Vivacidade napolitana
Lo frate ‘nnamorato
de Pergolesi
encenação de Luca Aprea
Os Músicos do Tejo, Marcos Magalhães
Centro Cultural de Belém, 20 de Novembro, às 21h
Um dos aspectos mais estimulantes do recente panorama musical português é o florescimento de grupos dedicados à interpretação historicamente informada de música antiga e barroca. Destes apenas um, a Orquestra Barroca da Casa da Música, teve uma origem institucional, os outros sendo consequência da iniciativa e interesse autónomos de músicos.
O movimento é, como se sabe, genérico, e talvez mesmo o mais marcante do panorama musical internacional nos últimos 20 ou 30 anos. Num livro que já se tornou uma referência não apenas para a sociologia da música, mas também para a agora justamente designada “sociologia das mediações” e mesmo para as ciências humanas em geral, Antoine Hennion dedicou-lhe largo espaço de análise em La Passion Musicale – Une sociologie de la médiation (Métailié, 1993). Mas o movimento começou a manifestar-se com um considerável atraso em Portugal, tendo vindo a vingar fruto do lastro deixado pelos saudosos Cursos de Mateus, pelo início de cursos específicos em escola de música e academias, por especializações no estrangeiro, ou pelo interesse de músicos que já alguns deles paralelamente aos seus instrumentos tradicionais se começaram também a dedicar aos antecedentes barrocos daqueles.
Um desses grupos foi o Ensemble Barroco do Chiado, com base no qual os cravistas Marcos Magalhães e Marta Araújo constituíram um outro, Os Músicos do Tejo, vocacionado para o reportório de autores portugueses mas também visando contextualizá-los, abordando pois autores e reportório que tenham influenciado esses compositores portugueses. È assim que deram um passo que faltava, pesem ainda algumas esporádicas realizações anteriores: a ópera. E é assim que depois do sucesso da apresentação de La Spinalba de Francisco António de Almeida no Centro Cultural de Belém em Fevereiro de 2008, sucesso que levou mesmo à sua reposição em Janeiro de 2009, abordam agora uma obra arquetípica da commedia musicale, Lo frate ‘nnamorato de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).
Pergolesi deve a sua reputação antes do mais à tempestade provocada pela apresentação em Paris, em 1752, da sua ópera bufa La serva padrona, originalmente um intermezzo (apresentado entre os actos de uma ópera séria), desencadeando a famosa Querelle des Bouffons, dos partidários da ópera bufa contra os defensores da tradição francesa da tragédie lyrique, de Rousseau contra Rameau. Outra obra sua é célebre, é mesmo hoje a mais célebre das suas obras e uma das mais reputadas de todo o reportório barroco, o Stabat Mater. Acrescente-se a isso a sua muito curta vida e ficam estabelecidas as razões fundamentais da sua nomeada.
Mas como compositor na altura em que florescia a escola napolitana, Pergolesi também compôs óperas sérias, como uma versão do célebre texto de Metastasio L’olimpiade, ou commedie per musica, que tinham estatuto autónomo, diferente do intermezzo, constituindo um espectáculo. A mais célebre é justamente Lo frate ‘nnamorato, pela sua importância histórica e por ser a de maiores ecos modernos, por via da produção dirigida por Riccardo Muti, em 1989 no Scala, de que há registo em disco e em dvd. Abordar esta obra é pois um salto, e um salto ousado, para Os Músicos do Tejo.
Esclareça-se desde já que embora o programa indique apenas “espaço cénico”, não se trata de uma apresentação semi-staged, como hoje tanto se pratica, mas mesmo de uma encenação, só que com um espaço muito simples mas também muito funcional. Luca Aprea, que trabalhou nomeadamente com o mestre maior do teatro da tradição napolitana, Roberto de Simone, logrou uma encenação de grande vivacidade e por vezes de franca comicidade, o que é importante ao gesto de nos apresentar uma obra como Lo frate ‘nnamorato.
Mantendo sempre o interesse, a realização musical é no entanto desigual. Marcos Magalhães mostrou à saciedade as suas aptidões no baixo dos recitativos, mas como maestro falta-lhe um gesto mais preciso e falta à sua direcção uma maior vivacidade; mantém todavia a coesão do conjunto, com destaque para o esplêndido quinteto que conclui o Acto II. As cordas ressentem-se com uma articulação e um fraseado que nitidamente precisariam de ser muito mais trabalhados, enquanto os sopros são aptos, com inevitável destaque para esse músico de excelência que é António Carrilho em flauta de bisel.
A desigualdade é ainda mais notória nos intérpretes dramático-vocais, desde logo porque os homens são muito superiores às mulheres. João Fernandes é português mas é um cantor internacional, por via do seu trabalho sobretudo com Les Arts Florissants e William Christie. No papel de Dom Pietro, o mais cómico, papel de um pedante ridículo, Fernandes é impagável, e é em especial brilhante em “Si stordisce il Villanello”, ária de voz mista, de peito e de cabeça (falsete). Luís Rodrigues (Marcaniello) e Carlos Guilherme (Carlo) são dois intérpretes em plena maturidade, cada vez melhores, sendo que o primeiro tem também um apurado sentido cénico.
Do lado feminino, como disse, o panorama é mais problemático. Falta caracterização aos amantes, Eduarda Melo (Ascanio, um papel travestido) e Inês Madeira (Luggrezia) e o desequilíbrio acentua-se ainda mais nas duas duplas, Nina e Nena e Vanella e Cardella (os nomes dizem da proximidade), com Sara Amorim (Nina) e Sandra Medeiros (Vanella) mais desenvoltas enquanto Joana Seara (Cardella) é baça e Carla Caramujo (Cardella) estridente.
Há um grande lapso, em relação aos padrões já internacionalmente correntes, na apresentação de óperas barrocas em Portugal, e a mais recente, a Agrippina de Haendel no São Carlos foi mesmo um desastre incomensurável. Tanto mais se salienta o gesto de realização agora de Lo frate ‘nnamorato, que apesar dos desequilíbrios apontados, justifica uma viva recomendação.
Próximos espectáculos: CCB, hoje e amanhã às 21h.