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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

“Il s’entretient avec les muses” (Leonhardt – II)

 

 

Gustav Leonhardt
Obras de Louis Couperin, Froberger, D’ Anglebert, Rameau
Igreja de São Pedro de Rates, Festival da Póvoa do Varzim, 27 de Julho
 
 
Lembro-me de há anos ter lido numa revista uma caracterização sumária, ou tendencial, entre os dois grandes mestres das novas concepções interpretativas da música barroca: Nikolaus Harnoncourt seria sobretudo um intérprete da acentuação, Gustav Leonhardt da articulação. Nunca deixei de recordar essa caracterização, tanto mais que ao longo dos anos ela me foi parecendo mais pertinente.
 
Leonhardt, o “calvinista”, o “homem do “Norte”, o “severo”, é antes de mais um intérprete da absoluta fidelidade ao texto, mas também da convicção que é necessário para fazer do texto Verbo, isto é, música.
 
A noção de “prazer” é-lhe alheia (e, no entanto…), e o seu jogo digital não tem aquele sentido físico e eminentemente táctil que se encontra nalguns dos cravistas que vieram depois dele, um Ton Koopman ou um Pierre Hantaï, e que às vezes os tornam tão próximos dos pianistas de jazz.
 
Mas esse jogo digital tem uma capacidade de articulação, de dinâmicas vivas e precisas, de subtis mudanças de tempo, que realizam superlativamente as diversas linhas da polifonia, e sugerem a seu modo uma arte da conversação, mas também de um tempo ora rápido ora, dir-se-ia, em “longue durée” – a especial dimensão, estaria tentado a dizer que a “metafísica” desta arte interpretativa, foi aliás bem patente, neste maravilhoso recital no quadro ímpar da Igreja Românica de São Pedro de Rates, nas sarabandes e chaconnes, na Gaillard (lentement) da Suite em Sol Maior de D’Anglebert, numa extraordinária Toccata 3 de Froberger, e, obviamente, finalizando o concerto em extra, na 25ª das Variações Goldberg de Bach, do entre todos amado Bach, momento prodigioso do jogo dos dois teclados, momento sublime dessa dimensão “metafísica”.
 
Mas, no entretanto, houve Rameau, e Jean-Philippe Rameau é por excelência o compositor de uma “estética do prazer”. Mas a subtileza da arte de Leonhardt é suficientemente flexível e ampla para que, ainda que fosse notório o corte com o restante reportório, precedente no programa do recital, a articulação e o sentido vivo e preciso da dinâmica e dos tempos nos transmitisse todo o requinte de Les tendres plaisirs (et voilá!) ou Entretien des Muses.
 
A música será para Leonhardt um modo de “re-ligação” mas, de modo mais profano, não deixa de ser também uma conversação com as musas. É efectivamente uma arte magistral.