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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Música de Santana



"Nota importante: em consonância com os nossos Estatutos, Declaração de Intenções e tradição teremos , no decurso do jantar, 'apontamentos' musicais"
 
 


Houve um secretário de Estado da Cultura que, inquirido sobre a sua obra musical preferida, respondeu ser ela um Concerto de Violino de Chopin, desconhecido de todos. O secretário de Estado era-o, repita-se, da Cultura. Há um presidente da câmara municipal de Lisboa que um dia, dizem que perguntando-se “espelho meu, espelho meu, que posso mais eu fazer para que falem de mim?”, achou: “já sei, vou fazer uma orquestra sinfónica!”.

Pedro Santana Lopes fica sempre visivelmente incomodado quando vem à colação o tal “concerto de violino”. Sucede que não se tratou de um lapso, mas um daqueles palpites em que Santana é pródigo e que no caso denotava a sua manifestação impreparação no sector que então tutelava como Secretário de Estado.

A Santana Lopes (re)conhece-se o agudo instinto político, o gosto do risco, das altas paradas, certamente também dos “bluffs”. Se fosse frequentador de casinos, e entre a Figueira da Foz e o Parque Mayer tem uma certa tendência para os encontrar ou tentar colocar no caminho, seria um jogador inveterado.

Acontece que a acção política exigirá instinto e mesmo carisma mas também racionalidade, sobretudo quando os objectivos e as até legítimas ambições pessoais visam sempre mais alto. E exige-o mesmo um contexto altamente mediatizado e a um político hiper-mediático, comentador do Telejornal da RTP/1, colunista do “Diário de Notícias” e de “A Bola”, enfim alguém que, como diria o seu aparentado Martins da Cruz, gostava de viver sob as “spotlights”.

Mesmo que, enfim, o próprio já esteja a visar mais alto ‹ e basta olhar o calendário político para verificar que um candidato presidencial não poderá propor-se à reeleição na câmara de Lisboa, haverá um momento em que ele ou responderá pela “obra” ou atinge o princípio de Peter,   haverá um momento em que se colocará a fundo a questão da sua credibilidade. Só que, até lá, Santana Lopes, se vai mantendo alerta as tropas, vai também espalhando a confusão.

Agora deu-lhe para anunciar a fundação de uma orquestra sinfónica de Lisboa. Não uma orquestra qualquer, mas uma tão boa como as concorrentes (presume-se que Berlim e Viena). E olhando nas relações, encarregou do projecto Duarte Lima e António Victorino d¹Almeida.

A orquestra é necessária? Sem a mais pequena dúvida! A Orquestra Sinfónica Portuguesa, sediada em Lisboa, no Teatro Nacional de São Carlos, foi uma solução de convergência ditada pelas circunstâncias, era secretário de Estado da Cultura Pedro Santana Lopes, mas tendo o projecto sido gizado pela subsecretária Maria José Nogueira Pinto, e tendo-se pelo meio interposto uma célebre pala do estádio do Sporting, levando à saída da subsecretária, logo Santana se achou em estado de dar um arzinho da sua graça, torpeando a seriedade do projecto ao afastar o indigitado maestro-titular, Martin André.

Mas hoje, repartida entre as suas funções nas representações operáticas e alguns concertos, é evidente que a OSP não está em condições de ser a orquestra sinfónica com programação regular e agregadora de público que falta em Lisboa. Isso o sugeri há meses quando da crise suscitada em relação aos “benefícios” do director da Orquestra Metropolitana, Miguel Graça Moura: “Querem discutir mesmo? Proponho então um tema: reconsiderar com o Estado central a inexistência real de uma orquestra com temporada de concertos sinfónicos em Lisboa”.

Colocou o presidente da CML a questão à tutela? Não há o mais pequeno indício. Compreendemos todos que seja difícil a qualquer autarca, a qualquer responsável, discutir projectos de fundo com um Ministério da Cultura em que o titular é inexistente. Mas a questão é outra: Santana trabalha a auto-suficiência do seu “curriculum” político. Como poderia ele negociar a constituição de uma orquestra em parceria com o Estado?

Há algum estudo? Nem pensar! De que vale estar a questionar como será feito o recrutamento e garantidas as infra-estruturas se é absolutamente óbvio que não há ideia real dos custos e das fontes de financiamento? Sabe Santana as percentagens da participação do Estado em instituições “congéneres”, por exemplo a Orquestra de Paris? E como vai ele contornar a disciplina orçamental imposta por Ferreira Leite?

Têm Duarte Lima e Victorino d'Almeida “curricula” de gestores culturais? Um é um respeitável melómano, que gosta de piano e toca orgão, coisas que não são suficientes para um projecto sinfónico; o outro, dito “o maestro”, é um dos mais gritantes equívocos culturais deste país, cuja carreira propriamente como maestro não existe (só terá dirigido uns concertos com obras suas), mas ao qual se conhece antes a actividade conjunta com cançonetistas ou a vocação para o piano-bar - mas lá por isso, calhando ele bem no “wonder-bar” do Casino Estoril, Santana, que aí tem boas relações, pode dar uma ajudinha, e poupa-nos as desgraças.

Para fazer uma orquestra sinfónica é preciso muito mais que atirar poeira para os olhos. E muito mais seriedade do que a de quem tem os ouvidos empoeirados pelo concerto de violino de Chopin.

Os violinos de Santana – “Público”, 23-02-03