Casa da Música - V
Já que no texto anterior evoquei as deslumbrantes Vésperas de Monteverdi que Sigiswald Kuijken dirigiu na Casa da Música em Novembro do ano passado, em que obteve surpreendentes efeitos de espacialização sonora tão só com pequenos movimentos em palco dos cantores e instrumentistas, e também porque tinha dito que ainda faria referência a Quem Chama?, obra de Karin Rehnqvist, “compositora associada” da Casa neste ano de “Focus Nórdico” (obra estreada no meio dos concertos comemorativos dos 100 anos do nascimento de Olivier Messiaen e Elliot Carter, no passado dia 13), vou retomar uma questão concreta das valias da Casa, no ponto das suas ainda não-concretizações.
Quem Chama? requer duas vozes femininas, dois trompetes e dois trombones, e um pequeno conjunto instrumental, fagote, contrafagote, violoncelo, contrabaixo, piano, harpa e percussão. O que é muito interessante, e mesmo insólito no campo da composição contemporânea, é que Rehnqvist se baseou 1) nos chamamentos populares do gado, o outro elemento sendo, 2) a própria acústica do auditório. Assim, enquanto o grupo instrumental está no palco, uma das vozes, com uma trompete de cada lado nos extremos, está sobre o palco, e a outra voz, ladeada do mesmo modo, mas pelos trombones, está no cimo do auditório, por trás dos espectadores. Confesso que não percebi muito bem a relação entre o grupo que chama e o que está em palco, mas esta obra merece ficar assinalada como a primeira concebida especificamente para a acústica da Sala Guilhermina Suggia da Casa da Música.
Dir-se-ia que as formas do “meteorito” de Rem Koolhaas sugerem em si mesmo, de modo particularmente agudo, uma construção no espaço. Sucede que há um facto bizarro no equipamento, tanto mais atendendo ao vultuoso investimento: há alguns problemas de acústica. Com uma orquestra ou um conjunto instrumental mais numeroso os médios tendem a ficar ofuscados e o equilíbrio a ser mitigado – questão de frequências portanto, além de outros pormenores que exigem atenção mas se resolvem (por exemplo a projecção é condicionada pelas cortinas do fundo da sala estarem ou não corridas). Mas acontece também que a Sala tem uma surpreendente acústica para música antiga e barroca e, pese ainda ter a disposição habitual de um auditório, também para a espacialização sonora – ao ouvir Quem Chama?, o que me ocorreu imediatamente é que afinal é acusticamente possível realizar na Sala Guilhermina Suggia obras da policoralidade veneziana, como as de Giovanni Gabrieli.
Antecipando os destaques da programação da Casa da Música para 2009 que em breve farei, digo desde já (e é de tomar nota, que a ocasião vai mesmo ser única e a deslocação justifica-se amplamente) que entre todos se salienta um facto: a estreia em Portugal, finalmente, de Gruppen (1956) de Stockhausen, para três orquestras, uma das mais extraordinárias obras da música da segunda metade do século XX:
Com isto quero também reforçar em concreto aquilo que escrevi em função do que tinha sido anunciado para o projecto da Casa da Música e o seu modelo proclamado, a Cité de la Musique em Paris: para além de todas as valias já consolidadas, é possível e mesmo desejável atendendo às próprias promessas, programar de modo mais integrado e interdisciplinar, nomeadamente em torno de concretas questões musicais, de que a espacialização é um dos exemplos mais salientes.