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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Património - um escândalo

 

 

 

 
Se há ou houve governo “liquidacionista” do sector cultural é certamente este de José Sócrates. Nem nas piores horas de secundarização do sector durante o cavaquismo, quando a austeridade de cortes sem nexo da ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite a ele também se estendeu, ou nas trapalhadas, nesta área também, do governo de Santana Lopes, houve uma tão prosseguida política de negligência e mesmo de quase liquidação do sector.
 
Porque entendo que no contrato político democrático é fundamental a atenção dos governados face aos compromissos publicamente assumidos pelos governantes, relembro ainda uma outra vez o que consta do programa do governo:
 
“A política cultural para o período 2005-2009 orientar-se-á por três finalidades essenciais. A primeira é retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram. A segunda é retomar o impulso político para o desenvolvimento do tecido cultural português. A terceira é conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da cultura portuguesa. A opção política fundamental do Governo é qualificar o conjunto do tecido cultural, na diversidade de formas e correntes que fazem a sua riqueza do património à criação, promovendo a sua coesão e as suas sinergias.”
 
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo.”
 
Em vez disso, o que assistimos? Desaparecimento político quase total do Ministério da Cultura, nomeadamente face ao das Finanças e também o da Economia, cujo titular se armou na pose de “ministro da ‘cultura de luxe’”; asfixia financeira reforçada; revogação do Estatuto do Mecenato; intervenção autoritária e liquidação de trabalhos sustentados nos Teatros Nacionais Dona Maria e São Carlos e no Museu Nacional de Arte Antiga; confusões burocráticas mastodônticas com a alteração do estatuto de institutos públicos. Pois como se isso tudo já não fosse pouco chegou agora, constata-se, a hora do património. “Defesa e valorização do património cultura”? Homessa!
 
A notícia do “Público” de ontem, “Vender um monumento poderá ser mais fácil”, tem de ser lido várias vezes (eu tive) para se perceber bem, de tão literalmente inacreditável que é. De acordo com o novo “regime geral dos bens de domínio público” elaborado pelo ministério das Finanças, este podem não só ser “objecto de uso privativo”, como também está prevista a sua “venda e oneração pelas vias do direito privado”. Alienar, obter possivelmente as receitas extraordinárias a que os ministros das Finanças costumam recorrer, eis o caminho aberto. A arqueóloga Ana Dias, Técnica do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, dá um exemplo que se diria extravagante, mas possível segundo o quadro legal ora proposto: o Mosteiro de Alcobaça podia ser transformado num “hotel de charme”! Ou vendida a Torre de Belém, diz a jurista Maria João Silva!
 
É uma “uma inovação de tal forma chocante que estamos certos de vir a constituir um escândalo nacional”, frisa-se num documento da recém-constituída Plataforma pelo Património Cultural. Um escândalo, nem menos, que não pode passar desapercebido, que é uma questão cívica maior – porque implica a memória colectiva e exige uma regulamentação bem definida e prudente. Da parte do governo, nota a Plataforma, há um “silêncio ensurdecedor”, mas um sinal de interesse surgiu: em Janeiro serão recebidos pelo Presidente da República.
 
Quanto ao ministro da Cultura, que se saiba, permanece na Ajuda, como de costume, a ver lá do alto os navios passarem – ou a barca a naufragar.

 

Um disparate de maravilha

Ruínas da Igreja de S. Paulo em Macau

 
 
 
 
Confesso que nada sabia da iniciativa das “Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo” e da polémica que estava a suscitar até um dia destes ter sido contactado para um comentário por uma publicação. A iniciativa devia arrancar hoje com o voto simbólico do Presidente da República. A boa notícia, viemos a sabê-lo hoje mesmo, é que com tanta polémica foi afinal adiada. Se calhar a má notícia é que não foi pura e simplesmente cancelada.
 
A empresa promotora – porque há uma empresa promotora -, no fundo uma “produtora de eventos” como agora se usa dizer, era a mesma das “Novas Setes Maravilhas do Mundo”, que teve a sua final em Lisboa, em Julho do ano passado, que para o efeito criou mesmo um “label”, como se diz na indústria discográfica, a “New 7 Wonders Portugal”.
 
Lembram-se do choque que foi suscitado pelo concurso dos “Grandes Portugueses”, com o ditador Salazar em 1º lugar, e um homem de vocação também ditatorial, Álvaro Cultural, em segundo? Parece muito diferente, e de vocação cultural a iniciativa ora adiada, mas o princípio de base é exactamente o mesmo, o simulacro de uma democracia participativa, por via dos meios tecnológicos.
 
Já aqui tive ocasião de recordar que escrevi em tempos um texto, “Foi você que pediu uma democracia SMS?”, sobre a intrínseca perversidade das sugestões mediáticas dessa pretensa “democracia participativa” e os “inquéritos feitos” por jornais junto dos seus “leitores” – dos leitores que se dispõe a fazer militantemente a sua opção por meio da Internet, como é óbvio. E esse meu texto data de Novembro de 2002, bem antes portanto da celeuma provocada pela votação nos “Grandes Portugueses” – e nessa ocasião recordei também quão curioso achava que o mesmo método tenha sido “pacificamente” aceite como metodologia de outro análogo concurso, o das “Novas Sete Maravilhas do Mundo”, que até teve o patrocínio do Ministério da Cultura da Profª Pires de Lima, e mesmo um representante destacado em jeito de comissário por esse ministério, nada menos do que um dos bonzos do regime, o Prof. Freitas do Amaral, supondo-se que deveria mesmo ter sido motivo de “orgulho nacional” o facto da apoteose ter tido lugar em Lisboa!
 
Neste agora não falta outra vez a chancela do patrocínio do ministério da Cultura, mas também da própria Presidência da República. E claro que também há comissário, e olha quem!, nada mais que um bonzos acumuladores-mor do regime, o ex-ministro e ex-comissário europeu António Vitorino, dirigente do partido do governo, o homem que além de ter um programa de opinião no 1º canal da televisão pública, está também na situação, certamente única no mundo, de ser colunista num jornal, o “Diário de Notícias”, e ser membro do Conselho Editorial do concorrente directo, o “Público”, e que, não obstante não se lhe conhecerem particulares interesses culturais, foi também nomeado já por este governo para o Conselho de Administração da Fundação Vieira da Silva – Arpad Szenes, mais este comissariado agora – talvez em reminiscência pela sua passagem pelo governo de Macau.
 
A notícia do adiamento no “Público” de hoje dá suficientes pormenores da contestação por parte de historiadores e especialistas entre 22 bens entre os que figuram na lista do Património Mundial da UNESCO. Como fazem notar pessoas de reconhecida competência, como Pedro Dias (que esteve na origem da contestação), Paulo Varela Gomes ou Paulo Pereira, desde logo há critérios políticos na escolha da UNESCO, nas suas inclusões e exclusões, há bens em que a origem portuguesa é discutível e outros em que, sendo essa origem inegável, e que são de não menos inegável importância, não estão contudo incluídos. É curial citar nomeadamente a seguinte chamada de atenção:
 
“Paulo Varela Gomes, numa apreciação dos 22 bens, lamenta o excesso de lugares africanos, a maioria dos quais sem qualquer relevância monumental’, também ‘a abundância de cidades brasileiras’ e, em contrapartida, o facto de surgirem ‘apenas cinco sítios na Ásia’. E vê nisto o sinal de que a UNESCO ‘não tem achado politicamente correcto chamar a atenção ou assinalar o passado histórico mais ‘imperial’ dos portugueses. Por esta razão, diz este historiador (e Pedro Dias e Walter Rossa concordam), estão de fora da lista sítios especialmente relevantes na Índia, como Diu, Damão, Baçaim, Chaul ou Cochim. Outros bens ‘indesculpavelmente’ excluídos são Mombaça, no Quénia, Paraty, no Brasil, ou a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Bangladesh. Para além de património nos países africanos de língua portuguesa, como a cidade velha de Santiago, em Cabo Vede, a cidade alta de Luanda, Angola, as roças cafeeiras de São Tomé e Príncipe ou a ilha de Ibo, em Moçambique”.
 
Mas se já tudo isto é contestável, e quanto, há de se perguntar, com redobradas razões, com que raio de conhecimento de causa iriam os votantes fazer por telefone, Internet ou sms as suas escolhas, como se pode aceitar qualquer espécie de decisão que seria ou será sempre consequência de redes mais ou menos de “lobby”?
 
Pois, da outra vez, a das “Nova Sete Maravilhas do Mundo”, o concurso encerrou com um espectáculo no Estádio da Luz com – horror! – Jennifer Lopez e tudo, que para azar da difusão e venda de direitos (porque para a “produtora de eventos” também disso se trata) calhou ter a concorrência do “Live Earth” patrocinado por Al Gore. Se calhar agora, para a data apontada do próximo 10 de Junho, já estavam a pensar em Nelly Furtado e outros luso-descendentes.
 
Como se pode atribuir qualquer seriedade a uma tal iniciativa? Como é possível que o ministro da Cultura e mesmo o Presidente da República “apadrinhem” tal iniciativa sem ter a noção de que culturalmente é uma fraude?
 
Mas, enfim, reconheça-se que a pretexto de património há um conceito de “cultura-espectáculo” (o mero conceito de concurso, desde logo) ao gosto do “show-off” da governação vigente. “Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo” não será mesmo um tema apropriado para um programa destinado aos “Magalhães”?

 

O Tiepolo e a Ajuda

 

 

No mesmo dia 12 em que foi a ministra Isabel Pires de Lima foi à Gala Exclusiva do Millenium-BCP no São Carlos atribuír a comenda do Mérito Cultural à instituição, ficou também finalmente classificada a “Deposição de Cristo no Túmulo” de Tiepolo.
 
O desfecho do processo não pode fazer esquecer quanto ele foi atabalhoado. Não fosse o impacto público da questão e teria com toda a probabilidade sido outra a conclusão,  tal o somatório de contradições do ministério da Ajuda. Depois de, numa primeira fase, as declarações terem sido de lamento, mas de indisponibilidade de verbas, a total impreparação confirmou-se de seguida numa extravagante troca de esclarecimentos com a leiloeira, sobre a possibilidade de estrangeiros poderem ou não licitar um quadro, e sobre o impedimento daquele, enquanto bem arrolado, saír do país.
 
E quanto ao próprio desfecho, também não se pode dizer que ele tenha sido propriamente surpreendente: talvez a ministra, ela e os seus assessores, nem se tivessem lembrado, a julgar pelo comportamento errático que tiveram, mas era sabido que existia um fundo possível, o da indemnização de 6.2 milhões de euros pelo roubo das Jóias da Coroa numa exposição em Haia. De resto, até dois dias antes do leilão um leitor , Álvaro de Sousa, de Valongo, lembrava isso mesmo nas cartas ao director do “Público”. E foi o recurso a essa verba, como se sabe, que permitiu a compra pelo Estado.
Noutro plano, não é menos sintomático que esteja já no esquecimento generalizado que as ditas Jóias da Coroa saídas da Ajuda - e que, por terem sido furtadas, acabaram por ser indirectamente a ajuda à compra do quadro de Tiepolo - ,  foram cedidas num quadro de todo desproporcionado para uma exposição de fins didácticos num museu menor. Talvez se lembrem alguns do manifesto enfado com que à época Isabel Silveira Godinho, conservadora do Palácio, respondeu às questões da imprensa, como se ela tivesse alguma coisa a ver com isso. Mas a governação era do PSD e Isabel Silveira Godinho, como é público, é amiga muito próxima de Aníbal e Maria Cavaco Silva, pelo que a sua (ir)responsabilidade ficou indemne.
 
É de episódios como este, sem quaisquer consequências no que concerne ao exercício real de responsabilidades, que também se faz a gestão cultural do ministério, Mas talvez haja igualmente razões mais práticas: o Palácio da Ajuda, além de ser sede do ministério da Cultura, é cenário de tantas cerimónias oficiais que, com Jóias da Coroa ou sem elas, Isabel Silveira Godinho pode continuar a exercer primorosamente as suas funções de governanta dedicada. E, afinal, estando lá há mais de vinte anos, é já parte da mobília. Mas porquê pedir responsabilidades?

Andreas Staier, o pianoforte e o Clementi abandonado de Queluz

Andreas Staier


Ainda no ciclo barroco da Casa da Música tive ocasião de ouvir Fabio Biondi com a Europa Galante dar a conhecer-nos extractos de uma pouco interessante ópera de Domenico Scarlatti, Narcissus, mas infelizmente não pude assistir – e tinha o maior interesse – uma semana depois a um outro concerto, fruto do trabalho que entretanto Biondi fizera com a própria Orquestra Barroca da Casa da Música.

Ouvi sim o recital de Andreas Staier em pianoforte, a 18 de Novembro, tocando nomeadamente obras de Domenico Scarlatti (estas sim, as importantes, algumas sonatas) e Mozart, não só pelo prazer de ouvir esse espantoso músico como também pela curiosidade em saber como soaria o instrumento na Sala Suggia, o grande auditório da Casa da Música.

Essa estreia foi eloquente, pelas incríveis cores e variedades de planos obtidas por Staier, um verdadeiro alquimista das teclas. Ocorreu-me de súbito a memória antiga da estreia de Gustav Leonhardt em Portugal: o único cravo de modelo de época existia no Porto, propriedade de Maria Lurdes Santos (também este pianoforte ora usado é particular, propriedade de Helena Marinho), e foi aí, no Ateneu Comercial, que Leonhardt se apresentou a 4 de Maio de 1979, a que se seguiu, um dia depois, um recital de orgão na Sé de Lisboa.

Mas recordei-me também ter sido o mesmo Andreas Staier, a 14 de Setembro de 2002, em Queluz, nos Concertos PT/ Em Órbita, que fez o primeiro recital com o pianoforte Clementi restaurado por Joop Klinkhamer, com os fundos obtidos pelo Em Órbita com receitas de bilheteira dos concertos, por contributo privado pois.

É mais que inépcia, é gravoso desleixo dos responsáveis por Queluz e da sua tutela, que com o fim daqueles Concertos o instrumento tenha ficado sem utilização, o que é o mesmo que ao abandono, já que a sua conservação em bom estado depende de uso. É assim que a gestão dos orgãos e entidades do ministério da Cultura vela pelo património, e pelo património que foi possível restaurar por contributo generoso de privados! “Conservadores”, dizem eles? Burocratas negligentes, isso sim!