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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

E uma Tosca de antologia

 

 

 

Tosca
de Puccini
com Catherine Malfitano, Bryn Terfel, Richard Margison
Encenação de Nikolaus Lehnoff
Orquestra da Concertegebow de Amsterdão
Riccardo Chailly
Realização de Misjel Vermeiren
DVD Decca/Universal
 
Esta é uma Tosca de antologia, uma das grandes realizações da ópera de Puccini e um dos mais exaltantes dvds de ópera!
 
Em 1992 Catherine Malfitano e Bryn Terfel afrontaram-se numa memorável encenação da Salomé de Strauss – em 92 e depois, que a produção viajou muito a seguir à estreia no Festival de Salzburgo, na que foi então um dos mais exaltantes momentos da minha experiência de espectador. Seis anos depois encontraram-se novamente nesta Tosca, na Ópera dos Países Baixos, em Amesterdão.
 
A aproximação justifica-se e não só pelos dois cantores, ainda que nestes termos particulares por causa deles. Cinco anos apenas separaram as duas obras: a Tosca é de 1900, a Salomé de Richard Strauss de 1905. Ambas são ópera de um erotismo lascivo e de uma sensualidade inebriante. Ora, esta é uma Tosca em que o choque erótico, ou mesmo descaradamente sexual, é apresentado de modo selvático e em rigor mesmo de bestialidade.
 
O Scarpia de Terfel é o inverso complementar do seu Jokanaan da Salomé: é um “selvagem”, só que no caso um torcionário que usa o poder sem escrúpulos no intento de alcançar o objectivo de posse sexual, enquanto o outro era o objecto do desejo de Salomé.
 
Lehnoff e os seus colaboradores imaginaram uma dança sexual e mortal – dança de Eros e Tanatos, à maneira do que de modo tão exponencial ocorre na Salomé. Os espaços dos três actos são claustrofóbicos, armadilhos mortais – “todes kammer”, “câmara da morte”, explica mesmo Lehnoff no documentário em extra. De uma turbina sobressai uma hélice, omnipresença ameaçadora, que em vez de sugerir um ventilador e ar mais reforça a angústia.
 
Neste quadro, o afrontamento de Tosca e Scarpia é a dança mortal dos sentidos, que os que intérpretes conduzem ao paroxismo. A interpretação de Terfel – que se estreava no papel – é absolutamente colossal E se a Tosca de Malfitano não tem a estatura das maiores, Olivero ou Kabaivanska para além do caso à parte de Callas, e é mesmo estridente, a sua passionalidade é de um domínio quase histérico (em que portanto mesmo as estridências não destoam), mais fazendo a tal aproximação à Salomé. Decididamente secundário face a um tal confronto de “monstros” – “monstros sagrados”, o que ainda mais salienta a coerência de leitura da obra – é o Cavaradossi de Margison, que no entanto não decepciona, enquanto raras vezes se poderam assim notar as personagens secundárias de Angelotti e Spoletta, este qual chefe de um bando de vampiros, de “nosferatus”, acólitos do sedento Scarpia – e, tanto mais a propósito, é preciso acrescentar que a realização televisiva é invulgarmente atenta.
 
Mas há ainda outro protagonista nesta realização magnífica: a superlativa direcção de Chailly à frente de – ponto capital – uma Orquestra da Concertgebow que confere à partitura a sua luxúria sensual. Desde que deixou a direcção do Teatro Comunal de Bologna e rumou para Amesterdão, e mais recentemente para Leipzig, Chailly dirigiu ópera poucas vezes, por razões que aliás ele refere no documentário extra – cada vez que dirige é de um empenhamento estenoante e é difícil encontrar o equilíbrio que busca entre tradição e renovação. Mas se de quase cada vez que o fez atingiu patamares de excelência, desta vez a sua direcção é mesmo magnificente.
 
Diga-se de novo: esta é uma Tosca de antologia, uma das grandes realizações da ópera de Puccini e um dos mais exaltantes dvds de ópera!

Uma Tosca berrante - I

 

 

Foto de Alfredo Rocha
 
 
Tosca
de Puccini
com Elisabete Matos, Ewan Brouwers, Vladimir Vaneev
encenação de Robert Carsen
direcção de Lothar Koenigs
São Carlos, 19 de Maio
 
 
A Cavalleria Rusticana de Mascagni é baseada em Giovanni Verga, expoente do verismo literário. Subsequentemente, a que foi também designada por Giovanne scuola italiana ficou conhecida como verismo operático, categorização equívoca, já que, tudo considerado, foram de facto poucos as obras de estética “naturalista”, a citada Cavalleria Rusticana, as duas Bohème, de Puccini e de Leoncavallo, ou Il Tabarro.
 
O que distingue a escola é a concisão dramática, o canto spinto e di forza, a languidez e a predilecção pelo choque passional e as “emoções fortes”, qual antecipação dos media tablóide, mas ao invés do naturalismo as situações abordadas foram muitas vezes do próprio mundo das artes e representação: os Palhaços de Leoncavallo, a Tosca e a Turandot dePuccini (sim, também a Turandot, porque no fundo está a commedia dell’ arte e das máscaras de Gozzi), a Adriana Lecouvreur de Cilea, esta última e a Tosca sendo mesmo casos em que a prima-donna representa um papel de prima-donna, teatral a Adriana, operática a Floria Tosca.
 
Apresentou-se agora a Tosca no São Carlos, derradeira produção desta lamentável temporada. Por um lado, o teatro foi aos “saldos”, isto é, buscar à Ópera da Flandres uma encenação de Robert Carsen já com idade considerável, e por outro lado o espectáculo foi gizado como consagração local, finalmente, de uma diva, Elisabete Matos.
 
Nunca é demais realçar que a produção de óperas é hoje um mercado internacional, com frequente recurso a co-produções e alugueres, que isso o impõe os custos. Mas também não é demais salientar que este sistema se torna mecânico na medida em que muitas vezes, mesmo a maioria, os encenadores não supervisam eles próprios as reposições dos seus trabalhos. Sendo um prolífero encenador, essa ausência é um dado recorrente no caso de Carsen – estava ele ocupado com L’Incoronazione di Poppea, que no passado dia 18 abriu o Festival de Glyndebourne, quando pela segunda vez, depois da Lucia de Lammermoor em 2000, uma encenação sua foi apresentada em São Carlos.
 
Retrospectivamente, constata-se neste trabalho a predilecção pela mise en abyme que se tornou característica de Carsen. Quando da anterior produção da temporada do São Carlos, uns Contos de Hoffmann que foram verdadeiramente miseráveis, lembrei-me de imediato do esplendor vocal que tinha tido a ocasião de ouvir da vez anterior em que assistira a representações dessa ópera, na Bastilha, com Neil Shicoff e Bryn Terfel; como essa produção, encenada por Carsen, existe em dvd, pode-se verificar como, para entusiasmo sempre do público na Bastilha, a Barcarola é uma típica mise en abyme, no palco estando representada uma plateia.
 
Se houve um momento em que Carsen logrou notavelmente a reflexividade e duplicação especular da mise en abyme, com o Sonho de uma Noite de Verão de Britten, originalmente apresentado em Aix-en-Provence, e que também existe em dvd, forçoso é dizer que a repetição do processo se tornou estereótipo. É contudo supérfluo tecer uma exegese sobre os trabalhos do encenador a propósito desta Tosca - importa sim questionar a coerência da proposta ora re-apresentada.
 
Sendo Floria Tosca uma diva, e redobradamente uma personagem teatral, evidente é que a reprodução da representação e a duplicação especular da mise en abyme se justificam. A opção é obstinada neste caso, pois Carsen coloca o Acto I numa plateia, o II em bastidores de fundo do palco e o III no próprio palco, invertido a partir do fundo. O contexto político, tão importante na Tosca, é assim também secundarizado, tornado mesmo irrelevante, o que afinal mais faz sobressair os aspectos soap ou tablóide do enredo; ora, mesmo que se  admita a subestimação do carácter de Mario Caravadossi, caso singular de uma personagem de Puccini com características de um herói rissorgimental verdiano, esse contexto político é não obstante fundamental ao grande afrontamento Tosca-Scarpia – que este último seja um chefe de polícia política passa contudo desapercebido nesta produção!
 
Mas mais grave são os pormenores supérfluos de ostentação, sobretudo no Acto I, com os alunos surgindo na “plateia” do palco quais artistas infantis nos bastidores, o primarismo da pose de star de Tosca ou a sua apresentação, no final, como madonna no altar em fundo ao Te Deum – o redobramento do teatro e da igreja é uma característica da estética barroca, não do verismo, a menos que neste que se queira sobretudo assinalar o rito sacrificial das heroínas (um dos aspectos mais marcantes das óperas de Puccini), opção que todavia também não é a desta encenação.
 
O azul forte e berrante do vestido da Tosca, e da tela que Cavaradossi pinta, dão “o tom”: esta é uma Tosca carregada, ainda mais primária e em tantos aspectos desleixada.

 

Uma Tosca berrante - II

Foto de Alfredo Rocha
 
Ocorria pois que a Tosca fosse Elisabete Matos, cantora com características que serão tanto mais salientes para o papel quanto lhe ocorre ter já ela própria uma pose de diva. Mas mais: este é um papel para vedetas temperamentais como ela, quais Anna Magnani cantoras – e em 1946, a Magnani foi de resto a vedeta de Avanti a lui tremava tutta Roma, filme que era uma Tosca-anti-fascista (e não operática, mas com Titto Gobbi como herói), feito em jeito de se redimir por uns dos realizadores mais destacados do fascismo, o de Scipione l’Africano, Carmine Gallone.
 
É por demais absurdo protestar por princípio contra o “vedetismo” em ópera – afinal, não só foi neste género que historicamente se constituiu o star system, com os castrati e prima-donne, como ele supõe o artifício exacerbado de criaturas cantantes, expoentes de uma convenção artificiosa. E, na prática das concretas produções, é evidente que um dos pressupostos de base das escolhas artísticas é o de programar também em função dos atributos de peculiares específicos intérpretes.
 
As capacidades de Elisabete Matos, e o estatuto de notoriedade que atingiu, mais que justificam que houvesse enfim no São Carlos uma produção gizada em seu torno, que não apenas os Amor Brujo e Cavalleria Rusticana que interpretou nas últimas temporadas – e se se relembrar que em 2003 foi cancelado um Navio Fantasma em que ela devia participar, mais se compreende e justifica a opção.
 
Todavia, se tem as capacidades vocais e temperamentais, também lhe falta, pelo menos por ora, o canto appassionato e o slancio que o papel exige – e quanto a isso o “Vissi d’arte”, momento culminante da prima-donna, aliás redobrado nesta produção, com as luzes a acenderem-se na sala, foi afinal um anti-climax –, e a sua Tosca é arrebatada mas não isenta de tiques de vulgaridade. Sendo Elisabete Matos uma intérprete trabalhadora e com uma noção inteligente das suas capacidades e do aperfeiçoamento que ainda necessita, a Tosca, sendo já um seu papel de eleição, poderá ganhar mais consistentes contornos no futuro, que não apenas tão imediatamente vistosos. E, de qualquer modo, faltou para a guiar aqui uma mão inspirada, que manifestamente não houve.
 
Depois de tantos desastres que se foram sucedendo ao longo do presente temporada do São Carlos, poderemos ser tomados por uma sensação de alívio por esta Tosca ao menos ser uma produção aceitável, o que é inegável – mas isso não basta.
 
Por exemplo, se um dos traços mais tristemente marcantes foi a aflitiva mediocridade repetida de maestros, Lothar Koenigs é de uma outra bitola. Tenho tido a ocasião de o apreciar várias vezes, sobretudo em reportório das primeiras décadas do século XX, por exemplo quando da estreia na Ópera de Lyon da produção do Wozzeck que o São Carlos depois apresentou no CCB, na temporada passada – e tive também a ocasião de dizer que se muito mais apreciei em Lisboa foi fruto, nomeadamente, de uma superior direcção de Eliahu Inbal. Fico que de facto com dúvidas que a Tosca lhe seja obra indicada, porque no seu empenhamento dramático falta ainda assim o sentido claustrofóbico da extrema concisão do Acto II, o apuro do trabalho sobre a gradação das cores instrumentais, o sentido lânguido e da agógica tão particulares a Puccini.
 
Quanto aos restantes intérpretes, que em função das opções de produção não foram escolhas de fundo, há a notar o reluzente timbre do tenor Ewan Browers/Cavaradossi, que contudo (e na récita de dia 21, pelo menos, terminou o “E lucevan le stelle” com um escusado e terrível trilo), e o “erro de casting” que é o Scarpia de Vladimir Vaneev, excelente baixo mas noutro repertório (recorde-se o seu Boris Godounov) e sem as cores mais baritoniais que a tipologia do papel exige.
 
O facto de esta produção ter sido justificada por Elisabete Matos e não ser tão medíocre quanto as anteriores da temporada não deve pois obliterar que é uma Tosca berrante mas desinspirada.