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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Obras-primas do século XX

David Afkham

 

 

 

Richard Strauss

Capriccio – Prelúdio

Metamorfoses*

Janácek

Mládi

Stravinky

Octeto

Membros da Orquestra Juvenil Gustav Mahler, David Afkham*

Gulbenkian, 8 de Abril

 

 

Na presente temporada do Serviço de Música da Gulbenkian desapareceu um ciclo que era sempre dos mais atractivos, o das Grandes Orquestras, que por norma se apresentavam no Coliseu – circunstância a que não devem ser alheios constrangimentos financeiros. Entretanto, há um outro ciclo, de Orquestras Convidadas e em Residência.

 

Em Fevereiro houve a residência da Orquestra de Câmara da Europa, em que lamentavelmente apenas pude ouvir o último concerto, com uma desastrada interpretação da Missa Solene de Beethoven dirigida por John Nelson, excelente maestro para o primeiro romantismo, Berlioz, Schumann ou Mendelsssohn, mas neste caso de concepção de todo deslocada. E está agora a decorrer a residência da outra orquestra pan-europeia, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler, que Claudio Abbado fundou em 1986, e que foi a primeira a abrir-se a instrumentistas da ex-Europa de leste – e acrescento que uma das maiores emoções da minha vida de melómano, que não é propriamente parca, ocorreu no Festival de Edimburgo em 2002, com Abbado a dirigir esta Orquestra, e sendo solista Martha Argerich, no Concerto em Sol de Ravel.

 

Se bem que o facto tenha já sucedido também com a Orquestra de Câmara Europeia, não deixa de ser raro que a residência de uma formação sinfónica se inicie com um concerto de câmara, como sucedeu no passado dia 8, com um programa que incluía quatro obras-primas da música do século XX – raro e, no caso, altamente sintomático.

 

Eram duas as obras para sopros, o sexteto Mládi/Juventude de Janácek e o Octeto de Stravinsky, e obras modernistas, e duas para cordas e crepusculares, o Prelúdio para sexteto da derradeira ópera de Strauss, Capriccio, e do mesmo autor Metamorfoses para 23 instrumentos de cordas, esta dirigida por David Afkham, actual maestro assistente da orquestra.

 

Com formação sempre variada para cada digressão, a qualidade desta orquestra “transitória” radica-se na excelência dos maestros que a dirigem, Claudio Abbado, Bernard Haitink, Pierre Boulez Colin Davis, Mariss Jansons, Seiji Osawa, António Pappano, etc., mas também no apoio daqueles que o programa da Gulbenkian designa de modo expedito como “músicos ensaiadores”, e que são sim os tutores dos diferentes naipes, músicos solistas de algumas das mais reputadas orquestras europeias.

 

As qualidades sonoras, o sentido do fraseado e a noção do carácter de cada peça foram admiráveis e nas Metamorfoses impôs-se a qualidade da direcção de Afkham, um dos mais proeminentes jovens maestros alemães (provavelmente de ascendência iraniana ou paquistanesa), de gestualidade sóbria e precisa e que imprimiu à interpretação o pathos que a obra requer.

 

Pela raridade do programa, com quatro obras-primas da música do século XX, friso de novo, e pela excelência das interpretações, este foi verdadeiramente um concerto memorável.

Dias de Música

 

 

É importante assinalar que se avizinham dias de música excepcionais – e não, não me refiro aos Dias da Música no CCB, em relação aos quais, além de o programa não me suscitar particularmente, permanece a minha reserva ética de princípio sobre uma iniciativa que, por vontade majestática de António Mega Ferreira, veio substituir a Festa da Música, a extensão em Lisboa da “Folle Journée” de Nantes, dela retirando todavia o figurino da sucessão de concertos de 45 minutos. Refiro-me sim a eventos da temporada da Gulbenkian, concretamente do ciclo Grandes Orquestras, e do programa “Música e Revolução” da Casa da Música.
 
Excepcional é a possibilidade de ouvir, no Coliseu dos Recreios, apenas com três dias de intervalo, as duas mais reputadas orquestras juvenis, mas atenção, juvenis e contudo de grande nível, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler, que foi o modelo, e, pela primeira vez em Portugal, àquela outra que foi formada tendo a Mahler como modelo, a venezuelana Orquestra Juvenil Simón Bolívar, com o seu electrizante director, Gustavo Dudamel.
 
Para mais, hoje, terça-feira, às 21h, os Mahler tocam Mahler, a Sinfonia nº3, o que é caso simbólico, sob a direcção de Ingo Metzmacher, enquanto no sábado, 25 de Abril, à mesma hora, os Bolívar interpretam nem mais nem menos que a obra entre todas “revolucionária”, A Sagração da Primavera de Stravinsky, esse “sacre” latino-americano que é Sensemayá de Silvestre Revueltas, e fieis às suas origens, mas pode-se que também mais de cor local “folclórica”, Santa Cruz de Pacairigua de Evencio Castellano.
 
A Casa da Música vem organizando à volta do 25 de Abril, o ciclo de “Música e Revolução”, o seu único exemplo de programação verdadeiramente transversal. Este ano, o terceiro do ciclo, e se bem que o acontecimento de maior importância vá ser, a 2 de Maio, uma obra que surge lateralmente à temática, Gruppen (enfim!) de Karlheinz Stockhausen, de 1956/57, o leitmotiv é o Maio de 68. Ora, facto também ele absolutamente de excepção, as duas grandes obras do ano de 1968, e de algum modo sintomáticas dessa conjuntura cultural, Sinfonia de Luciano Berio (que, de resto, entre muitas outras citações, do Maio parisiense ou de O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss, é um testemunho da reapreciação de Mahler, e uma homenagem, com a longa citação do Scherzo da Sinfonia nº2) e Stimmung de Stockhausen, serão ouvidas em dias sucessivos, respectivamente sexta às 21h e sábado às 18h.
 
Merece ainda referência, de tal modo é intrigante e original, o projecto musical e poético Caldo Dísio/ Desejo Ardente, proposta do violetista Christophe Desjardins e do filólogo Frederico Sanguinetti, na Culturgest, sexta e sábado 21h30. Conhecemos Desjardins como um grande intérprete de música contemporânea (tem um maravilhoso dedicado a obras de Berio e Feldman). Neste caso a sua viola dialogará com poemas medievais e renascentistas, de Dante, Boccaccio e outros, recitados por Sanguinetti.

Anunciam-se dias de excepção, efectivamente.

 

Less in Algarve

 

Escrevia eu recentemente:” Uma vaga assola o país: a dos centros culturais e dos centros de arte contemporânea. Bom seria que tivesse consistência, mas infelizmente, para além de alguns casos de trabalho continuado e gestão qualificada, o que na maioria dos casos se verifica é a ambição espalhafatosa de alguns edis, que uma vez feita a obra a deixam ao deus-dará, sem conteúdos e programação.”
 
Com as suas particularidades, mas com os mesmos problemas de sustentabilidade nesse quadro de disfuncionalidades na redistribuição cultural no território, se insere a notícia vindo a público na passada semana na imprensa da ameaça da insolvência da Orquestra do Algarve.
 
Em 1992, quando da breve passagem de Maria José Nogueira Pinto pela subsecretaria de Estado da Cultura (antes de se demitir por causa do aval de Santana Lopes à pala do Estádio de Sporting, recordam-se?), o Estado concebeu um plano simultaneamente ambicioso e mais que necessário, o das orquestras regionais. Mas se o Estado central tomou a iniciativa não lhe cabia – e pertinentemente – a gestão directa; constituíram-se associações culturais, agrupamentos de municípios.
 
Creio que neste momento, entre as formações propriamente regionais, resta a Orquestra do Norte: a Filarmónica das Beiras finou-se em 2004 e agora a Orquestra do Algarve está ameaçada de insolvência devido ao conflito que opõe os músicos à associação de municípios da região, e que está em processo judicial.
 
O caso, em si mesmo lamentável – os responsáveis da Área Metropolitano do Algarve querem uma orquestra sim senhor, mas a recibos verdes e com baixos salários, e sem previsão de possibilidades de aperfeiçoamento profissional dos músicos – ainda mais o é por razões que, essas sim, ultrapassam a esfera dos municípios e envolvem o governo, conjugando-se em perspectivas sobre a cultura feitas de eventos sem substância e inscrição real, embora por vezes com muito “show-off”: refiro-me ao Algarve e ao “Allgarve” do verdadeiro ministro da cultura da governação socrática., Manuel Pinho.
 
 
 
 
Num trabalho sobre “O ‘Allgarve’ e a outra oferta cultural” no “Ípsilon” de 27-06-08, o pintor Xana, programador do espaço de exposições do Centro Cultural dde Lagos dizia: “O Allgave tem um problema de raiz que é fazê-lo na época em que toda a gente vem para o Algarve. Devia-se era procurar dinamizar a a actividade cultural e económica a partir do Outono-Inverno”. E liminar era a constatação de Pedro Bartilloti, dinamizador da Sociedade Artística Farense Os Artistas: “Primeiro apregoam que o Allgarve não é só sol e praia. Mas depois é só sol e só no Verão e é só praia porque é só no litoral”.
 
Sem desconsiderar algumas oportunidades dadas a artistas, continuo a achar lamentável a resposta positiva e mesmo esforçada de Serralves à solicitação do Turismo de Portugal, organismo do ministério da Economia, para organizar “exposições de verão” de uma tão parola iniciativa, uma das mais reveladoras do novo-riquismo vigente, patente desde logo na própria designação – ALLgarve. E, de resto, se falo em artistas, também tenho que dizer que foram de algum modo ludibriados: vários desses artistas convidados por Serralves tiveram de investir, tiveram custos na feitura das peças a expor; pois bem, as exposições abriram em Junho/Julho, e só na semana passada, já em Dezembro, esses artistas começaram a ser informados de que iriam ser pagos, enfim – o que quer dizer que ainda por cima o Turismo de Portugal/Ministério do Turismo, tão pronto para o espalhafato e o aparato promocional, tem depois o conhecido vício do Estado de ser mau pagador, tardio.
 
Só pela vontade determinada de não estar calada e de ir chateando o seu sucessor se pode compreender a recente sugestão de Isabel Pires de Lima de um Ministério da Cultura e Turismo (que Manuel Pinho poderia então acumular), comprovando uma vez mais que na sua passagem pelo governo e nos sonhos de grandes eventos nada percebeu das concretas realidades e necessidades culturais do país.
 

 

 

 
Como esse trabalho do “Ípsilion” mostrava, existem estruturas e esforços culturais no Algarve. E depois há o Allgarve de fachada. O risco de insolvência da Orquestra é um exemplo que como em concreto no território os responsáveis não sabem de facto com o que estão a lidar e como. Mas, dizem eles, querem música!
 

Música de Santana



"Nota importante: em consonância com os nossos Estatutos, Declaração de Intenções e tradição teremos , no decurso do jantar, 'apontamentos' musicais"
 
 


Houve um secretário de Estado da Cultura que, inquirido sobre a sua obra musical preferida, respondeu ser ela um Concerto de Violino de Chopin, desconhecido de todos. O secretário de Estado era-o, repita-se, da Cultura. Há um presidente da câmara municipal de Lisboa que um dia, dizem que perguntando-se “espelho meu, espelho meu, que posso mais eu fazer para que falem de mim?”, achou: “já sei, vou fazer uma orquestra sinfónica!”.

Pedro Santana Lopes fica sempre visivelmente incomodado quando vem à colação o tal “concerto de violino”. Sucede que não se tratou de um lapso, mas um daqueles palpites em que Santana é pródigo e que no caso denotava a sua manifestação impreparação no sector que então tutelava como Secretário de Estado.

A Santana Lopes (re)conhece-se o agudo instinto político, o gosto do risco, das altas paradas, certamente também dos “bluffs”. Se fosse frequentador de casinos, e entre a Figueira da Foz e o Parque Mayer tem uma certa tendência para os encontrar ou tentar colocar no caminho, seria um jogador inveterado.

Acontece que a acção política exigirá instinto e mesmo carisma mas também racionalidade, sobretudo quando os objectivos e as até legítimas ambições pessoais visam sempre mais alto. E exige-o mesmo um contexto altamente mediatizado e a um político hiper-mediático, comentador do Telejornal da RTP/1, colunista do “Diário de Notícias” e de “A Bola”, enfim alguém que, como diria o seu aparentado Martins da Cruz, gostava de viver sob as “spotlights”.

Mesmo que, enfim, o próprio já esteja a visar mais alto ‹ e basta olhar o calendário político para verificar que um candidato presidencial não poderá propor-se à reeleição na câmara de Lisboa, haverá um momento em que ele ou responderá pela “obra” ou atinge o princípio de Peter,   haverá um momento em que se colocará a fundo a questão da sua credibilidade. Só que, até lá, Santana Lopes, se vai mantendo alerta as tropas, vai também espalhando a confusão.

Agora deu-lhe para anunciar a fundação de uma orquestra sinfónica de Lisboa. Não uma orquestra qualquer, mas uma tão boa como as concorrentes (presume-se que Berlim e Viena). E olhando nas relações, encarregou do projecto Duarte Lima e António Victorino d¹Almeida.

A orquestra é necessária? Sem a mais pequena dúvida! A Orquestra Sinfónica Portuguesa, sediada em Lisboa, no Teatro Nacional de São Carlos, foi uma solução de convergência ditada pelas circunstâncias, era secretário de Estado da Cultura Pedro Santana Lopes, mas tendo o projecto sido gizado pela subsecretária Maria José Nogueira Pinto, e tendo-se pelo meio interposto uma célebre pala do estádio do Sporting, levando à saída da subsecretária, logo Santana se achou em estado de dar um arzinho da sua graça, torpeando a seriedade do projecto ao afastar o indigitado maestro-titular, Martin André.

Mas hoje, repartida entre as suas funções nas representações operáticas e alguns concertos, é evidente que a OSP não está em condições de ser a orquestra sinfónica com programação regular e agregadora de público que falta em Lisboa. Isso o sugeri há meses quando da crise suscitada em relação aos “benefícios” do director da Orquestra Metropolitana, Miguel Graça Moura: “Querem discutir mesmo? Proponho então um tema: reconsiderar com o Estado central a inexistência real de uma orquestra com temporada de concertos sinfónicos em Lisboa”.

Colocou o presidente da CML a questão à tutela? Não há o mais pequeno indício. Compreendemos todos que seja difícil a qualquer autarca, a qualquer responsável, discutir projectos de fundo com um Ministério da Cultura em que o titular é inexistente. Mas a questão é outra: Santana trabalha a auto-suficiência do seu “curriculum” político. Como poderia ele negociar a constituição de uma orquestra em parceria com o Estado?

Há algum estudo? Nem pensar! De que vale estar a questionar como será feito o recrutamento e garantidas as infra-estruturas se é absolutamente óbvio que não há ideia real dos custos e das fontes de financiamento? Sabe Santana as percentagens da participação do Estado em instituições “congéneres”, por exemplo a Orquestra de Paris? E como vai ele contornar a disciplina orçamental imposta por Ferreira Leite?

Têm Duarte Lima e Victorino d'Almeida “curricula” de gestores culturais? Um é um respeitável melómano, que gosta de piano e toca orgão, coisas que não são suficientes para um projecto sinfónico; o outro, dito “o maestro”, é um dos mais gritantes equívocos culturais deste país, cuja carreira propriamente como maestro não existe (só terá dirigido uns concertos com obras suas), mas ao qual se conhece antes a actividade conjunta com cançonetistas ou a vocação para o piano-bar - mas lá por isso, calhando ele bem no “wonder-bar” do Casino Estoril, Santana, que aí tem boas relações, pode dar uma ajudinha, e poupa-nos as desgraças.

Para fazer uma orquestra sinfónica é preciso muito mais que atirar poeira para os olhos. E muito mais seriedade do que a de quem tem os ouvidos empoeirados pelo concerto de violino de Chopin.

Os violinos de Santana – “Público”, 23-02-03