Desde a sua fundação por Christopher Hogwood em 1973, que a Academy of Ancient Music se tem dedicado à música de Purcell e à de Haendel, autores a que se tem também votado Richard Egarr, que sucedeu a Hogwood como director musical – dedicações particulares e a níveis de excelência que se podem aliás constatar nestasdiscografias.
Essas dedicações e excelência eram motivos amplamente justificativos do interesse pelo programa que a Academy e Egarr, com a soprano Carolyn Samposon, vieram apresentar à Casa da Música e à Gulbenkian: de Purcell três ayres incluindo Music for a While, extractos de The Fairy Queen e de Dido & Aeneas, e de Haendel o Concerto Grossso op. 3 nº 2 e quatro árias, três de ópera, “Desterò dall’empia” de Amadigi di Gaula, “Lassa! Ch’io t’ho perduta” de Atalanta e “Ma quando tornerai” de Alcina, mais outra de oratória, “Let the bright Seraphim” de Samson. Foi pois um programa que, de modo condensado, se apresentava contudo como suficientemente representativo das características de um e outro compositor.
A familiaridade da Academy com este reportório foi da ordem das evidências, tal como a vivacidade da direcção de Egarr, com uma grande energia ritmíca e um sentido notável das cores – é pena que não constasse do programa a composição do agrupamento para ficar devidamente registado o destaque do oboeísta e do trompetista.
O problema foi Carolyn Sampson, intérprete de pouca personalidade vocal e ademais pouco idiomática em italiano, de agudos delicados – o que nalguns momentos até foi um atributo - , médios embaciados e graves pouco encorpados. Eis o caso de uma cantora de todo despossuída do que Roland Barthes designou por grão da voz, esse “qual coisa que é directamente do corpo do cantor”, irredutivelmente singular. Para mais o programa era para ela temerário, com o Lamento de Dido, mais duas árias de furor de feiticeiras, as de Melissa no Amadigi e de Alcina, e um outro lamento, de Atalanta.
Correcção estilística não lhe faltou, designadamente na ornamentação das árias italianas, mas o carácter, os caracteres, foram um débito considerável. Com um excepção, no entanto, e de relevo: a delicadeza inefável, de “The Plaint – Let Me Weep”, momento em que aliás a sequência de extractos de The Fairy Queen foi justamente interrompida por aplausos.
Se a Academy brilhou, as debilidades da cantora tornaram este programa representativo de Purcell e Haendel em algo escolástico, académico.
A colocação em linha agora destes textos sobre Purcell e Haendel prende-se com os derradeiros concertos celebrativos das efemérides.
Hoje às 21h, na Casa da Música, em concerto integrado no Festival À Volta do Barroco e amanhã às 19h na Gulbenkian, apresentam-se intérpretes credenciados (como aliás se pode constatar nas discografias abaixo), a Academy of Ancient Music e Richard Egarr, mais a soprano Carolyn Sampson, num programa com peças instrumentais e vocais de Haendel e Purcell, incluindo deste último três trechos dos mais maravilhosos, “Music for a While”, “The Plaint” de The Fairy Queen e o Lamento de Dido.
Ainda na Casa da Música, no domingo, às 18h, apresenta-se outro reputado agrupamento, a Akademie für Alte Musik Berlin, com obras de Matthew Locke, mentor de Purcell, deste mesmo e de Haendel.
São concertos que justificam uma chamada de atenção
Comecemos pois a discografia por aí, por Dido & Aeneas, obra muitas vezes gravada e em que várias grandes intérpretes se distinguiram. Mas, pesem ainda Tatiana Troyanos, Anne Sophie von Otter, Della Jones, Lorraine Hunt, Susan Graham e outras, houve uma intérprete de excepção na dimensão trágica do papel: Janet Baker, na sua primeira gravação, de 1962, dirigida por Henry Lewis (Decca).. Como concepção global são marcantes duas outras gravações, em tudo opostas, a aproximação à ópera para meninas de Andrew Parrott com Emma Kirkby e a mais terrificante das feiticeiras, Jantina Noorman (Chandos), e o fausto e dramaticidade de Christopher Hogwood com a Academy of Ancient Music e outra protagonista de excepção, Catherine Bott (Oiseau-Lyre).
Mas o teatro musical de Purcell está longe de se resumir à singularidade de Dido & Aeneas.
Henry Purcell (1659-1695) de quem ora celebramos os 350 anos do nascimento, constitui um daqueles casos da história da música a propósito do qual ocorre o intento de Norbert Elias sobre Mozat, “sociologia de um génio”. Génio precoce e de vida breve, 36 anos, e caso único de génio na música britânica entre o maneirismo da “idade de ouro” elisabetiana e jacobita e o século XX. Só esses três factos, a genialidade do designado “Orpheus Britannicus”, a brevidade da vida e o seu estatuto de caso isolado, são suficientes para o reconhecer mesmo entre os mais singulares autores da história da música europeia.
Mas Purcell foi também fruto de um quadro histórico e de circunstâncias várias. Quando nasceu vigorava ainda a “commonwealth” do puritano Cromwell, de um rigor e severidade tais que mantinha fechados os teatros. Mas logo no ano seguinte o pretendente Stuart regressa e é coroado como Carlos II – era a “Restauração”, época de faustos e prazeres. A Chapel Royal é restabelecida e para ela Henry Purcell entra muito jovem como menino do coro. As mortes sucessivas dos mestres de capela Henry Cooke e Pelham Humphrey levaram ao cargo o mentor de Purcell, John Blow. A voz tendo mudado, Purcell permaneceu no entanto ao serviço da capela como copista e organista, em contacto por certo com o compositor mais célebre da altura, Matthew Locke. Quanto este por sua vez morre, em 1677, Purcell torna-se “composer-in-ordinary” dos violinos da capela real, os “Four and Twenty Fiddlers” instituídos por Carlos II à imagem dos “24 Violons du Roy” do seu protector de exílio, Luís XIV. Eis então Henry oficiando em compositor escrevendo “anthems” (hinos religiosos), acolhendo o influxo italiano mas também estabelecendo um laço com a tradição perdida do maneirismo com as “arcaìzantes” e extraordinárias Fantasias for the Viols.
Em breve se dedica também a escrever música para o teatro, a arte mais celebrada da Restauração. A sua reputação estava consagrada quando compõe para a coroação do novo rei, Jaime II, em 1685. O catolicismo deste e a perspectiva de nascimento de um herdeiro estarão na origem da revolução de 1688 que leva ao poder Maria e o seu marido Guilherme de Orange. A Queen Mary virá a ser a grande protectora de Purcell e se o autor se destacará como compositor de Odes estas tanto serão dedicadas à padroeira da música, Santo Cecília, como à Rainha, nos seus aniversários.
Na corte de Luis XIV tinham os Stuarts exilados conhecido o novo género da “tragédie lyrique”, contraponto francês à recusada ópera italiana. Mas por sua vez o género francês não teve acolhimento em terras britânicas. Em vez disso, e na sequência da tradição da “masque”, floresceu um teatro musical, ou antes meio falado e meio musicado, de que Purcell será o mestre esplendoroso. Mas este génio tão peculiar ainda fará uma obra de todo singular, uma ópera mesmo, uma ópera de câmara, Dido & Aeneas, provavelmente para um colégio de meninas, a escola de Josias Priest, que a posteridade consagrará como a sua obra mais celebrada, e se tornará mesmo – paradoxo para com as suas origens num terreno sem ópera – na mais representada de todas as óperas barrocas.