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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Os novos africanistas - I

 

 

 

 

Uma vaga assola o país: a dos centros culturais e dos centros de arte contemporânea. Bom seria que tivesse consistência, mas infelizmente, para além de alguns casos de trabalho continuado e gestão qualificada (Guimarães, Braga, Guarda, Viseu e poucos mais), o que na maioria dos casos se verifica é a ambição espalhafatosa de alguns edis, que uma vez feita a obra a deixam ao deus-dará, sem conteúdos e programação.
 
Também já tivemos recentemente uma ministra, a ilustre confrade queiroziana Isabel Pires de Lima, que sonhava com museus: era o Museu do Mar da Língua nos edifícios que restam do Museu de Arte Popular e o Museu do Multicularismo na Estação do Rossio em Lisboa, o de São João Novo no Porto. Além, claro, do megalómano pólo do Hermitage.
 
Faça-se ao menos ao sucessor, José António Pinto Ribeiro, a justiça de notar que deixou calmamente cair esses projectos – e ter-se descomprometido é do pouco que conta no seu activo.
 
Eis que agora, segundo o “Público” de sábado, e na sequência da cimeira euro-africana de Lisboa de há um ano, se anuncia um novo projecto retomando os piores equívocos “multiculturais” (ou “inter-culturais” como passou a estar na moda) dos projectos do Mar e da Língua e do outro para o Rossio, a uma escala muito mais relevante: o Africa.Cont, não um museu mas um centro pluridisciplinar dedicado às artes contemporâneas africanas. E porquê? Por vontade política de Sócrates, e do seu mote, “Quero, posso e mando”, em associação com o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa.
 
Vamos por parte.
 
Em primeiro lugar, o próprio conceito de África, pesem ainda as ideologias pan-africanistas, engloba duas entidades histórico-culturais bem diferentes, o Magreb islâmico e a África negra sub-saariana – e hoje em dia, de algum modo já também de forma autónoma a África do Sul.
 
Haverá que reconhecer ser um pouco estranho que, independentemente do Museu de Etnologia, não haja um espaço museológico dedicado às culturas que foram as da África Colonial portuguesa, ao que agora se chama “artes primeiras”, consagradas no Museu do Quai Branly aberto no ano passado em Paris.
 
Mas, independentemente disso, é óbvio que há em Portugal um enorme desconhecimento das artes contemporâneas africanas.
 
Doeu-me imenso verificar, em Junho do ano passado, quando morreu o senegalês Ousmane Sembene, o autor que praticou procedeu à “invenção cinematográfica de um continente”, a África negra, que o facto quase tivesse passado despercebido na imprensa portuguesa. Estou curiosíssimo de ver Teza, o primeiro filme em quase 10 anos do etíope expatriado Hailé Gerima (que noutros tempo, quando o Festival da Figueira da Foz era um nosso ponto de encontro obrigatório, obteve o Grande Prémio, em 1976, com A Colheita dos 3 Mil Anos),que esteve no recente Festival de Veneza. Por cá é nulo ou quase o conhecimento dos fotógrafos malianos Seydou Keita e Malick Sidibé. Há vários coreógrafos africanos interessantes e, como bem se sabe (e muito também se não saberá) inúmeros músicos importantes.
 
Agora atenção: o reverso do preconceito colonial tem sido uma certa condescendência “multiculturalista”, que entendo a seu modo como a outra face de uma atitude neo-colonial: por exemplo, solicitam-se “artistas africanos” não pelo seu intrínseco valor enquanto “artistas” mas porque são “africanos”. Esse foi a meu ver aliás o aspecto contestável da acção de António Pinto Ribeiro (inevitavelmente ouvido no trabalho do “Público”) na Culturgest, prolongado agora nalgumas das suas iniciativas na Gulbenkian.
 
Podia ser frutuoso, em abstracto, que houvesse vontade política de lançar pontes, mas este projecto para "perpetuar esta realidade de Lisboa ser a ponte entre a Europa e África" (António Costa dixit) vem ainda do fundo histórico-colonial, e não tem sentido nas geografias humanas e culturais de hoje – não há “A ponte”, mas vários espaços privilegiados como Paris e a França em geral, ou até Berlim, com nomeadamente a actividade da Haus der Kulturen der Welt.