Uma coisa é certa, em nome do “rigor e transparência”: é curial que os factos apurados sobre a gestão de Fragateiro e o enorme buraco financeiro que deixa sejam tornados públicos, escrevi.
Nada mais pertinente do que transcrever então o anexo do despacho de dissolução do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II, com os fundamentos da decisão.
E, apesar das expectativas serem as piores, ainda assim fica-se atónito: “inexistência de padrões de elevada exigência, rigor, eficiência e transparência, bem como a falta de idoneidade, capacidade e experiência de gestão”, “bandidaje”, inexistência de contratos, tráfico de Actas, incumprimento das missões estatutárias e “um prejuízo de € 1.947.151”!
Eis pois a fundamentação:
Os factos e as razões de Direito que fundamentam a dissolução do órgão Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E. são os seguintes:
1 – Actas do Conselho de Administração:
- As actas nº1 a 33 do Conselho de Administração (CA) contêm diálogos que nada têm a ver com a gestão da entidade e expressões insultuosas entre os membros do Conselho de Administração, nomeadamente entre o seu Presidente, Prof. Doutor Carlos Fragateiro, e o Vogal, Arquitecto José Manuel Castanheira, ao qual terá levado ao mau funcionamento do órgão e foi fundamento do pedido de demissão do referido Vogal. Factos esses que indiciam fortemente a inexistência de padrões de elevada exigência, rigor, eficiência e transparência, bem como a falta de idoneidade, capacidade e experiência de gestão com sentido de interesse público.
- Há mesmo duas “actas” do CA com o mesmo nº14. Uma dessas tem todas as folhas rubricadas pelos dois vogais e a última folha assinada por estes. A outra, necessariamente posterior, tem todas as folhas rubricadas pelos três elementos do CA, excepto a a última, que está assinada pelo Presidente do CA e um dos dois vogais. A última folha desta acta é mais curta e omite grande parte do texto que dela constava na versão anterior.
- Por deliberação do CA, não datada e em “NOTA”, foi “deliberado”, contra o disposto na lei, que a partir da Acta nº9, as Actas passariam a ser Avulsas, sem que as folhas tenham sido numeradas sequencialmente.
2 – Contratos:
- Das actas do CA não consta que tenha havido qualquer deliberação sobre a celebração do contrato de Cessão da Exploração do Estabelecimento Comercial relativo ao Teatro Villaret, tendo faltado por isso das actas qualquer avaliação e solução para a gestão dos riscos inerentes a esta actividade da entidade naquele espaço.
- Igualmente inexiste qualquer deliberação de aprovação de contrato escrito sobre a exploração dos locais de bar e restauração da entidade. Daí que também sobre esse assunto se desconheça qualquer deliberação do CA, que não terá acompanhado, verificado e controlado a evolução dos negócios da administração.
3 – Relações internacionais:
O Director do Teatro de Madrid sentiu-se obrigado a recorrer à Embaixada de Portugal para que a entidade cumprisse o pagamento que lhe era devido.
O encenador da obra “Longas Férias com Oliveira Salazar” imputa ao comportamento do presidente do CA as “barbaridades que se hacen en ese teatro”, qualificando o ambiente de “bandidaje”.
Observações de idêntico teor foram produzidas pelo presidente do “Teatro Stabile della Sardegna”, pela directora do “Dramma Italiano” e pelo superintendente do “Teatro Nazionale Croato”.
Factos eticamente inaceitáveis no sector de actividade do TNDM II e violadores das boas práticas decorrentes dos usos internacionais.
4 – Objecto:
O CA, apesar de ter um Plano de Actividades superiormente aprovado, não deu plena execução ao objecto do TNDM II, E.P.E., conforme previsto no nº2, do artigo 2º do citado Decreto-Lei nº158/2007:
- A divulgação e valorização dos criadores, nomeadamente nacionais, e suas expressões artísticas, não foram cabalmente prosseguidas. Desse facto não se encontra constância no “Relatório de Gestão e Contas ‘07”;
- A qualificação progressiva dos elementos artísticos e técnicos dos seus quadros e a contribuição activa para o aperfeiçoamento e desenvolvimento do sistema de formação profissional, técnica e artística na área teatral, não foi prosseguido como é expressamente reconhecido pelo CA;
- A colaboração com escolas de ensino superior artístico, nos termos do legalmente exigido, foi escassa como o próprio CA literalmente reconhece;
- Outro tanto tem de dizer-se relativamente à promoção e organização de acções de formação nos diferentes domínios da sua actividade;
- O estímulo à pesquisa, no quadro das novas tecnologias de informação e comunicação, a valorização da dimensão pedagógica indutora do diálogo, a programação de actividades que tenham dado especial atenção aos textos abordados pelo ensino oficial e a preservação e divulgação sistemáticas do património cultural ligado ao TNDM II, E.P.E., não foram alvo da actuação do CA como claramente resulta do Relatório de Gestão e Contas’07.
5 – Resultados financeiros:
Os resultados líquidos do exercício de 2007 decorrentes da gestão financeira levada a cabo pelo CA demonstram um prejuízo no montante de € 968.154. Se a este resultado adicionarmos os custos de produção diferidos de € 978.997, advém um prejuízo de € 1.947.151. De referir que em 2007, o montante da Indemnização Compensatória recebida pelo Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E., foi reforçado em € 833.032, face ao registado em 2006.
Estes prejuízos evidenciam que os objectivos da entidade não foram cumpridos, que a execução do orçamento não foi devidamente acompanhada e as medidas destinadas a corrigir os desvios não foram aplicadas.
Donde se constata a existência de um desvio substancial entre o orçamento e a respectiva execução bem como a deterioração dos resultados de actividade e da situação patrimonial da entidade, provocadas pelo exercício de funções dos gestores.
6 – Conclusão:
Nestes termos e fundamentos, concluí-se que os factos supra referidos preenchem as previsões das alíneas a), b) e c) do número 1, do artigo 12º, dos Estatutos do Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E., aprovados pelo Decreto-lEi nº158/2007, de 27 de Abril, constituindo assim fundamento para a dissolução do órgão ae administração nos termos desse normativo.
Lisboa, Ministério da Cultura, 28 de Julho de 2008
Convirá apenas em especial recordar uma declaração de Carlos Fragateiro à “Visão” de 06-04-06: “Se o Teatro Nacional: fosse só dirigido pelo José Manuel [Castanheira] isto era um desastre nas contas, se fosse só dirigido por mim era um desastre na estética! [risos]”. Riram-se muito, riram: a gestão foi calamitosa em termos quer de “contas” quer de “estética”, para mais com os dois cúmplices aos insultos!
Foi esta a desdita do Teatro Nacional D. Maria II, decorrente do “golpe” superiormente perpetrado pelo comissário-geral Mário Vieira de Carvalho – aguardemos então pelo próximo texto daquele, com a habitual elucidação “hermenêutica”…
“Em consciência não vejo que haja objectivamente razões que levem o primeiro-ministro a remodelar a pasta da Cultura. Pelo contrário” – esta insólita declaração da própria titular da pasta lia-se no “Expresso” de 29-09-07. Três meses exactos volvidos, essa mesma Isabel Pires de Lima era exonerada, e no dia seguinte, 30 de Janeiro, tomava posse o sucessor, José António Pinto Ribeiro.
Entrou ele em funções com dois péssimos passos:
1) Sendo membro do Conselho de Administração da Fundação – Colecção Berardo, e sendo para mais notório que há importantes reservas à salvaguarda do interesse público na constituição dessa entidade, o próprio Berardo fez contudo saber que tinha sido Pinto Ribeiro a telefonar-lhe comunicando a nomeação e mais, que o outro era “como um médico que dá consultas à borla”;
2) Numa pasta financeiramente estrangulada, em que o governo socialista se tem no mínimo mostrado ao mesmo nível do que antes criticava (“retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram” é a primeira de três finalidades essenciais para o sector, nos termos do programa do presente governo), Pinto Ribeiro veio proclamar que “era possível fazer mais com menos meios”.
Pode essa desastrada declaração ser lida como intuito de demarcação face ao imediato precedente, mas ainda assim não só traduzia um notório desconhecimento da situação real do sector – afinal, a razão imediata da sua nomeação radicava-se no facto de ter pertencido à Comissão Política da Candidatura de Mário Soares - como, a haver nela um mínimo de substância, deveria ser seguida da clarificação de um novo quadro de acção.
Passaram quatro meses e meio entretanto e do ministro da Cultura não há praticamente notícias. No Palácio da Ajuda ocorre um mistério, o do ministro, ou do ministério desaparecido.
O ministro da tutela não tem de ser alguém oriundo do sector cultural. Ele é um responsável político, e os meios da sua acção são também em grande parte fruto da capacidade que tenha de tornar publicamente notório o seu âmbito; mas cada sector tem quadros de acção que exigem um mínimo de conhecimento específico – e a avaliar pelo denso nevoeiro de mistério não bastava a J. A. Pinto Ribeiro ser advogado ou parceiro de alguns artistas e agentes das indústrias culturais para estar inteirado das questões e possíveis alternativas de política.
Será então que afinal não é “possível fazer mais com menos meios”?
Nem o quadro orçamental do país é de molde a um reforço significativo dos meios para a cultura, nem esse quadro ou a “governação à direita” são álibis bastantes. Do ministro da Cultura sucessor da tão desastrada governação de Isabel Pires de Lima eram exigíveis duas coisas: que estivesse ciente do próprio programa do governo para o sector, em tantos aspectos flagrantemente desrespeitado por Pires de Lima e Mário Vieira de Carvalho, e que tivesse a capacidade política de desenhar outros modos de acção.
Dos tão elogiosos retratos do novo ministro publicado na imprensa inferia-se de certeza segura que o défice de auto-estima não era um dos seus limites, antes pelo contrário. Era então legítimo supor que J. A. Pinto Ribeiro teria uma distinta visibilidade nas suas novas funções, factor que estaria longe de ser despiciendo, dada a notória secundariedade a que sector tem estado remetido na presente governação – conseguir a definição de uma política, obter os meios da sua prossecução, depende também muito da visibilidade e como tal da possibilidade de percepção pública dessa política. Eis então o mistério maior, o de, em vez da maior visibilidade expectável, o ministro da Cultura J. A. Pinto Ribeiro se ter antes confinado à insignificância.
Já tive nomeadamente ocasião de recordar, era ainda ministra Pires de Lima, que do programa do governo consta o seguinte:“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo, importando retomar a trajectória de aproximação interrompida no passado recente” – e que entre os “objectivos complementares” se inscreve “rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”.
Ora este quadro de acção a que o governo se comprometia foi substancialmente escamoteado. Durante meses a página electrónica do Ministério da Cultura, de um imobilismo contrastante com o tão propagandeado “choque tecnológico”, continuava a anunciar como estando o Estatuto do Mecenato em revisão quando, ao invés, não só se agudizou a lógica perversa de o próprio governo canalizar os apoios privados para as suas iniciativas directas, de que foi exemplo a exposição do Hermitage, como inclusive o próprio Estatuto foi revogado, confinando-se as formas de apoio aos dispositivos de benefícios fiscais previstos no Orçamento de Estado.
Nem é preciso invocar uma vez mais a cabisbaixa declaração de ser “possível fazer mais com menos meios” – seria em qualquer caso necessário não só dar provimento a um novo quadro legal, tal como previsto no programa do governo, como fazer sentir publicamente à sociedade em geral, aos agentes culturais e a potenciais parceiros, que o governo estava empenhado num novo modo de relacionamento. Mas sobre esta questão nodal – que não apenas de meios, mas de paradigma de dinâmicas – guarda J. A. Pinto Ribeiro o maior dos silêncios.
Numa rara intervenção, explicou o ministro em sede parlamentar que a língua, o património e o apoio às artes e indústrias culturais eram as suas prioridades; mais deu notícia da sua divergência com o monstro engendrado por Vieira de Carvalho, a OPART, integrando o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado, e o quadro de apoio às artes. Contudo, só se notou a sua existência na defesa da entrada em vigor de um acordo ortográfico que não só desrespeita elementares normas linguísticas como apenas serve a pujança agressiva das indústrias culturais brasileiras, e não daquelas que ele próprio como ministro da Cultura português declara sua prioridade – como visão estratégica para o sector é a confusão.
Mais ainda: sendo notório que no governo há um ministro empenhado numa “política de gosto” pessoal, Manuel Pinho, o silencioso cede o campo ao outro: a que propósito é que o contracto com o arquitecto Paulo Mendes da Rocha para o novo Museu dos Coches foi sim assinado pelo Ministro da Economia? Seguramente já é admitido no próprio governo que o ministro da Cultura desapareceu no mistério que se adensa no Palácio da Ajuda. No governo, e na imprensa também, que depois de tão inflamados panegíricos guarda agora um cobarde silêncio sobre um ministro desaparecido.
“A pior coisa que pode acontecer ao ministro José António Pinto Ribeiro é ser um gestor de clientelas. Aquela que se desejaria de alguém com o seu perfil público, e até do protagonismo político a que por certo não se regateará, é que corte rente com o dirigismo, abre espaço a iniciativas próprias e catalize esforços e parcerias, que saiba também fazer uma cultura da mediação.
O que se passou durante os 34 meses da gestão Pires de Lima/Vieira de Carvalho foi também a negação de uma cultura democrática. O fundador do Fórum Justiça e Liberdade tem a obrigação elementar de ter presente esse dado e tirar as devidas consequências na sua acção política como Ministro da Cultura – que crie instrumentos legais e iniciativas em vez das cadeias de comando do servilismo burocrático.”
Um novo ministro, óbice e possibilidades é o tema da coluna “Estado da Arte” deste mês na artecapital.
Retomo agora, em versão um pouco abreviada, uma análise feita quando da posse do governo de maioria absoluta do PS por várias ordens de razões.
A primeira, que se mantêm por inteira válida, diria mesmo que reiteradamente, é que se tende a esquecer que houve compromissos assumidos pelo PS perante o eleitorado, que tomaram mesmo a formulação política de Programa do Governo.
É compreensível que questões, ou quebras de promessas e objectivos claramente fixados, como a da não-subida de impostos, a construção do novo areoporto na Ota ou o referendo ao Tratado Europeu, tenham um maior impacto mediático e público. Todavia, o compromisso governamental é válido para todos os sectores, é peça indispensável e fundamental do contrato democrático e da relação entre governantes e eleitores.
Confirmada no elenco governamental a quase absoluta secundariedade da Cultura nas opções do primeiro-ministro, o que tão largamente se veio a confirmar, identificado logo nessa altura um padrão da dupla a quem foi confiada a pasta, “ambos militantes do PC até bem tarde, ao fim da União Soviética, ambos queirosianos, ambos universitários que têm estado sobretudo ligado a questões de educação mais do que propriamente às dinâmicas culturais recentes”, que se viria inclusive a revelar de tão funestas consequências na persistência de um quadro de acção dirigista, havia ainda assim que lembrar, e há que lembrar, “que as capacidades dos governantes se avaliarão em concreto, e sobretudo, naquilo a que estão comprometidos, o programa do governo. Mas a que estão eles comprometidos e que está solidariamente o governo, o Primeiro-ministro desde logo”,
Para além de outros aspectos, em que a releitura deste texto suscita até um travo amargo (como na referência concreta a Augusto Santos Silva e que “as suas características parlamentares o qualificam para o novo posto – onde, de resto, afecto ao núcleo político do governo, poderá ter um papel de sensibilização” – amargo, de facto, verificado o particular despudor e gravidade com que afinal assume também ele a vocação controleira), resta ser imperioso recordar que, para além de condutas erráticas e mesmo de relacionamento prepotente e grosseiro, para além do imenso mal-estar que suscitou nos agentes culturais, a dupla Isabel Pires de Lima/Mário Vieira de Carvalho – com a cobertura política do primeiro-ministro é óbvio, ainda que uma ou outra vez com pouco disfarçado mal-estar – deve ser responsabilizada por ter deliberadamente faltado ao próprio compromisso político do Programa do Governo – o que tentarei lembrar com mais detalhe.
E isso não é facto político menor ou irrelevante (por muito com por diferentes razões o achem, imagine-se, um Pacheco Pereira ou um Vasco Graça Moura), mas uma violação das premissas do próprio contrato democrático.
1 - Tendo em princípio o novo governo as condições políticas para cumprir um contrato de legislatura, a consideração das linhas programáticas que se propõe não deveria restringir-se à sede parlamentar própria da democracia representativa, mas ser mais latamente atendida no espaço público.
No que diz respeito ao capítulo cultural, e antes de matéria propriamente de abordagem, esclareça-se um ponto prévio, que em rigor não diz respeito apenas a esse capítulo. Que essa parte siga fielmente o programa eleitoral do Partido Socialista, não é, em boa regra democrática, suponho, razão para “decepção” ou “ausência de novidade”, mas antes de elementar manutenção de um projecto programático, que agora todavia terá, espera-se que sem a repetição das desculpas do costume, tido como linha de acção governativa.
Se o programa enuncia uma estratégia, os meios da sua prossecução serão escrutinados também pelo possível relevo que o sector tenha no cômputo da acção governativa e quanto isso, embora não só, é já um outro dado a escolha da equipa do Ministério da Cultura.
2 – Mais do que gostaria numa coluna de opinião, mas dada a falta de atenção mediática, tenho que começar por transcrever os tópicos do programa, com a sua retórica própria.
“A política cultural para o período 2005-2009 orientar-se-á por três finalidades essenciais. A primeira é retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram. A segunda é retomar o impulso político para o desenvolvimento do tecido cultural português. A terceira é conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da cultura portuguesa. A opção política fundamental do Governo é qualificar o conjunto do tecido cultural, na diversidade de formas e correntes que fazem a sua riqueza do património à criação, promovendo a sua coesão e as suas sinergias.”
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo (…). Ao mesmo tempo, o Governo fixa quatro objectivos complementares: a) desenvolver programas de cooperação entre Estado e autarquias, que estimulem também o crescimento da proporção de fundos públicos regionais e locais investidos na cultura; b) valorizar o investimento culturalmente estruturante, na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio (2007-2013); c) rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão; d) alargar a outras áreas e, em particular, ao funcionamento dos organismos nacionais de produção artística, o princípio de estabilização de um financiamento plurianual”
É favorecido o funcionamento em rede de equipamentos e actividades culturais, tido como “ o melhor factor de consolidação e descentralização da vida cultural e de sensibilização e formação de públicos”, comprometendo-se também o Estado a “ criar programas de incentivo à qualificação dos respectivos recursos humanos e das respectivas programações, designadamente “um programa de apoio à difusão cultural, cujo objectivo principal será estimular a itinerância de espectáculos e exposições, assim como a circulação de informação e apoio técnico”, comprometendo-se também o Ministério a promover “medidas de facilitação do acesso aos diferentes bens e equipamentos culturais, a começar pela organização de um sistema de passes culturais”.
Sem prejuízo de outros itens, alguns dos quais de relevo, como a separação de direcção artísticas de funções administrativas em teatros nacionais e institutos públicos afins, a filosofia de acção sintetiza-se nas linhas atrás citadas, completadas pela opção pelo livro e pela leitura e pelo audiovisual como áreas de particular relevância.
3 – Este é, em primeiro lugar, um programa estruturado. O que é suficientemente raro para não ser assinalado.
A suborçamentação crónica do sector criou terríveis vícios, na reiteração das ladaínhas das verbas e dos subsídios. Não que aquelas não sejam importantes e que o reiterado horizonte de 1% do OE não seja crucial, inclusive em termos simbólicos, e até de uma criatividade com eventuais impactos económicos. Mas essa ladaínha da falta de meios financeiros de apoio às actividades, tão recorrente no espaço público, tolda a percepção genérica das dinâmicas culturais e das modalidades políticas da sua articulação, sendo estas uma instância em que há atender não apenas aos artistas e produtores mas também às formas de mediação e aos públicos, à cidadania em geral.
Este é um programa de acção governativa que equaciona os diferentes níveis, central e local, de estruturas públicas, a captação de apoios e participações privadas, as distribuições e acessibilidades territoriais, a relevância dos criadores e a diversidade dos públicos, os novos meios de difusão, a responsabilização e a avaliação das gestões. O seu núcleo é o de “cultura em rede”.
4 – Este programa tem a marca reconhecível de Augusto Santos Silva. E não me estou a referir apenas a quem era porta-voz do PS mas ao intelectual e sociólogo que vinha justamente colocando a ênfase no conceito de “rede”.
Não me cabe lamentar o facto de não ter sido ele o escolhido para a pasta. Entre o desenho de uma perspectiva e a acção há alguma diferença e, pese ainda a conjuntura financeira bastante adversa que teve que gerir, a sua anterior passagem pelo cargo não auspiciava um regresso, enquanto as suas características parlamentares o qualificam para o novo posto – onde, de resto, afecto ao núcleo político do governo, poderá ter um papel de sensibilização.
As questões políticas são de todo outras. Não houve qualquer indicação nem nos enunciados de Sócrates nem no seu preenchimento do cargo de uma presença da Cultura entre as suas atenções, nem mesmo do atendimento às muitas virtualidades do próprio programa.
Considerando a equipa Isabel Pires de Lima/Mário Vieira de Carvalho o que surpreende são as similitudes: ambos militantes do PC até bem tarde, ao fim da União Soviética, ambos queirosianos, ambos universitários que têm estado sobretudo ligado a questões de educação mais do que propriamente às dinâmicas culturais recentes. E quanto à óbvia diferença, lamento ter de constatar que a escolha de uma mulher para a Cultura, verificado o padrão geral deste governo, apenas confirma ter sido a pasta uma das últimas escolhas de Sócrates.
O que importa ter presente é que as capacidades dos ora governantes se avaliarão em concreto e sobretudo naquilo a que estão comprometidos, o programa do governo. Mas a que estão eles comprometidos e que está solidariamente o governo, o Primeiro-ministro desde logo.
Há então um outro nível político das questões. Considerando o programa do governo no seu conjunto, a “Cultura” é um item desgarrado do objectivo estratégico prioritário de “qualificação dos portugueses”, sublinhado em termos de plano tecnológico, inovação e ciência. Daí decorrem diferentes perspectivas de concretização orçamental, mas que podem também implicar o empenho político em “valorizar o investimento culturalmente estruturante”, inclusive na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio. Ou a própria “estratégia de Lisboa” não passará também por aqui?
“O Primeiro-Ministro solicitou hoje a S. Exa. o Presidente da República a exoneração, a seu pedido, do Ministros da Saúde, Professor António Correia de Campos e da Cultura, Professora Isabel Pires de Lima” – Nota do Gabinete do Primeiro-Ministro, 29-01-08
“Em consciência, não vejo que haja objectivamente razões que motivem o primeiro-ministro a remodelar a pasta da Cultura. Pelo contrário.” (Isabel Pires de Lima, “Expresso” – 29-09-07)
“Gostava de ver lançado um grande festival ligado à ópera, os termos ainda não estão bem definidos. Teríamos de criar um festival de ópera que fosse o último da temporada europeia. Uma coisa que poderia ter poderia lugar no mês de Setembro, com produção do Teatro Nacional de São Carlos, mas realizado em vários espaços ao mesmo tempo e eventualmente em espaços ao ar livre” (Isabel Pires de Lima - “Notícias Magazine”, 16-09-07)
Assim falava Isabel Pires de Lima, que em tão alta consideração se tinha, e que tão longe no tempo e em tão grande escala imaginava a sua acção.
O seu balanço, e o do secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, é um desastre: desrespeito sistemático do compromisso político que é o Programa do Governo, dirigismo em especial patente nas mudanças de direcção artística de teatros nacionais e na criação da malfadada OPART EPE, - de que o infausto revestimento da operação Das Märchen foi o culminar -, total incapacidade em prover novo quadro legal ao mecenato, desconsideração dos agentes artísticos, da sua situação profissional e da regulamentação da sua segurança social, operações altamente dispendiosas sem justificação cultural sólida como a exposição do Hermitage, falta de acautelamento do interesse público numa negociação como a do Museu Berardo, etc., etc.