de concertos que Myung-Wung Chung dirige em Paris, ao longo do ano, na Salle Pleyel e no Théâtre des Champs Elysées, incluindo o Saint-François em versão de concerto.
 
 
Turangalîla-Symphonie
Orquestra Sinfónica da Rádio de Baden-Baden e Freiburg
Sylvain Cambreling
Coliseu dos Recreios, hoje, às 21h