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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Manifesto pelo cinema português - II

 

O Manifesto pelo cinema português é um documento da maior importância e urgência, e por isso entendi colocá-lo também aqui – sendo uma excepção que publique um texto alheio. Mas, como se compreenderá, não deixo por isso de ter opinião própria.
 
A situação é de facto de asfixia, e a criação de um Fundo de Cinema para o Cinema e Audiovisual, FICA, ao lado do Instituto de Cinema e Audiovisual, ICA, que participa enquanto parceiro público no outro, e o funcionamento até agora desse Fundo, só vieram afinal criar mais disparidades e prepotências, em vez de diversificar as fontes de financiamento com regras claras.
 
Numa carta aos produtores, que o público.pt divulgou, a ministra da Cultura reconhece a paralisia do FICA, que precisa de novos parceiros e a substituição da sua entidade gestora, que por extraordinária que pareça tem sido a ESAF, Espírito Santo Fundos de Investimento Mobiliário! Acontece que se há paralisia institucional, o FICA não deixa de ter concedido apoios que, ao contrário da necessidade de regras claras, se caracterizam pela arbitrariedade e facciosismo.
 
Nesta circunstância, com diminuição significativo do número de filmes produzidos, uma chamada de atenção e um apelo público eram imperativos, sendo de salientar que o manifesto reúne um conjunto sem precedentes dos cineastas portugueses mais representativos (exceptuando, como é óbvio, aqueles que prosseguem uma mirífica indústria do audiovisual, que o mercado interno nunca poderá comportar – tenho respeito pela competência e coerência de alguns deles, e entendo, e sempre entendi, que se deveria garantir a pluralidade do cinema português, mas acho o “discurso da indústria”, além de inconsequente, pernicioso), do patriarca do cinema mundial, Manoel de Oliveira, de 101 anos, Palma de Ouro especial do Festival de Cannes, entre muitas outras distinções (Veneza, Berlim, etc.), ao jovem João Salaviza, de 26 anos, Palma de Ouro da Curta-Metragem na última edição de Cannes. Já no tocante aos produtores, e tem também que se assinalar, o leque é muito de uma escala micro, apenas se salientando as subscrições da Filme do Tejo e da Midas – esta conhecida sobretudo como imprescindível editora de dvds, mas que além de igualmente distribuidora, tem um significativo número de documentários produzidos.
 
Começo por assinalar aquilo em que divirjo do documento, desde logo no pressuposto de que “Nunca nos últimos vinte anos teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão grande vitalidade criativa” – não concordo e acho factualmente incorrecto.
 
O grande período de florescimento do cinema português foram sim os anos 80, e, caso excepcional no panorama mundial no tocante a pequenas cinematografias, a repercussão internacional prolongou-se ainda pelos anos 90. Ao contrário desse “estado de excepção”, entendo que na última década o cinema português, se teve um florescimento dos documentários e curtas-metragens, se a década foi também a da consagração de Pedro Costa como um dos grandes cineastas da actualidade, do ainda mais alargado reconhecimento do malogrado João César Monteiro e da emergência de dois outros autores de estatuto internacional, João Pedro Rodrigues e Miguel Gomes, foi igualmente a de apagamento criativo de alguns cineastas, e sobretudo que o cinema português, em vez do “estado de excepção” se “normalizou”, com o que isso supõe de mediania dominante. Chamo aliás a atenção, e é factualmente comprovável, que a presença de filmes portugueses nas diversas secções dos grandes festivais internacionais baixou de forma muito significativa, em relação às duas décadas anteriores.
 
Isto leva-me a uma segunda divergência, esta bastante polémica e “impopular”. Se acho imprescindível aumentar a produção de primeiras obras, documentários e curtas, não subscrevo de modo algum uma genérica reivindicação de “mais filmes”. Acho mesmo que para o impacto real que têm, no acolhimento pelos diferentes segmentos de público, na recepção crítica, e difusão internacional (festivais e vendas), há antes “filmes a mais”.
 
O que há também, e são pontos que me espanta que o Manifeste não foque, são dois problemas gravíssimos: um é a suborçamentação dos filmes, com as mais danosas consequências para o seu acabamento e valor, e outro é a catastrófica falta de rigor dos júris de atribuição de subsídios do ICA. Não se trata de dizer, como é tantas vezes discurso corrente no meio, que X devia ser subsidiado e não Y – isso é uma “política de gosto”, inaceitável nos princípios de subsidiação pública de um Estado Democrático.
 
Trata-se sim de dizer (e permitam-me que refira que o digo com a experiência de ter lido e dado pareceres sobre centenas de projectos de cinema e televisão de quase toda a Europa nos anos em que fui consultor do Script Fund do Programa Media da União Europeia) que os membros de júris cinematográficos têm de ter uma capacidade específica de apreciação dos projectos atendendo aos curricula dos realizadores, do impacto das suas obras anteriores e do tipo de públicos a que se destina. Em vez disso os júris têm sido constituído por literatos e “nomes de prestígio”, com as mais nefastas consequências – por exemplo, é incompreensível, mas há casos, em que determinado filme tem impacto público quase inexistente, e logo de seguida o realizador tem novo subsídio, e até um outro depois.
 
Explicitadas as divergências, acho o Manifesto um documento importantíssimo, com alguns pontos do maior relevo, como a actualização das taxas de distribuição e exibição e a canalização para o cinema, mais que justificada e urgentíssima, da taxa sobre os dvds, da normalização do funcionamento da FICA, e de fazer nele entrar as novas plataformas por cabo, e das relações com a RTP, (que cada vez é mais só residualmente um serviço público), etc., etc., sem esquecer, ponto da maior importância, o apoio à distribuição e exibição independentes, tão estranguladas. De facto, “está na altura dos poderes públicos assumirem as suas responsabilidades” e “é urgente uma intervenção de emergência no cinema português”.
 
Por isso, apesar das divergências de análise (até porque sou crítico e programador e não realizador ou produtor), publiquei aqui o Manifesto com o link para a petição pública, assinei esta e apelo à sua subscrição. A ministra da Cultura, não pode deixar de atender a um tal documento.

Manifesto pelo cinema português - I

 

Nunca como nos últimos vinte anos teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão grande vitalidade criativa. E nunca como hoje ele esteve tão ameaçado.

No mesmo ano em que um filme português ganhou em Cannes a Palma de Ouro da curta-metragem e tantos e tantos filmes portugueses foram vistos e premiados um pouco por todo o mundo, o cinema português continua a viver sob a ameaça de paralisação e asfixia financeira.

Desde há dez anos que os fundos investidos no cinema não cessaram de diminuir: a produção e a divulgação do cinema português vivem tempos cada vez mais difíceis.


E a criação de um fundo de investimento (e a promessa de um grande aumento de financiamentos) revelou-se uma enorme encenação que na generalidade só serviu para legitimar o oportunismo de uns tantos.

O cinema português vive hoje uma situação de catástrofe iminente e necessita de uma intervenção de emergência por parte dos poderes públicos e em particular da senhora ministra da Cultura.

O cinema português - o seu instituto -, ao contrário do que é repetido vezes sem conta, é financiado por uma taxa (3,2 por cento) sobre a publicidade na televisão, e não pelo Orçamento de Estado.


O financiamento do cinema português desceu na última década mais de 30 por cento e a produção de filmes, documentários e curtas-metragens não tem parado de diminuir.

O fundo de investimento no cinema, que era suposto trazer à produção 80 milhões de euros em cinco anos, está paralisado e manietado pelos canais de televisão e a Zon Lusomundo, e não só não investiu quase nada, como muito do pouco que investiu foi-o em coisas sem sentido.

Por isso se torna imperioso e urgente

a) normalizar o funcionamento desse fundo e multiplicar as verbas disponíveis para investimento na produção de cinema, nomeadamente multiplicando as receitas do Instituto de Cinema, e tornando as suas regras de funcionamento transparentes e indiscutíveis;


b) normalizar a relação da RTP (serviço público de televisão) com o cinema português, fazendo-a respeitar a lei e o contrato de serviço público, assinado com o Estado português;


c) aumentar de forma significativa o número de filmes, de primeiras obras, de documentários, de curtas-metragens, produzidos em Portugal;


d) e actuar de forma decidida em todos os sectores - não apenas na produção, mas também na distribuição, na exibição, nas televisões (e em particular no serviço público), e na difusão internacional do cinema português.


Depois de mais de seis anos de inoperância e desleixo dos sucessivos ministros da Cultura, que conduziram o cinema português à beira da catástrofe, impõe-se:


1. Normalizar o funcionamento do FICA (Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual), reconduzindo-o à sua natureza original: um fundo de iniciativa pública, tendo como objectivo o aumento dos montantes de financiamento do cinema e da ficção audiovisual original em língua portuguesa e o fortalecimento do tecido produtivo e das pequenas empresas de produção de cinema. E fazer entrar nos seus participantes e contribuintes os novos canais e plataformas de televisão por cabo (meo, Clix, Cabovisão, etc.), que inexplicavelmente têm sido deixados fora da lei;


2. Multiplicar as fontes de financiamento do cinema português, nomeadamente junto da actividade cinematográfica, recorrendo às receitas da edição DVD (a taxa cobrada pela IGAC, cuja utilização é desconhecida, e que na última década significou dezenas de milhões de euros); à taxa de distribuição de filmes (que há décadas não é actualizada) e à taxa de exibição. As receitas das taxas que o Estado cobra ao funcionamento da actividade cinematográfica devem ser integralmente reinvestidas na produção e na divulgação do cinema português (produção, distribuição, edição DVD, circulação internacional);


3. Aumentar as fontes de financiamento do Instituto de Cinema, para aumentar o número, a diversidade, a quantidade e a qualidade, dos filmes produzidos. Filmes, primeiras obras, documentários, curtas-metragens, etc.


4. Apoiar os distribuidores e exibidores independentes, e estimular o aparecimento de novas empresas nesta actividade, de forma a que o cinema português, o cinema europeu e o cinema independente em geral possam chegar junto do seu público. E apoiar os cineclubes, as associações culturais e autárquicas, os festivais e mostras de cinema, que um pouco por todo o país fazem já esse trabalho;


5. Fazer cumprir o contrato de serviço público de televisão por parte da RTP, que o assinou com o Estado português, e que está muito longe de o respeitar e às suas obrigações, na produção e na exibição de cinema português, europeu e independente em geral. E contratualizar com os canais privados e as plataformas de distribuição de televisão por cabo as suas obrigações para com a difusão de cinema português.

O cinema português que vale a pena tem hoje em dia, apesar da paralisia, quando não da hostilidade, dos poderes públicos, um indiscutível prestígio internacional. Os seus realizadores, actores, técnicos, produtores não deixaram de trabalhar, apesar de tudo o que se tem vindo a passar. Está na altura de os poderes públicos assumirem as suas responsabilidades.


É necessária uma nova Lei do Cinema, mas é urgente uma intervenção de emergência no cinema português.




Os realizadores Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Jorge Silva Melo, João Botelho, Pedro Costa, João Canijo, Teresa Villaverde, Margarida Cardoso, João Pedro Rodrigues, Bruno de Almeida, Catarina Alves Costa, João Salaviza


e os produtores Maria João Mayer (Filmes do Tejo), Abel Ribeiro Chaves (OPTEC), Alexandre Oliveira (Ar de Filmes), Joana Ferreira (C.R.I.M.), João Figueiras (Black Maria), João Matos (Terratreme), João Trabulo (Periferia Filmes), Pedro Borges (Midas Filmes)

 

 

 

Para subscrever: http://www.peticaopublica.com/?pi=P2010N1571