Os museus são por definição e História instituições de interesse público, abertos à comunidade, aos visitantes. Esse é desde logo o princípio dos museus de domínio público, no sentido de estarem na dependência do Estado central ou da administração local ou regional, como em certos países, por exemplo em Espanha, o florescimento de museus de arte contemporânea em grande se devendo às instituições autonómicas, regionais.
Há museus privados. E há os museus de parceria pública-privada.
Existe em Portugal a Fundação e o Museu de Serralves, sempre apontado, e justamente, como caso de excelência dessa parceria.
E existem outros dois casos, bem mais controversos, O Museu Berardo e agora a Casa das Histórias Paula Rego.
Gabriela Canavilhas herdou uma pasta duramente afectada no governo Sócrates I, pela desastrosa gestão da dupla Isabel Pires de Lima e Mário Vieira de Carvalho e pela invisibilidade política de José António Pinto Ribeiro. Acrescente-se que José Sócrates, como lhe é habitual, diz uma coisa e faz outra: se no momento sucessivo à derrota nas eleições europeias apontou como um erro do seu governo não ter investido na Cultura como o fez, significativamente, na Ciência, tudo continuou não obstante na mesma, sem consideração do sector como estratégico.
Diga-se também que Canavilhas é uma pianista, uma artista, o que lhe poderá favorecer a sensibilidade tão necessária na gestão pública da cultura, e que deu amplas provas de energia e combatividade no seu trabalho como gestora da Associação da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
E diga-se ainda que nas semanas recentes deu mostras de decisão política, na nomeação de Maria João Seixas para a Cinemateca e no desígnio prioritário de dotar o Porto de uma Casa do Cinema, na substituição de Paulo Henriques por António Filipe Pimentel na direcção do Museu Nacional de Arte Antiga, na apresentação de um plano estratégico para os museus no século XXI e enfim, agora, ao tomar a decisão de finalmente extrair as ilações da desastrosa gestão de Christoph Dammann no São Carlos, e de agir com vista à sua substituição.
Tudo isto dito, a entrevista no Público de quarta-feira, centrando-se na economia do sector cultural, tendo como fundo o estudo de Augusto Mateus sobre o sector cultural e criativo em Portugal, tem algumas reafirmações importantes mas mostra também uma ministra obnubilada pelo discurso das perspectivas económicas, numa deriva perigosa. Ora, se o estudo é sem dúvida importante, também há que dizer que a vulgarização das ideias de Richard Florida sobre as “cidades criativas” se transformou num tópico do novo capitalismo da sociedade de informação e do conhecimento.
Sem dúvida que a cultura engloba as indústrias culturais, aliás de âmbito reduzido em Portugal (uma indústria da edição livreira flagelada pela sua própria sobreprodução, uma indústria discográfica em crise e uma indigente indústria de telenovelas sem perspectivas de exportação), mas já as agora tão na moda “indústrias criativas” são de um âmbito que em boa parte tem mais a ver com a estrita economia.
Gabriela Canavilhas reitera, o que se anota, que as actividades culturais sem vocação de mercado são “o cerne, o núcleo duro da actividade do MC”. Mas ao mesmo tempo, baixa os braços e prescinde de um reforço orçamental significativo, diz que “os fundos têm estado a crescer”, quando sobretudo têm estado estagnados ou mesmo em queda (vide o caso do cinema, com um decréscimo na última década de mais de 30 por cento, como recentemente alertava um importante Manifesto pelo cinema português), e, o que é mais grave, e tanto mais vindo de uma artista, retoma o nefasto discurso da “subsídio-dependência”.
Não serei eu que vou desmentir a existência de “clientelas”, para as quais chamei reiteradamente a atenção ao debruçar-me sobre as promiscuidades no sector. Mas esquece-se, e é grave que a ministra da tutela se esqueça, que a dita “subsídio-dependência” resulta de um imperativo constitucional de “acesso à cultura”, à criação e fruição, e das grandes fragilidades do tecido artístico e cultural. Mais: se Canavilhas diz que se “pode e deve incentivar por via de linhas de crédito especiais para apoio das pequenas empresas que possam potenciar a manufactura e o artesanato [em termos artísticos] português”, é no entanto omissa em três aspectos chaves.
Um é a cobertura territorial do país, ponto que certamente se deduz também do imperativo constitucional, quando o essencial do sector continua a exercer-se no Porto e sobretudo Lisboa, a tão propalada Rede Nacional de Cine-Teatros é uma ficção, e se felizmente já há bons exemplos de centros culturais e teatros fora das grandes urbes, há um problema geral de sustentabilidade. No fundo, e ironicamente, mesmo nos termos desta panaceia das “indústrias culturais e criativas”, faltam “clusters criativos” disseminados pelo país.
Um segundo ponto é falta de referência ao mecenato. Recordo que a revisão do Estatuto do Mecenato, nomeadamente com vista ao apoio a projectos de pequena e média dimensão, estava inscrita no Programa do Governo de Sócrates I, e afinal o Estatuto foi pura e simplesmente abolido, essas actividades sendo apenas consideradas no âmbito dos benefícios fiscais previstos no OE. Ora, para contribuir para o alargamento das economias da cultura, é crucial incentivar o mecenato e dar-lhe o devido estatuto.
Enfim, no tocante à internacionalização, Canavilhas fica-se pelas ditas linhas de crédito e por uma “transversalidade interministrial”, escapando à questão de fundo: manifestamente o Instituto Camões não corresponde a essa necessidade e fica-se como ainda agora reafirmado, pela “lusofonia”. É imprescindível pensar noutro tipo de estrutura, uma agência, com capacidade de captação de mecenato.
A ministra declara taxativa que “o Ministério da Cultura tem que ter a coragem de diminuir o número de apoios e apostar na qualidade”. Os termos da declaração são inquietantes se não se tomarem em conta a cobertura territorial, os primeiros projectos ou obras e aqueles que se apresentem como mais inovativos.
Reafirme-se pois o sublinhado no “núcleo duro”, mas da entrevista deduz-se um sentido de potenciar empresarialmente o sector que é uma deriva perigosa. Donde, a necessidade de uma chamada de atenção.
A gestão de Christoph Dammann no Teatro Nacional de São Carlos caracteriza-se por um descalabro continuado, como aqui variadas vezes se reiterou. Mais ainda, é o momento mais negro da história do Teatro desde a sua reabertura, pior ainda que o provinciano “O São Carlos nacionalizado, nosso” do consulado Serra Formigal.
As responsabilidades incubem ao próprio mas também, e de modo decisivo, a quem afastou Paolo Pinamonti, criou uma abstrusa entidade de gestão de nome Opart (com o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado) e nomeou Dammann, o então secretário de Estado da Cultura Mário Vieira de Carvalho.
A situação era do conhecimento geral, mas exonerados Isabel Pires de Lima e Mário Vieira de Carvalho, o então novo ministro, José António Pinto Ribeiro, apesar de ter publicamente declarado as suas dúvidas com a estrutura da Opart e de ter mantido várias conversas com Paolo Pinamonti, acabou por proceder como lhe foi habitual na pasta: nada fez. Como tal uma quota-parte de responsabilidades também sobre ele impendem.
Depois de ter assistido a uma récita de O Morcego, a agora ministra Gabriela Canavilhas (que, ponto talvez não despiciendo neste caso, é uma artista, uma pianista) chamou Dammann. E desta vez sim, e finalmente, há novas: numa entrevista à Antena 2, Canavilhas declarou que “neste momento já não há qualquer dúvida de que é necessário substituir o director artístico do Teatro Nacional de São Carlos” - “Do meu ponto de vista a direcção já provou que a sua linha estratégica e o seu conceito estético não se coadunam com aquilo que o público português espera do Teatro Nacional de S. Carlos”.
Dado o carácter “blindado” do contrato de Dammann, válido até Agosto de 2012, e prevendo uma avultada indemnização em caso de rescisão, serão ainda necessárias conversações com vista a um acordo dos termos da saída. Mas, mesmo sendo esse um factor a ponderar, muito, muitíssimo mais gravosa para o serviço público que o São Carlos é, e para os níveis artísticos que estatutariamente lhe estão fixados, seria a permanência do senhor. A decisão de Canavilhas não pode pois ser senão vivamente saudada – enfim, Damman fora!
O Manifesto pelo cinema português é um documento da maior importância e urgência, e por isso entendi colocá-lo também aqui – sendo uma excepção que publique um texto alheio. Mas, como se compreenderá, não deixo por isso de ter opinião própria.
A situação é de facto de asfixia, e a criação de um Fundo de Cinema para o Cinema e Audiovisual, FICA, ao lado do Instituto de Cinema e Audiovisual, ICA, que participa enquanto parceiro público no outro, e o funcionamento até agora desse Fundo, só vieram afinal criar mais disparidades e prepotências, em vez de diversificar as fontes de financiamento com regras claras.
Numa carta aos produtores, que o público.pt divulgou, a ministra da Cultura reconhece a paralisia do FICA, que precisa de novos parceiros e a substituição da sua entidade gestora, que por extraordinária que pareça tem sido a ESAF, Espírito Santo Fundos de Investimento Mobiliário! Acontece que se há paralisia institucional, o FICA não deixa de ter concedido apoios que, ao contrário da necessidade de regras claras, se caracterizam pela arbitrariedade e facciosismo.
Nesta circunstância, com diminuição significativo do número de filmes produzidos, uma chamada de atenção e um apelo público eram imperativos, sendo de salientar que o manifesto reúne um conjunto sem precedentes dos cineastas portugueses mais representativos (exceptuando, como é óbvio, aqueles que prosseguem uma mirífica indústria do audiovisual, que o mercado interno nunca poderá comportar – tenho respeito pela competência e coerência de alguns deles, e entendo, e sempre entendi, que se deveria garantir a pluralidade do cinema português, mas acho o “discurso da indústria”, além de inconsequente, pernicioso), do patriarca do cinema mundial, Manoel de Oliveira, de 101 anos, Palma de Ouro especial do Festival de Cannes, entre muitas outras distinções (Veneza, Berlim, etc.), ao jovem João Salaviza, de 26 anos, Palma de Ouro da Curta-Metragem na última edição de Cannes. Já no tocante aos produtores, e tem também que se assinalar, o leque é muito de uma escala micro, apenas se salientando as subscrições da Filme do Tejo e da Midas – esta conhecida sobretudo como imprescindível editora de dvds, mas que além de igualmente distribuidora, tem um significativo número de documentários produzidos.
Começo por assinalar aquilo em que divirjo do documento, desde logo no pressuposto de que “Nunca nos últimos vinte anos teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão grande vitalidade criativa” – não concordo e acho factualmente incorrecto.
O grande período de florescimento do cinema português foram sim os anos 80, e, caso excepcional no panorama mundial no tocante a pequenas cinematografias, a repercussão internacional prolongou-se ainda pelos anos 90. Ao contrário desse “estado de excepção”, entendo que na última década o cinema português, se teve um florescimento dos documentários e curtas-metragens, se a década foi também a da consagração de Pedro Costa como um dos grandes cineastas da actualidade, do ainda mais alargado reconhecimento do malogrado João César Monteiro e da emergência de dois outros autores de estatuto internacional, João Pedro Rodrigues e Miguel Gomes, foi igualmente a de apagamento criativo de alguns cineastas, e sobretudo que o cinema português, em vez do “estado de excepção” se “normalizou”, com o que isso supõe de mediania dominante. Chamo aliás a atenção, e é factualmente comprovável, que a presença de filmes portugueses nas diversas secções dos grandes festivais internacionais baixou de forma muito significativa, em relação às duas décadas anteriores.
Isto leva-me a uma segunda divergência, esta bastante polémica e “impopular”. Se acho imprescindível aumentar a produção de primeiras obras, documentários e curtas, não subscrevo de modo algum uma genérica reivindicação de “mais filmes”. Acho mesmo que para o impacto real que têm, no acolhimento pelos diferentes segmentos de público, na recepção crítica, e difusão internacional (festivais e vendas), há antes “filmes a mais”.
O que há também, e são pontos que me espanta que o Manifeste não foque, são dois problemas gravíssimos: um é a suborçamentação dos filmes, com as mais danosas consequências para o seu acabamento e valor, e outro é a catastrófica falta de rigor dos júris de atribuição de subsídios do ICA. Não se trata de dizer, como é tantas vezes discurso corrente no meio, que X devia ser subsidiado e não Y – isso é uma “política de gosto”, inaceitável nos princípios de subsidiação pública de um Estado Democrático.
Trata-se sim de dizer (e permitam-me que refira que o digo com a experiência de ter lido e dado pareceres sobre centenas de projectos de cinema e televisão de quase toda a Europa nos anos em que fui consultor do Script Fund do Programa Media da União Europeia) que os membros de júris cinematográficos têm de ter uma capacidade específica de apreciação dos projectos atendendo aos curricula dos realizadores, do impacto das suas obras anteriores e do tipo de públicos a que se destina. Em vez disso os júris têm sido constituído por literatos e “nomes de prestígio”, com as mais nefastas consequências – por exemplo, é incompreensível, mas há casos, em que determinado filme tem impacto público quase inexistente, e logo de seguida o realizador tem novo subsídio, e até um outro depois.
Explicitadas as divergências, acho o Manifesto um documento importantíssimo, com alguns pontos do maior relevo, como a actualização das taxas de distribuição e exibição e a canalização para o cinema, mais que justificada e urgentíssima, da taxa sobre os dvds, da normalização do funcionamento da FICA, e de fazer nele entrar as novas plataformas por cabo, e das relações com a RTP, (que cada vez é mais só residualmente um serviço público), etc., etc., sem esquecer, ponto da maior importância, o apoio à distribuição e exibição independentes, tão estranguladas. De facto, “está na altura dos poderes públicos assumirem as suas responsabilidades” e “é urgente uma intervenção de emergência no cinema português”.
Por isso, apesar das divergências de análise (até porque sou crítico e programador e não realizador ou produtor), publiquei aqui o Manifesto com o link para a petição pública, assinei esta e apelo à sua subscrição. A ministra da Cultura, não pode deixar de atender a um tal documento.
Nunca como nos últimos vinte anos teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão grande vitalidade criativa. E nunca como hoje ele esteve tão ameaçado.
No mesmo ano em que um filme português ganhou em Cannes a Palma de Ouro da curta-metragem e tantos e tantos filmes portugueses foram vistos e premiados um pouco por todo o mundo, o cinema português continua a viver sob a ameaça de paralisação e asfixia financeira.
Desde há dez anos que os fundos investidos no cinema não cessaram de diminuir: a produção e a divulgação do cinema português vivem tempos cada vez mais difíceis.
E a criação de um fundo de investimento (e a promessa de um grande aumento de financiamentos) revelou-se uma enorme encenação que na generalidade só serviu para legitimar o oportunismo de uns tantos.
O cinema português vive hoje uma situação de catástrofe iminente e necessita de uma intervenção de emergência por parte dos poderes públicos e em particular da senhora ministra da Cultura.
O cinema português - o seu instituto -, ao contrário do que é repetido vezes sem conta, é financiado por uma taxa (3,2 por cento) sobre a publicidade na televisão, e não pelo Orçamento de Estado.
O financiamento do cinema português desceu na última década mais de 30 por cento e a produção de filmes, documentários e curtas-metragens não tem parado de diminuir.
O fundo de investimento no cinema, que era suposto trazer à produção 80 milhões de euros em cinco anos, está paralisado e manietado pelos canais de televisão e a Zon Lusomundo, e não só não investiu quase nada, como muito do pouco que investiu foi-o em coisas sem sentido.
Por isso se torna imperioso e urgente
a) normalizar o funcionamento desse fundo e multiplicar as verbas disponíveis para investimento na produção de cinema, nomeadamente multiplicando as receitas do Instituto de Cinema, e tornando as suas regras de funcionamento transparentes e indiscutíveis;
b) normalizar a relação da RTP (serviço público de televisão) com o cinema português, fazendo-a respeitar a lei e o contrato de serviço público, assinado com o Estado português;
c) aumentar de forma significativa o número de filmes, de primeiras obras, de documentários, de curtas-metragens, produzidos em Portugal;
d) e actuar de forma decidida em todos os sectores - não apenas na produção, mas também na distribuição, na exibição, nas televisões (e em particular no serviço público), e na difusão internacional do cinema português.
Depois de mais de seis anos de inoperância e desleixo dos sucessivos ministros da Cultura, que conduziram o cinema português à beira da catástrofe, impõe-se:
1. Normalizar o funcionamento do FICA (Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual), reconduzindo-o à sua natureza original: um fundo de iniciativa pública, tendo como objectivo o aumento dos montantes de financiamento do cinema e da ficção audiovisual original em língua portuguesa e o fortalecimento do tecido produtivo e das pequenas empresas de produção de cinema. E fazer entrar nos seus participantes e contribuintes os novos canais e plataformas de televisão por cabo (meo, Clix, Cabovisão, etc.), que inexplicavelmente têm sido deixados fora da lei;
2. Multiplicar as fontes de financiamento do cinema português, nomeadamente junto da actividade cinematográfica, recorrendo às receitas da edição DVD (a taxa cobrada pela IGAC, cuja utilização é desconhecida, e que na última década significou dezenas de milhões de euros); à taxa de distribuição de filmes (que há décadas não é actualizada) e à taxa de exibição. As receitas das taxas que o Estado cobra ao funcionamento da actividade cinematográfica devem ser integralmente reinvestidas na produção e na divulgação do cinema português (produção, distribuição, edição DVD, circulação internacional);
3. Aumentar as fontes de financiamento do Instituto de Cinema, para aumentar o número, a diversidade, a quantidade e a qualidade, dos filmes produzidos. Filmes, primeiras obras, documentários, curtas-metragens, etc.
4. Apoiar os distribuidores e exibidores independentes, e estimular o aparecimento de novas empresas nesta actividade, de forma a que o cinema português, o cinema europeu e o cinema independente em geral possam chegar junto do seu público. E apoiar os cineclubes, as associações culturais e autárquicas, os festivais e mostras de cinema, que um pouco por todo o país fazem já esse trabalho;
5. Fazer cumprir o contrato de serviço público de televisão por parte da RTP, que o assinou com o Estado português, e que está muito longe de o respeitar e às suas obrigações, na produção e na exibição de cinema português, europeu e independente em geral. E contratualizar com os canais privados e as plataformas de distribuição de televisão por cabo as suas obrigações para com a difusão de cinema português.
O cinema português que vale a pena tem hoje em dia, apesar da paralisia, quando não da hostilidade, dos poderes públicos, um indiscutível prestígio internacional. Os seus realizadores, actores, técnicos, produtores não deixaram de trabalhar, apesar de tudo o que se tem vindo a passar. Está na altura de os poderes públicos assumirem as suas responsabilidades.
É necessária uma nova Lei do Cinema, mas é urgente uma intervenção de emergência no cinema português.
Os realizadores Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Jorge Silva Melo, João Botelho, Pedro Costa, João Canijo, Teresa Villaverde, Margarida Cardoso, João Pedro Rodrigues, Bruno de Almeida, Catarina Alves Costa, João Salaviza
e os produtores Maria João Mayer (Filmes do Tejo), Abel Ribeiro Chaves (OPTEC), Alexandre Oliveira (Ar de Filmes), Joana Ferreira (C.R.I.M.), João Figueiras (Black Maria), João Matos (Terratreme), João Trabulo (Periferia Filmes), Pedro Borges (Midas Filmes)
A nomeação de Gabriela Canavilhas no governo Sócrates II foi acolhida entre a surpresa, a incredulidade perante alguém sem peso político e também, mais minoritariamente, alguma expectativa de que me fiz eco em crónica anterior. Passados alguns meses, verifiquemos os factos: por um lado mantêm-se a níveis residuais o orçamento do ministério, por motivos é certo justificados pela contenção e rigor de um OE determinado pela grave crise financeira do Estado, mas que ainda assim não deixa de ser sintomática da falta de consideração estratégica do sector cultural (por parte do governo mas também, diga-se, das oposições sem excepção), numa altura aliás em que ironia, veio a público um estudo elaborado pelo ex-ministro da Economia Augusto Mateus sobre “O sector cultural e criativo em Portugal” que inequivocamente concluí pelo relevo e dinâmica acrescida do mesmo.
Feita a ressalva estrutural e crónica, não podem todavia deixar de se referir as nomeações para os cargos superiores do ministério e as primeiras decisões políticas da nova ministra.
A ministra assumiu, de modo mesmo politicamente excessivo, o projecto excedentário e pernicioso do Museu dos Coches (“por mim já estaria feito”, disse), mas até ao momento teve os focos políticos mais intensos em dois aspectos muito positivos: um empenho na criação de uma Cinemateca no Porto, e justamente a área museológica, decidindo-se, contra o seu antecessor, pela manutenção do Museu de Arte Popular (defendida por um amplo movimento cívico), obra que para além do seu acervo próprio e potencial é exemplo único representativo de uma concepção cultural do Estado Novo, que importa preservar como parte da História, e dando a conhecer um Planeamento Estratégico do IMC que finalmente faz face às realidades.
A nomeação agora de Gabriela Canavilhas surgiu como totalmente inesperada, como figura pouco conhecida no meio, excepto na sua área da música, surpresa que se traduziu mesmo em considerações públicas mesquinhas.
Já tive oportunidade de escrever que um ministro da Cultura é um responsável político e não necessariamente alguém com provas dadas como programador cultural. Sem me desdizer agora, devida justiça tem que ser feita ao trabalho excepcional que Canavilhas realizou em 2003-2008 como presidente da direcção da Orquestra Metropolitana de Lisboa, demonstrando uma energia e combatividades que, essas, são condições necessárias a quem nesta situação chega ao ministério. Ela aliás demarcou-se imediatamente da extraordinária e catastrófica frase original do seu antecessor; “é possível fazer mais com menos dinheiro”, dizendo antes que é “impossível fazer mais com menos”.
Estou assim seguro de que Gabriela Canavilhas, sendo ainda “à priori” uma escolha sem peso político, aceitou o desafio com garantias do primeiro-ministro de reforço orçamental. Mas não menos devo dizer que a sua primeira escolha foi desastrosa: Elísio Summavielle, nomeado secretário de Estado, é um burocrata do aparelho cultural do PS
Há razões para uma expectativa ainda que reservada da política cultural de Gabriela Canavilhas, lembrando também que há declarações e escritos que obrigam o governo, o primeiro-ministro e a ministra, sem deixar aliás de fazer notar que, tanto mais no quadro de um governo minoritário, compete também às oposições, a todas as oposições, que em geral tão alheadas têm andado destas matérias, estarem atentas e avaliando o desempenho concreto.
BASTA! Basta de disparates e assassinatos no São Carlos, como agora com a Agrippina de Haendel!
Escolheu o teatro comemorar os 250 anos da morte do compositor assinalando também o tricentenário da estreia do seu grande sucesso público italiano, ocorrida no mais prestigiado teatro de Veneza, o S. Giovanni Crisostomo.
Logo os disparates começaram com a encomenda a Nuno Côrte-Real de um intermezzo à maneira da opera buffa que se intercalava na opera seria, Acontece que tal prática se constituiu sim com a sucessiva ópera napolitana, e que Agrippina pertence ainda esteticamente ao mundo da seiscentista ópera veneziana, tal como se encontrava já exemplarmente definido na L’incoronazione di Poppea de Monteverdi (de que Agrippina é em termos de referentes históricos uma espécie de préquela), misturando situações sérias e cómicas – Haendel guardará a memória disso ainda em obras muito mais tardias como o Giulio Cesare e o Serse. Quem não sabe isso, ou seja, que não há qualquer lugar a um intermezzo na Agrippina, isto é, o senhor Christoph Dammann – essa “brilhante” personalidade desencantada pelo ex-secretário de Estado e intendente-geral dos teatros, Mário Vieira de Carvalho, responsável primeiro pela actual situação – é um ignorante de história de ópera e, como tal, não tem qualificações para ser director de teatro.
Acontece que o libretista escolhido por Côrte-Real, José Luís Peixoto, em nada fiel ao espírito da encomenda, escreveu de facto uma préquela à ópera de Haendel, O Velório de Cláudio ou representação bufa de personagens históricas, texto indigente (escapa-me a piada de no velório de um suposto morto haver uma batalha de pastéis de bacalhau!) que em nada faz jus à sua reputação, e que dada a natureza do texto o encenador Michael Hampe decidiu, com acerto, colocá-lo antes como prelúdio.
Considero e estimo Côrte-Real como um dos mais talentosos jovens compositores portugueses, mas depois de A Montanha há dois anos na Gulbenkian, no Fórum “O Estado do Mundo”, este é outro desastre, uma música sem personalidade, que de novo parece uma má filtragem, com alguns “pós” modernos, de certos compositores “nacionais” da Europa Central da primeira metade do século (Janácek ou Kodaly).
Mas o pior vem depois: em vez de celebrado Haendel é, ó socorro, esquartejado: das mais de 3h30 de música da Agrippina restam 2h25! Corta aqui e ali, corta a secção b e o da capo (e portanto a arte da variação ornamental), corta mesmo no final a personagem de Juno. Isto faz-se?! É isto a responsabilidade de um Teatro Nacional?
No elenco apenas três cantores, Alexandra Coku (Agrippina), Musa Nkuna (Nerone) e Andrew Wattts (Ottone) revelaram algumas noções do canto haendeliano, mas com tantos limites ou falhanços pelo meio! Coku mostrou alguma autoridade, embora também opacidade nos agudos em Pensieri, para logo depois falhar o Ogni vento que conclui o Acto II e terminar a ópera esgotada. Ao contratenor Watts fugiu-lhe sistematicamente a voz de cabeça para voz de peito, e o maravilhoso lamento de Ottone esteve longe de ser pungente como requerido. A Nkuma faltou-lhe plasticidade de voz.
Os outros foram um horror, quase todos. Reinhard Dorn (Claudio), que numa troca de papéis se imaginou a cantar, mal, o Don Bartolo do Barbeiro de Sevilha, Manuel Brás da Costa (Narciso) e Chelsey Schill (Poppea) fizeram entre eles um festival de desafinação, para sofrimentos dos nossos ouvidos e melomania handeliana. Schill, a tal que é de facto a única cantora-residente no São Carlos cantando em (quase) todas as óperas (onde estão as prometidas audições de cantores portugueses?) merece uma referência especial, de tão estúpida de superficialidade (sim, escrevi estúpida, no tocante à negação da inteligência musical) se mostra a sua concepção de boneca mecânica a precisar de urgente reparação. Quanto a Luís Rodrigues (Palante), pode ser um dos melhores cantores portugueses, é-o de facto, mas o barroco e o canto fiorito em geral não se lhe adequam.
Ao longo de muitos anos escrevi vezes sem conta que Michael Hampe era “o mais chato encenador do mundo” para agora me dizer. A ancenação é chata e rotineira, sem uma ideia, a não ser um beijo incestuoso de mão e filho, Agrippina e Nerone, que nem aquece nem arrefece, é apenas inconsequente.
Mas o pior, o pior mesmo (com Chelsey Schill) é a direcção quadrada de Nicholas Kok, a braços, é certo, com a difícil tarefa de pôr membros da Sinfónica Portuguesa a tocar Haendel. Nada há de gradações dinâmicas e de sentido do fraseado, de propulsão rítmica, e os oboés mostram mesmo sérias dificuldades. E de nada vale ter um contínuo “barroco” quando é tão pobre (como é que um músico como o cravista Marcos Magalhães se fica pelo nível zero?!), desagradável mesmo (Kenneth Frazer no violoncelo barroco).
Não muito depois de tomar posse, o ministro José António Pinto Ribeiro, tinha dito da sua discordância da Op.Art, esse organismo aberrante que reúne o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado – valendo-lhe aliás logo resposta de Vieira de Carvalho. Como se tornou no ministro inexistente deixou as coisas continuaram. Assim, mais que co-responsável, é ele altamente responsável pela permanência do incompetente senhor Dammann, e portanto pela falta de respeito pelos níveis de “qualidade artística” legalmente fixados.
Ò socorro, ó da guarda – Haendel está a ser esquartejado no São Carlos! Basta e BASTA!
O ministério da Cultura está paralisado, e depois de uma Isabel Pires de Lima que acumulou disparates e prepotências, o actual titular, José António Pinto Ribeiro, é o ministro inexistente. Quanto ao primeiro-ministro, o seu desinteresse pela Cultura apenas foi quebrado por uma intervenção que, de tão demagógica, tem de ficar registada – a sua participação, a 9 de Janeiro passado, no anúncio do lançamento do programa INOV-ART proclamando que “É isso que estamos aqui a fazer: dar mais oportunidades aos jovens no domínio da cultura e para que afirmem internacionalmente o nome de Portugal”, ditame que é no mínimo causador de estupefacção.
A verdadeira oposição, ou o sujeito de um discurso de tal modo consistentemente crítico que não pode deixar de ser considerado de oposição, estava afinal na bancada da maioria, e até era dela vice-presidente, mas silencioso: o ex-ministro Manuel Maria Carrilho produziu um documento que é um diagnóstico arrasador.
“Uma legislatura perdida?” pergunta-se mesmo ele, constatando o malogro (total) do Compromisso para a Cultura do programa do governo socialista
Acontece, todavia, que há no governo quem, não sendo tutela, se interesse por matérias culturas ou certas matérias culturais.
Tomemos o caso tão polémico e extravagante do novo Museu dos Coches. Quem [o] quis afinal?
A resposta está na evidência dos factos: a responsabilidade incube à Sociedade Frente Tejo, da esfera do ministério da Economia. Enquanto Pinto Ribeiro é inexistente, Manuel Pinho gosta de dar nas vistas e de iniciativas vistosas.
Embora presumivelmente a maioria parlamentar chumbasse a iniciativa, propor em plenário a chamada à comissão de Cultura de ambos os ministros para esclarecer quem de facto tutela o quê, eis o que era mais que justificado pelos factos desta “legislatura perdida”, como este extravagante projecto de novo Museu dos Coches surgido na esfera do Ministério da Economia e Inovação – desta balofa “inovação” que é a síndrome que agora atingiu os centenários coches.
Se há ou houve governo “liquidacionista” do sector cultural é certamente este de José Sócrates. Nem nas piores horas de secundarização do sector durante o cavaquismo, quando a austeridade de cortes sem nexo da ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite a ele também se estendeu, ou nas trapalhadas, nesta área também, do governo de Santana Lopes, houve uma tão prosseguida política de negligência e mesmo de quase liquidação do sector.
Porque entendo que no contrato político democrático é fundamental a atenção dos governados face aos compromissos publicamente assumidos pelos governantes, relembro ainda uma outra vez o que consta do programa do governo:
“A política cultural para o período 2005-2009 orientar-se-á por três finalidades essenciais. A primeira é retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram. A segunda é retomar o impulso político para o desenvolvimento do tecido cultural português. A terceira é conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da cultura portuguesa. A opção política fundamental do Governo é qualificar o conjunto do tecido cultural, na diversidade de formas e correntes que fazem a sua riqueza do património à criação, promovendo a sua coesão e as suas sinergias.”
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo.”
Em vez disso, o que assistimos? Desaparecimento político quase total do Ministério da Cultura, nomeadamente face ao das Finanças e também o da Economia, cujo titular se armou na pose de “ministro da ‘cultura de luxe’”; asfixia financeira reforçada; revogação do Estatuto do Mecenato; intervenção autoritária e liquidação de trabalhos sustentados nos Teatros Nacionais Dona Maria e São Carlos e no Museu Nacional de Arte Antiga; confusões burocráticas mastodônticas com a alteração do estatuto de institutos públicos. Pois como se isso tudo já não fosse pouco chegou agora, constata-se, a hora do património. “Defesa e valorização do património cultura”? Homessa!
A notícia do “Público” de ontem, “Vender um monumento poderá ser mais fácil”, tem de ser lido várias vezes (eu tive) para se perceber bem, de tão literalmente inacreditável que é. De acordo com o novo “regime geral dos bens de domínio público” elaborado pelo ministério das Finanças, este podem não só ser “objecto de uso privativo”, como também está prevista a sua “venda e oneração pelas vias do direito privado”. Alienar, obter possivelmente as receitas extraordinárias a que os ministros das Finanças costumam recorrer, eis o caminho aberto. A arqueóloga Ana Dias, Técnica do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, dá um exemplo que se diria extravagante, mas possível segundo o quadro legal ora proposto: o Mosteiro de Alcobaça podia ser transformado num “hotel de charme”! Ou vendida a Torre de Belém, diz a jurista Maria João Silva!
É uma “uma inovação de tal forma chocante que estamos certos de vir a constituir um escândalo nacional”, frisa-se num documento da recém-constituída Plataforma pelo Património Cultural. Um escândalo, nem menos, que não pode passar desapercebido, que é uma questão cívica maior – porque implica a memória colectiva e exige uma regulamentação bem definida e prudente. Da parte do governo, nota a Plataforma, há um “silêncio ensurdecedor”, mas um sinal de interesse surgiu: em Janeiro serão recebidos pelo Presidente da República.
Quanto ao ministro da Cultura, que se saiba, permanece na Ajuda, como de costume, a ver lá do alto os navios passarem – ou a barca a naufragar.