Olivier Messiaen Turangalîla-Symphonie Markus Bellheim, Philippe Arrieus Orquesta Sinfonia Portuguesa; Julia Jones CCB, 16 de Novembro
É uma coincidência, importante de resto, mas por inteiro se justifica passar à estreia de outro novo director titular, o da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Julia Jones, e assim também retomar a sequência das comemorações do centenário do nascimento de Olivier Messiaen.
Antes do mais, alguns dados: esta grande obra-prima foi estreada em Portugal a 11 de Novembro de 1967, pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, no Tivoli, com intérpretes de referência, as irmãs Yvonne (mulher do compositor) e Jeanne Loriod, direcção de Maurice de Le Roux, em presença do autor. Depois, a obra esteve ausente dos programas 35 anos, até ser de novo interpretada, pela Orquestra de Baden-Baden, direcção de Sylvain Cambreling, a 8 de Abril de 2003 no Europarque de Vila da Feira. De súbito, neste ano do centenário é a inflação: foi feita a 26 de Janeiro, na Casa da Música, pela Orquestra Nacional do Porto, direcção de Michael Zilm, de novo logo três dias depois em Lisboa no Coliseu dos Recreios, no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian, de novo por Cambreling e Baden-Baden (o texto crítico ficou em falta, mas já segue) e agora pela ONP!
Como já tive ocasião de dizer a propósito da temporada do São Carlos, a programação do óbvio revelou neste caso uma notória falta de imaginação, pois foi delineada quando já se sabia das outras duas execuções, e foi mesmo anunciada posteriormente. Sendo que uma outra grande obra para orquestra, Chronochromie, será feita pela ONP na Casa da Música, no próximo dia 12, em vez desta terceira Turangalila bem que antes podia ter sido sim feita a outra grande orquestral do autor, a mais vasta em termos de espaço sonoro, Des Canyons aux étoiles, o que completaria o quadro. Enfim…
(Isto dito, também devo acrescentar contudo que o público que acorreu ao CCB para este concerto da ONP foi substancialmente daquele outro que assistiu à interpretação no Ciclo das Grandes Orquestras).
Julia Jones começou com um gesto amplo mas, a pouco, os “Bien modéré” foram-se tornando uniformes, e sentiu-se que a maestrina ainda está a “tactear” a relação com a ora “sua” orquestra. O mais surpreendente ocorreu contudo do lado dos solistas: ainda que laureado do Concurso Messiaen, o pianista Markus Bellheim exibiu um nada apropriado “toucher” duro, enquanto por outro lado, se em geral aquilo que à época da criação era o aspecto mais “modernista” da obra, o uso das ondas Martenot, surge agora como o mais datado, o solista, Philippe Arrieus, impôs-se pela sua sensibilidade – e nunca me tinha ouvir, em concerto ou em disco um caso em que ondas Martenot se destacassem mais que o piano.
De algum modo, esta execução, apesar dos seus muitos limites, não deixou de ser empolgante – porque a Turangalîla-Symphonie é uma obra tal que, a menos seja um desastre, sempre empolga. Mas houve os tais muitos limites.
Depois de durante demasiado tempo ter indo anunciando a sua programação trimestralmente – o que além de irritante para o planeamento dos espectadores era um contrassenso para a própria instituição, pois não permitia ver com clareza as linhas de orientação – a Casa da Música passou desde o ano passado, respeitante a este, a anunciar a sua programação justamente num módulo anual.
Tanto melhor se deu esse passo, que era imprescindível, mas este conceito de uma instituição musical apresentar a sua programação de acordo com o ano civil, e não o conceito de temporada, também não me parece o mais curial, porque é nesses termos de temporada que assenta o trabalho de formações musicais.
Prova do que digo é o facto do concerto do passado dia 20 de Setembro, integrado no ciclo Novas Músicas, ter de facto sido a abertura da temporada da Orquestra Nacional do Porto, e na ocasião a estreia do novo maestro titular, pedra angular que faltava, Christopher König – e é disso que quero falar.
König já antes dirigira a ONP, bem como até também o Remix – em Abril, no ciclo Música e Revolução, noutra prova da valia que para a Casa da Música é ter ambos os agrupamentos, os respectivos maestros “trocaram”, König dirigindo o Remix e Peter Rundel a ONP. Mas a responsabilidade de um concerto de estreia como maestro titular é sempre muito particular.
“Tough”, dizia-me horas antes König. Foi o contrário da facilidade de facto optar pelo “outro Pélleas”, não o de Debussy, mas o de Schönberg (ou o mais notório dos outros, pois que para o drama de Maeterlinck existem também as músicas de cena de Fauré e Sibelius) e três obras contemporâneas, nenhuma delas de execução acessível, e uma, Lollapallaza de John Adams, mesmo francamente virtuosística – e feita a abrir o concerto com tanto brilho que me ocorreu até a possibilidade de ainda um dia virmos a ouvir essa suprema obra orquestral de Adams que é Eldorado.
Mas o importante era mesmo Pélleas e Mélisande, poema sinfónica de grande fôlego, e obra raríssima de se ouvir – para ser preciso, em Portugal, que eu tenha presente e saiba, foi feita uma vez pela então Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional (com o maestro Richard Duffalo), mas na Gulbenkian, a, pasme-se!, 7 de Junho de 1974 (por acaso, as últimas representações do Pélleas et Mélisande de Debussy foram na mesma altura).
Pedagógico, König fez primeiro uma introdução, apresentando os motivos e temas dos episódios. Depois, deu provas de um apurado trabalho com os naipes – algo que de resto é do mais importante no labor de um maestro-director -, de sentido das densidades e de fôlego narrativo. Estreia auspiciosa, pois.
Como já disse alguém mais próximo do processo, “parece que ele vestiu mesmo a camisola”. Tanto melhor.
As comemorações do centenário do nascimento de Olivier Messiaen (1908-1992) não têm em Portugal a mesma intensidade que noutros países – e não só em França – mas começam agora por uma circunstância absolutamente excepcional, com duas sucessivas interpretações de uma das mais emblemáticas obras do compositor, e uma das mais extraordinárias obras orquestrais do século XX, a Turangalîla-Symphonie.
A primeira ocorreu no sábado, no Porto, na Casa da Música, a segunda será hoje, em Lisboa, no Coliseu dos Recreios, concerto integrado no ciclo de Grandes Orquestras da Gulbenkian.
Desde 1967, quando da sua 1ª audição em Portugal, que a Turangalîla não é ouvida em Lisboa e desde essa mesma data, quando foi executada pela então Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, que não figurava no programa de nenhuma orquestra portuguesa.
O segundo facto, por si só, diz bem do particular relevo que teve o concerto de sábado. É efectivamente preciso uma orquestra que seja um corpo constituída com suficiente solidez para se abalançar à gigantesca e deslumbrante partitura de Messiaen, com a sua miríade de cores. E, para todos os efeitos, a continuidade de trabalho da ONP faz dela, de facto, a única orquestra sinfónica portuguesa, tanto mais que a propriamente chamada Orquestra Sinfónica Portuguesa continua em termos reais a ser a formação do São Carlos, do teatro de ópera, sem as desejáveis condições de trabalho, e sem uma programação de concertos com a regularidade suficiente para a tornar perceptível em termos públicos.
Esta foi uma outra ocasião em que a ONP afirmou os frutos do seu continuado trabalho. E foi também uma outra ocasião para confirmar a particular inclinação de Michael Zilm para o reportório de grandes dimensões sinfónicas, pós-romântico e do século XX.
A Turangalîla-Symphonie é uma obra cósmica, em que a construção temática e o jogo de timbres e dinâmicas exigem uma grande precisão e clareza. Foi isso que Zilm logrou, nomeadamente nos grandes crescendos da obra, na definição de planos dos “naipes”, na clara legibilidade dos temas estruturais, sobretudo o “tema do amor”.
Sendo sabido o particular conhecimento e a virtuosidade que a linguagem pianística de Messiaen sempre requer, mesmo no caso das intervenções do instrumento nesta obra, foi também apreciável o contributo de Stefan Litwin.
Entretanto, e dentro da margem de imponderáveis de qualquer realização musical, é outro grande momento que, com fundadas razões, se pode esperar hoje no Coliseu. Nesse intervalo de 40 anos, houve uma única execução da Turangalîla em Portugal, a 8 de Abril de 2003 no Euro-Parque de Santa Maria da Feira, justamente com a mesma orquestra e maestro, a Orquestra Sinfónica da Rádio de Baden-Baden e Freiburg e Sylvain Cambreling – e foi um concerto memorável, de intensas emoções.
O programa geral da Gulbenkian é omisso quanto aos solistas, mas podendo o panorama internacional das celebrações ser seguido no site www.messiaen2008.com, a informação aí existente é a de que na digressão da Orquestra fazendo esta obra os solistas são Valérie Hartman-Claverie em Ondas Martenot, tal como no concerto da ONP, e um dos máximos intérpretes pianísticos actuais de Messiaen, Roger Muraro.
E, a propósito, refiram-se então alguns dos maiores destaques deste Ano Messiaen: o Festival dirigido por outro grande intérprete e pianista, Pierre-Laurent Aimard, na South Bank de Londres, o “Parcours Messiaen” que decorre desde o passado dia 19 em Avignon (terra natal do compositor) e se prolonga até Dezembro, as representações de Saint-François de Assise na Ópera da Holanda em Junho, e a série de concertos que Myung-Wung Chung dirige em Paris, ao longo do ano, na Salle Pleyel e no Théâtre des Champs Elysées, incluindo o Saint-François em versão de concerto.
Turangalîla-Symphonie
Orquestra Sinfónica da Rádio de Baden-Baden e Freiburg