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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Um concerto húngaro

 

Bartók, Kodály e Ligeti
 
 
 
Ligeti
Concerto Romeno
Bartók
Concerto para Piano nº3
Rapsódia Para Violino e Orquestra nº1
Kodály
Danças de Galanta
Suite “Háry Janos”
Radu Lupu, Mihela Costea
Orquestra Gulbenkian, Lawrence Foster
Gulbenkian, 14 de Novembro às 19h
 
 
È provável que para muitos espectadores o interesse maior desta programa da Orquestra Gulbenkian se radicasse na presença como solista de Radu Lupu – os mais atentos teriam mesmo presente o ineditismo de o ouvir num reportório inesperado, com o Concerto nº 3 de Bartók. Sem prejuízo desse ponto importante dever-se-ia sublinhar outro ponto que aliás engloba o anterior: a coerência do programa.
 
Lawrence Foster, maestro titular e director musical da Orquestra Gulbenkian, tem entre outras uma qualidade: engendra por vezes programas imaginativos e coerentes que se afastam da rotina. Foi o caso de modo destacado deste que reunia obras só de autores húngaros com a particularidade de ter dois solistas romenos e um maestro americano de ascendência romena (e aliás pode presumir-se que essa proximidade é uma das razões da parceria privilegiada Lupu – Foster), que aliás é o mais reputado intérprete do mais notório compositor romeno, George Enescu.. Como que estabelecendo a passagem o programa abria com o Concerto Romeno do húngaro Ligeti, autor aliás nascido na Transilvânia romena onde há uma minoria húngara; já agora acrescente-se que as Danças de Galanta de Kodály aludem a uma localidade situada na Eslováquia, onde também existe uma minoria húngara.
 
As “escolas nacionais” floresceram na segunda metade do século XIX como afirmação de particularismos face à hegemonia do romantismo austro-alemão, embora colhessem no húmus desse romantismo, pelo menos na sua afirmação inicial, a ideia de inscrição na “comunidade”. Se formalmente algumas dessas escolas ou compositores permaneceram todavia do ponto de vista formal dependentes do centro austro-alemão, como no caso dos checos Smetana e Dvorák, já a escola russa teria a prazo fundas consequências na música europeia, com a singularidade genial de Mussorgski, que influenciaria Debussy, e sobretudo, numa geração seguinte, com Igor Stravinsky, ícone do modernismo com A Sagração da Primavera – Cenas da Rússia Pagã. No século XX, a afirmação nacional seria mais funda do ponto de vista estrutural, com o checo Janácek e o surgimento húngaro (anteriormente o carácter “nacional” do húngaro Ferenc Liszt era de facto de origem cigana) com Kodály e Bartók, com as suas recolhas de música popular que se tornariam num paradigma (por exemplo para Fernando Lopes-Graça em Portugal), sendo que o génio do segundo, marcado por esses fundamentos populares, se evidenciaria como um dos mais salientes do século XX, de funda influência pelo seu uso de modos, pelos aspectos rítmicos e timbrícos e pelas suas atmosferas. Já cortando com esta fundamentação nacional, na segunda metade do século XX surgiriam outros dois autores do maior relevo, György Ligeti e o ainda vivo György Kurtág.
 
Foi no entanto na condição já de refugiado no Ocidente depois do esmagamento da sublevação de 1956, e inicialmente nas sequelas da vanguarda de Darmstad – cuja rigidez e dogmatismo dos princípios todavia ultrapassaria – que Ligeti se impôs, desde Apparitions (1959) e Atmosphères (1961), tendo renegado as obras mais caracteristicamente “nacionais” da sua produção anterior, na Hungria. Só depois do fim das ditaduras comunistas, em 1989, é que Ligeti voltaria ao seu país de origem, tendo mesmo vindo a reintegrar no seu catálogo as obras do seu “período húngaro”, caso do Concerto Romeno de 1951, o qual, diga-se, é a menos interessante dessas obras “reintegradas no catálogo”, sem as qualidades por assim dizer já proto-ligetianas (“ligetiano” aqui no sentido em que se afirmou internacionalmente) de Música Ricercata ou do Quarteto de Cordas nº 1, “Metamorfoses Nocturnas”.
 
A leitura de Foster do Concerto Romeno foi festiva e precisa, com destaque particular com o ataque do Allegro Vivace. Se as cordas foram pouco idiomáticas e sobretudo, num paradoxo, nas passagens de violino solo a cargo da concertino romena Mihaela Costea, houve algumas excelentes passagens dos sopros, flauta, oboé, clarinete, trompa e trompetes.
 
Escrito no difícil exílio americano, o derradeiro Concerto para Piano nº 3 de Bartók é como que um anti-climax. É de todos os três concertos o menos percutivo e nesse sentido o mais adequado às características do pianismo de Radu Lupu. Todavia atenção: é o “menos percutivo” mas não deixa de ser também percutivo. E à excepção dos finais dos segundos e terceiro andamentos essa característica foi muito, demasiado atenuada, pela ipianista, magistral de controle das sonoridades como sempre, mas numa interpretação retida, dir-se-ia que pudica. Essa concepção conjugou-se com a direcção de Foster no segundo andamento Adágio religioso (Bartók é um mestre das caracterização “nocturnas” e “religiosas”), aí sim pertinente, enquanto na introdução do primeiro andamento faltou o carácter “misterioso”. Globalmente esta interpretação Concerto para Piano nº 3  foi interessante mas pouco convincente.
 
Na Rapsódia nº1, Mihaela Costea trocou a estante de concertino pela de solista com direito próprio. Foi uma leitura virtuosística, como a partitura solicita, todavia sem o virtuosismo exibicionista da tendência de Paganini a Sarasate que a violinista cultiva, mas também pouco agreste. O ponto alto do concerto foram todavia as duas obras de Kodály, mesmo que as Danças de Galanta tenham sido um pouco opaco. Foster puxou pela virtuosidade do conjunto orquestral, de novo com notáveis intervenções solistas do clarinete e da trompa nas Danças de Galanta, e do saxofone na Suite “Háry Janos”, nesta, como na Rapsódia de Bartók com uma participação destacada de um instrumentista convidado, Cyril Dupuy em cimbalão, o instrumento nacional húngaro. Háry Janos foi objecto de uma interpretação tão entusiástica que, pelo menos no concerto de dia 14, o público irrompeu em aplausos ao penúltimo andamento, Intermezzo.
 
Eis assim que foi um concerto em que se destacava a presença de um pianista da craveira de Radu Lupu, mas em que o protagonista, sob a direcção de Foster, foi afinal a Orquestra Gulbenkian. E um concerto de que irá haver memória pois que foi gravada para posterior edição, justificada pelas características singulares do programa – e é por isso que escrevi abaixo que se Lupu abondonou há anos os estúdios de gravação está todavia a reconverter-se aos registos live.
 
Uma nota final: há reportório(s) com os quais Lawrence Foster patenteia uma tal afinidade que só se pode lamentar que, na sua habitual prática de apresentação de uma ópera em versão de concerto em cada temporada (e na anterior foi mesmo um ciclo de três óperas), não se tenha ainda programado essa raridade, que ele aliás gravou, o Oedipe de Enescu.

 

Grandeza de Radu Lupu

 

 

 

Janácek
Nas Brumas
Beethoven
Sonata para piano nº23, op. 57, Appassionata
Schubert
Sonata D. 959
Radu Lupu
Gulbenkian, 11 de Novembro, às 19h
 
 
Radu Lupu é um pianista imenso. Possui uma sonoridade de uma amplitude enorme (na minha memória, ou na reconstrução da minha memória, aproxima-se apenas dos incomparáveis Gilels e Arrau), uma paleta assombrosa pela variedade de cores e pelo superlativo domínio das dinâmicas e um saber e um domínio técnico do instrumento magistrais. Tendo todos os requisitos para tal é no entanto verdadeiramente a antítese do virtuose brilhante, antes é um intérprete de assinalável sobriedade, idiossincraticamente mesmo – aliás não é pormenor anedótico, e se conjuga com essas características, que apareça sempre de camisola escura e não de casaca. Ele é verdadeiramente um pianista do gesto interpretativo e singular, rigorosamente pensado mesmo quando opções radicais se afiguram discutíveis face à letra da obra interpretada.
 
Lupu é um schubertiano exponencial (agora que Brendel se retirou não vejo outro intérprete de Schubert desta grandeza), notável também em Mozart, Beethoven, Schumann e sobretudo Brahms. Mas atenção: este perfil interpretativo é o que decorre dos registos fonográficos, e ainda que seja globalmente pertinente, esse tal primado do gesto singular supõe também o concerto público, estando o pianista há anos retirado dos estúdios de gravação por os achar demasiado secos, sem o calor da sala de concertos (embora, como veremos, Lupu esteja entretanto reconvertido à gravação live), espécie de anti-Glenn Gould, sendo que esse tal perfil interpretativo tem agora um espectro mais largo que o que resulta do retrato discográfico: na Gulbenkian onde, para nosso prazer, vem sendo desde há anos presença recorrente, já o ouvimos tocar Debussy, e tocar admiravelmente, como agora o ouvimos em Janácek, no recital, e em Bartók no sucessivo concerto com orquestra.
 
Em Nas Brumasa leitura de Radu Lupu foi justamente “brumosa”, próxima da paleta do impressionismo francês, embora com algumas rugusidades – sendo que todavia não senti as curvas melódicas que mesmo nesta obra instrumental são tão características de Janácek. Mas nas Sonatas de Beethoven e Schubert as interpretações de Lupu foram colossais! Importa aliás reconsiderá-las em par, Beethoven/ Schubert, e não como somatório, Beethoven+Schubert, de tal modo Lupu sublinhou a filiação do segundo no primeiro.
 
Na Appassionata a sua opção no andamento inicial pareceu controversa imediata – Lupu não fez um Allegro assai como prescrito (e sabe-se da obsessão de Beethoven pelo rigor dos tempos) mas sim “allegro ma non troppo” quando não mesmo “andantino”. Acontece contudo que o pianista romeno concebeu e concretizou a construção como um crescendo, indo acumulando as tensões até a um arrebatador Presto final. Ora, a Sonata D. 859, obra de que aliás é um intérprete único (desta sonata em particular), surgiu então como obra na descendência de Beethoven, mas de uma grandiosidade e sensibilidade todavia peculiarmente schubertianas – e é bem sabido que só depois da morte de Beethoven em 1828 Schubert, em vez de permanecer na sombra do outro, verdadeiramente se emancipou com as três últimas grandes sonatas, sem deixar de vir na descendência do outro, e sonatas “grandes” também na duração.
 
Há nessas sonatas “as divinas extensões” de que Schumann falava a propósito de Schubert, um horizonte de infinito que Lupu interpretou com um domínio magistral das macroformas, mas com um lirismo e um refinamento poético de quem domina também as microformas, os Impromptus ou os lieder. O Allegro inicial, extensíssimo, abrindo esse tal horizonte de infinito, de incessantemente recomeçado, e todavia refinadamente poético, foi esmagador, o melodismo tão caracteristicamente schubertiano do Andantino foi sublime, o Scherzo pleno de contrastes (lá está, a memória das microformas!) e enfim o Rondo foi o momento da resolução das tensões. Em suma foi uma interpretação arrebatadora e magistral a que Lupu acrescentou em extra, e numa escolha em nada ocasional, uma Fantasiestück de Schumann de uma delicadeza e de um “fantasismo” verdadeiramente admiráveis.
 
Foi um recital que confirmou o estatuto do músico e perante nós, para nós, renovou a grandeza de Radu Lupu, imenso pianista e intérprete.

 

Lição magistral (Brendel - III)

 

 

Schubert

Obras para piano apresentadas e interpretadas por

Alfred Brendel

5 dvds EuroArts, dist. CNM

 

 

No dia do derradeiro concerto de Alfred Brendel, em Viena

 

 

 

 

 
A capa desta caixa, aliás as capas, exterior e interior, bem como as fotos do livrete, induzem em erro: são fotos recentes de Alfred Brendel, quando as gravações registadas nestes cinco dvds datam de há 30 anos, isto é de meados dos anos 70.
 
Devidamente estabelecidos os factos, estes, longe de diminuírem o valor do testemunho, pelo contrário tornam-no mesmo mais precioso – ouso mesmo dizer, pelas razões que explicarei, como um dos intrinsecamente mais valiosos testemunhos de arte pianística publicados em dvd, e que só em dvd podiam ser publicados, malgrado a mediocridade da realização televisiva.
 
Recordo que Brendel iniciou a sua carreira em 1948. Desde cedo, é certo, dedicou-se a Beethoven e Mozart (e continuo a ter – como tive aliás ocasião de lhe dizer – uma intensa relação afectiva com os seus primeiros registos de concertos do segundo, os discos que na adolescência me fizeram verdadeiramente descobrir Mozart, e no tocante a este compositor ainda, continuo a pensar que o seu disco em duo com outro pianista, hoje pouco lembrado, Walter Klien, é uma peça a considerar na discografia geral do autor), afinal os dois compositores entre outros canónicos, mas é curial também lembrar factos que hoje muitos nos podem espantar, como que a sua 1ª gravação foi do Concerto nº 5 de Prokofiev, que se dedicou aos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky ou a Islamey de Balakirev, em suma a um repertório virtuosístico, ainda que o inevitável Liszt fosse já então por ele abordado numa perspectiva mais abrangente e menos puramente de fogos de artificio – para se ter a concreta noção pode-se ouvir a recente colectânea completa das gravações, a preço muito acessível, “Young Brendel”.
 
Mas nos anos 70, Alfred Brendel “reinventou-se” ou consagrou-se como o Brendel que tanto viríamos a admirar, e a este respeito é pertinente abrir um horizonte mais geral.
 
De facto não foi assim há tanto tempo, 30 anos, mas hoje é de tal modo uma evidência que tendemos a obliturar a contextualização de um facto da maior importância para a arte pianística e para a arte da interpretação musical: nos anos 70, dois pianistas, Alfred Brendel e Maurizio Pollini operaram por assim dizer um “corte epistemológico”, com interpretações muito mais “pensadas” analiticamente e, quando caso, fundadas em pesquisas musicológicas. A contextualização e identificação deste “corte” de tão vastas consequências suscita aliás duas questões colaterais: 1) dificilmente é apenas coincidência que tenha ocorrido no momento de eclosão da “nova música antiga”, filológica e historicamente fundada, e 2) ambos os pianistas se interessaram também por música mais recente no tempo, sendo mesmo que os dois, Brendel e Pollini, foram quais “apóstolos” do Concerto de Schönberg, Pollini tendo-se também dedicado mesmo à música contemporânea (Stockhausen, Nono) que se Brendel não praticou seguiu curioso nalguns casos, como o dos Estudos de Ligeti.
 
Haverá sempre quem toque ainda como se esta mutação não tivesse existido mas, directa ou indirectamente, a maioria dos pianistas posteriores, dos actuais pianistas portanto, é devedor deste decisivo “corte epistemológico” operado há 30 anos por Brendel e Pollini – por isso parece uma evidência quando afinal esta radical alteração foi ainda há relativamente pouco tempo.
 
O repertório em que os dois pianistas eminentemente assinalaram um tal “corte” foi o ciclo beethoveniano e as obras de Schubert.
 
Claro que no tocante a Schubert havia o exemplo precursor de Arthur Schnabel, desde os anos 30, tinha havido Wilhelm Kempf e sobretudo o maravilhoso Rudolf Serkin, mas é importante frisar que Brendel e Pollini iriam, facto inaudito, colocar as tão contestadas ao longo do tempo três últimas Sonatas de Schubert ao nível das suas homólogas de Beethoven – Brendel afirma aliás essa sua convicção nesta série, no dvd 4, na apresentação da Sonata D. 958, a 1º das três últimas.
 
Vamos então aos factos: estes cinco dvds recolhem um conjunto de 13 programas feitos para a Rádio de Bremen em associação com uma produtora televisiva, em meados dos anos 70, como se disse, e para além da qualidade das interpretações, por vezes excepcional, como as da Sonata D784, da op. 42 D 845, da op. 53 D 850 “Gastein”, da D. 894, da D. 959 ou dos Impromptus, é uma lição analítica absolutamente magistral
 
Iimporta aliás notar que no momento porventura mais elucidativa do projecto, a introdução à penúltima Sonata D. 959, Brendel explica com assinalável clarividência as razões da “démarche” : “sempre me preocupei em saber o que distingue uma obra-prima das obrras de um compositor menor”. Como se “racionaliza” essa diferença (e uma tal “racionalização” foi crucial ao tal “corte” por isso mesmo “epistemológico”)? Daí surgem a explicação e os detalhes.
 
Diria mesmo mais: a disciplina de “análise musical” é muitas vezes árida, mais, o seu uso na música contemporânea tornou-se muitas vezes um exercício de legitimação que quase se diria dispensar o real acto de concretização da obra, de a tornar pública através de uma real interpretação. Ao longo das introduções, mas em particular neste momento no último dvd introduzindo a Sonata D. 959 dir-se-ia que a lição de Brendel é tal modo elucidativa que mesmo os alunos de “análise musical” lhe deviam atender.

 

O concerto dos adeuses (Brendel - II)

 

 

Alfred Brendel
Obras de Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert
Gulbenkian, 30 de Novembro
 
 
 
Quando se ouviu actuarem autênticos “monstros sagrados” do piano, “lendas vivas” tidas como “grandes anciãos”, como um Rubinstein, um Horowitz ou um Arrau, mais se diria haver um sentimento perplexo de perda agora na despedida de Alfred Brendel. No entanto o pianista austríaco está na mesma casa de idades de c. 75 anos dos outros, 77 para ser preciso.
 
Para além da emoção que em si mesmo suscita a despedida de um tal intérprete, de onde provém esta ideia de discrepância, afinal factualmente errónea? Em parte do facto de Brendel também ser de algum modo um pianista relativamente “recente”, de reputação só consolidada a partir dos anos 70, e da sua ligação discográfica à Philips. Mas também porque Brendel foi um pianista “moderno”, que impôs Haydn e Liszt no reportório (não o Liszt de brilho e fogos de artificio que sempre foi tocado, mas um outro, o da Sonata em si menor por exemplo), ou o Concerto de Schönberg. Mas sobretudo porque o seu rigor intelectual e prolongado contacto com as obras, o seu “sentir” delas, foram modulando uma arte da música ao piano prodigiosamente decantada – e o extraordinário recital de ontem na Gulbenkian (não, não foi apenas a emoção do momento foi mesmo extraordinário) foi disso exemplo acabado, mesmo o mais extraordinário dos seus recitais em Portugal depois daquele, verdadeiramente “histórico”, no Porto, no Rivoli, integrado no 5º Festival da Póvoa do Varzim ao tempo ainda sob a direcção artística de Sequeira Costa, a 16-07-83, em que interpretou as três últimas sonatas de Beethoven – e em que tantos fomos os idos de Lisboa que felizmente a casa não estava vazia!
 
A decisão de se retirar, por muito que nos custe, é ainda um acto de inteligência, como se deduz do comunicado. “Alfred Brendel, um dos mais célebres pianistas do mundo, anunciou que dará o último concerto da sua carreira em Viena a 18 de Dezembro de 2008. Interpretará o Concerto para piano nº9 ‘Jeunehomme’ de Mozart [que escolha, reveladora de um dos mais fortes traços da sua personalidade, o sorriso irónico] no Musikverein com a Orquestra Filarmónica de Viena dirigida por Charles Mackerras. Nessa data terá setenta e sete anos e terá passado mais de sessenta anos da sua vida a dar concertos. O Senhor Brendel sempre anunciou a sua intenção de findar a sua carreira no auge desta, num momento em que o interesse do público através do mundo não tivesse decrescido. Longe da ideia de digressão ou concerto de despedida, ele prefere simplesmente parar. O Senhor Brendel vai prosseguir actividades que lhe são caras como a literatura, campo no qual tem tido já grande sucesso, e fará conferências em universidades e instituições musicais”.
 
“Parar”, seja – mas como não sentir ainda assim a emoção da “despedida”?! O certo é que, como se apresentou, está no “auge”, no “auge” da sua tão particular arte do classicismo.
 
Tendo vindo a restringir o seu reportório ao longo dos anos, Brendel apresentou ontem um programa exemplar do classicismo e do primeiro romantismo, um programa exemplarmente vienense com as Variações em fá menor, Hob VVII: 6 de Haydn, a Sonata em fá maior K.5333/494 de Mozart, a Sonata em mi bemol maior, op 27, nº1, Quasi una fantasia de Beethoven e a derradeira Sonata em si bemol maior D. 960 de Schubert – e pode notar-se um dos seus princípios, o de sempre apresentar obras em tonalidades diferentes.
 
É extraordinário como ele consegue pôr em relevo o “carácter” de cada obra, tornar o sentir delas como princípio, “o alfa e o ómega de um músico” como diz. Depois, é a prodigioso articulação, a pertinente discreção dos pedais, os harpejos e trilos assombrosos, enfim, a desenvoltura do discurso, de uma arte íntima de conversação (já agora, não por acaso um dos desejos de Brendel é o de um público silencioso e que só aplauda no fim – e a conhecida síndrome das “tosses na Gulbenkian” fê-lo parar duas vezes seguidas no 1º andamento da Sonata de Schubert).
 
Este foi um daqueles momentos, um daqueles recitais, que podemos ter de certeza certa que ficará memorável, pelo adeus e por ter sido tão maravilhoso. Esperemos agora continuar a ter notícias de Alfred Brendel, ou por “novas antigas” gravações, aquelas que ele encontra em arquivos e autoriza para edição, ou pela publicação de novos livros.
 
Muito obrigado, Alfred Brendel.
 
 
 
 
 
 
Adenda – Por uma vez, porque o caso é de facto diferente, merecem consideração as três peças que Brendel tocou em extra, um Impromptu de Schubert, depois, surpresa, No lago de Wallenstadt dos Années de Pèlerinage – Première année: La Suisse de Lizst (qual “reminiscência” – para empregar um termo também lisztiano – de um compositor a que esteve tão associado e de modo tão importante, mas que deixou nos seus programas) e uma das Bagatelas de Beethoven. É que a interpretação destas miniaturas foi exemplar da tal questão do “carácter” da obra, da reflexão sobre elas que permite compreendê-las e senti-las. Como é que, por uma, uma Bagatela se torna uma “obra” por inteiro, eis o prodígio. E, pensando bem, terminar um tal concerto de despedida com uma Bagatela, eis o que, acaso que também seja, é uma faceta da postura de Brendel.

 

"É a obra que faz de mim o seu intérprete" (Brendel - I)

 

 

 

 

P - Tem falado e escrito sobre o “carácter” particular de cada obra., de cada “obra-prima”. A sua tarefa como pianista, como intérprete, é então tentar discernir cada “carácter” particular?
 
R - Esse é um dos aspectos mais fascinantes. Sinto-me muito próximo de um actor que assume personalidades, e quando se toca peças tem de se fazer o mesmo, de acordo com que a peça requer. E quando digo que a peça tem um “carácter” é algo de semelhante a olhar para as pessoas, para os amigos. Sabemos que um amigo tem certas qualidades, certas possibilidades, certas potencialidades, e algures dentro desses campos está o seu “carácter”. É o mesmo com uma obra de música. Temos de encontrar o campo em que o “carácter” existe e não ultrapassar esse campo, porque então se fazemos isso desentendemos, descaracterizamos a obra.
 
P - Uma das suas características interpretativas é o rigor intelectual na estrita fidelidade ao que está prescrito na partitura. E no entanto, de cada vez que de novo se aproxima de uma obra, tenta também encontrar as margens de liberdade de uma interpretação.
 
R - Mas dentro dos limites do “carácter” de uma obra existe uma margem de liberdade; talvez 30 por cento. Mas para se estabelecer esse “carácter”, para o ajustar, tem que se estar seguro até certo ponto do que se deve fazer, mas não totalmente: tem de permanecer com algum cepticismo sobre o que já se fez antes, embora não um cepticismo que nos destrua.
 
P - É essa a razão porque gravou várias vezes, nalguns casos até três, os Concertos e Sonatas de Beethoven ou os Concertos e Sonatas de Mozart?
 
R - Bem, uma das razões é que, se mantém uma carreira e se prossegue até a uma idade mais velha, então também se deve desenvolver e não apenas permanecer no ponto em que já se estava. Há alguns músicos de carreira muito precoce e que depois pouco se desenvolvem. Comigo foi diferente: fui-me desenvolvendo gradualmente, com tempo suficiente para pensar as coisas, para as sentir, para estudar, por isso penso que ainda me estou a desenvolver.
 
P - Mas com o tempo também se tem vindo a concentrar. Foi um intérprete extraordinário de um compositor como Liszt, que hoje já não toca, mas em anos recentes tem-se concentrado em Mozart, Beethoven…
 
R - E Schubert, Schumann e Haydn. As coisas são o que são. Em parte são razões físicas; tenho que me precaver e estar atento ao que me é possível, sem prejudicar quer o meu estilo, quer as minhas mãos.
 
P - Gosta de acentuar que é parte de uma tradição clássica.
 
R - Sou.
 
P - Voltando sempre à questão central para si do “carácter”. Se a tenta discernir numa obra, supõe-se a si como intérprete da obra ou é a obra que faz de si o intérprete dela?
 
R - A minha ideia é que no fim é a obra que faz de mim o seu intérprete. Há pianistas que tentam impor a sua personalidade à obra - não sou desses. Claro que tenho uma personalidade e que essa também lá está de um modo ou outro, mas não é o principal.
 
P - Mas não é com certeza apenas o humilde servo da obra, há a sua distintiva personalidade de intérprete.
 
R - Tenho a noção de que deve uma fusão das duas coisas, o “carácter” da obra e a minha “personalidade”, mas o que tento é fazer justiça à obra, e não fazer da obra o que ela deveria ser ou o que compositor deveria ter feito com ela, como outros tentam.
 
P - Tomemos por exemplo as Sonatas de Mozart. Costuma citar uma frase de outro grande pianista, Arthur Schnabel, que dizia que elas “eram muito fáceis para as crianças e muito difíceis para os artistas”.
 
R - Precisamente. E essa é uma razão porque não são tocadas mais vezes, porque há artistas que não se arriscam a tocá-las. São subestimadas, comparativamente às obras-primas que são os Concertos. Pensa-se que são obras para crianças. Mas quando nos queremos aproximar delas são obras maravilhosas.
 
P - Não acha que em comparação as Sonatas de Haydn são muito mais subestimadas?
 
R - Não, já não. E mesmo nos meus anos jovens, havia pianistas que achavam as Sonatas de Haydn mais interessantes que as de Mozart.
 
P - Mas você foi justamente um dos intérpretes que nos tornou presentes quão grandes eram as Sonatas de Haydn e mesmo hoje são ainda poucos os pianos de topo que as tocam regularmente.
 
R - Mas há 12 ou 15 delas que são maravilhosas!
 
P - Referiu que se mantém sempre interessado em música nova. Para além da sua grandeza como intérprete, uma das coisas que me tem surpreendido ao longo dos anos, são as vezes que consigo me tenho cruzado em concertos a que assiste. Lembro-me de uma interpretação do “Quator pour la fin des temps” de Messiaen, de um “Pierrot Lunaire” de Schoenberg, sei-o interessado pelos Estudos de Ligeti…
 
R - Muito. Digo a jovens pianistas para os tocarem.
 
P - Portanto, a curiosidade intelectual é parte do seu “carácter”.
 
R - Desculpe mas está a enfatizar o “intelectual”. O intelectual em mim não é primordial. O intelecto sem emoção não tem grande justificação em mim. Não sou um intelectual; uso o meu intelecto, mas antes de mais sou um artista, uma pessoa intuitiva que também pensa.
 
P - É por isso que disse que “o sentir deve ser o alfa e o ómega de um músico”?
 
R - Sim, mas passando pelo filtro do intelecto, tal como pelo filtro das emoções – embora não baste extravasar as emoções, é preciso qualificá-las, transmitir aquelas que sejam verdadeiramente importantes.
 
P - Mas é também um ensaísta, tem reflectido muito sobre música.
 
R - Sim, isso sou, e também nos últimos anos um poeta, o que aliás me sucedeu de surpresa. Agora, há edições de poemas meus em alemão e em inglês e irá ser publicada outra no final do ano em francês e alemão.
 
P - O “nonsense” é muito importante nos seus poemas.
 
R - É. Ambos são, o “sense” e o “nonsense”.
 
P - Por alguns dos seus poemas, suporia que tem um interesse pelo “dadaísmo”.
 
R - Nalguns aspectos sinto-me próximo, sim. Não sou completamente um “dadaísta”, mas parte da minha personalidade reconhece-se nesse sensibilidade.
 
P - A sua é a personalidade é a de “um cidadão do mundo”?
 
R - Não me limito a um país, com certeza. Tento ser tão cosmopolita quanto possível, sabendo que tenho certas raízes na Europa Central, no que diz respeito à música e à literatura.
 
P - Sendo certamente um Homem de muitas Qualidades…
 
R - Que tem “O Homem sem Qualidades” [de Musil] como um dos livros favoritos!
 
P - Era esse o ponto!
 
R - Mas as contradições de um homem são importantes.
 
P - Mas não é contradição nenhuma ser um Homem de muitas Qualidades que tem uma preferência pelo “Homem sem Qualidades”!
 
R - Bem, um homem com qualidades e um homem sem qualidades…
 
P - Tocar, escrever – é uma espécie de “vida dupla”?
 
R - É uma “vida dupla”, não é a mesma coisa; há similaridades, mas são coisas diferentes. Até começar a escrever poemas, havia uma forte conexão, porque escrevia sobre música e matérias da minha profissão. Agora são os poemas que me escrevem.
 
 
 
Extractos de uma entrevista no “Público” de 30-04-05
 
 
Na sua digressão de despedida, Alfred Brendel realiza hoje um recital na Gulbenkian, às 19h


 

Christian Zacharias - II

 

 

 

Christian Zacharias
Obras de Haydn, Schumann e Debussy
Gulbenkian, 24 de Novembro
 
Há músicos que podem ser superlativos mas que sempre se mantêm dentro dos canônes estabelecidos. Há outros que são movidos pela curiosidade intelectual e propriamente musical. Há pianistas que até podem ser superlativos mas tão só virtuoses do instrumento. Christian Zacharias é um músico, que aliás, além de tocar piano se vem também dedicando à direcção de orquestra, um músico que tem preferido fazer um trajecto singular mesmo que isso signifique menos holofotes.
 
Começar e terminar um recital com as negligenciadas sonatas de Haydn, enquadrando uma das peças mais raras em concerto de Schumann, a Humoresque e, qual corpo aparentemente estranho, alguns Prelúdios de Debussy, como foi o caso do recital de ontem na Gulbenkian, corresponde a uma verdadeira declaração de princípios – ou a um modo de se estar no mundo da música.
 
Na Sonata em fá maior, Hob. XVI: 29 de Haydn, imbuído de um misto de style galante e Empfindsamkeit (de facto os estilos “galante” e “sensível” não são exactamente o mesmo), obra de algum modo ainda mais pré-clássica que em rigor clássica, logo Zacharias patenteou uma aguda compreensão, na precisão do staccato, no controle dos planos, na discreção dos pedais, na flutuação dos tempos ou na subtileza do toucher. Posso pensar que compreendo melhor a obra, por assim dizer na sua objectualidade física, com interpretações em pianoforte de época (como as de Ronald Brautigam), mas também não posso deixar de reconhecer o modo inteligentíssimo como Zacharias faz uso do piano moderno, um uso por assim dizer limitado.
 
Pessoalmente também, em particular no caso de uma peça como a Humoresque, penso que Schumann requer um “suplemento de alma”, uma passionalidade temperamental, e nesse caso tenho mais dúvidas que a deliberada retracção de Zacharias (uma opção de rigor e de recusa da espectacularidade) se adeqúe com o mesmo sucesso a um propósito que requer o  arrebatamento – mas só abalançar-se à Humoresque é, em si, um gesto musical eminente.
 
Os tais “inesperados” Prelúdios de Debussy vieram-nos afinal em concreto recordar que, por via do seu aperfeiçoamento junto do grande Vlado Perlemuter, o alemão Christian Zacharias também é um pianista de “escola francesa”. Foi um Debussy sem maneirismos rebuscados e de belíssimos rendilhados, nem sempre plenamente sugestivo mas com uma La cathédrale engloutie prodigiosa de definição de planos.
 
Mas o melhor seria a conclusão, de novo Haydn, com a Sonata em ré maior, Hob. XVI: 24, esta de factura mais francamente clássica. E que dizer senão que foi um puro deslumbramento?! Uma tal compreensão, uma tal fluência, um tal domínio dos tempos, só podem ser fruto de uma grande inteligência musical e de uma prolongada maturação. Uma interpretação de Haydn assim está a um nível dos grandes mestres que são “apenas” Richter, Gould e Brendel.
 
Eu bem tinha avisado que Christian Zacharias era um dos maiores embora também mais discretos pianistas da actualidade.

 

 
 
 
 

Christian Zacharias - I

 

 

O recital do imenso Alfred Brendel na sua digressão de despedida, no próximo dia 30, na Gulbenkian, está hà muito, como seria de esperar, hiper-esgotado. Mas atenção que, sem grandes alaridos, amanhã às 19h actua um dos maiores e mais discretos pianistas da actualidade, Christian Zacharias, um dos máximos intérpretes mozartianos e schubertianos – vem tocar Haydn, Schumann e Debussy.
 
Já agora, para o resto do trimestre, isto é Dezembro, o destaque é outro grande pianista, o húngaro Zoltán Kocsis, que em dois concertos, a 4 e 5 e 11 e 12, se apresenta aliás não só nessa condição (e logo com obras dos seus autores de eleição, Bartók e Mozart), mas também na de maestro, já de provas dadas, e, incógnita a merecer curiosidade, igualmente orquestrador.