Semele é uma das mais insólitas – talvez a mais insólita mesmo – obra de Haendel e uma das suas jóias maiores. Como venho referindo, três das oratórias, Semele. Theodora e Hercules não são bíblicas (e só a segunda é de tema cristão), podendo-se considerar autênticos dramme per mùsica, embora em princípio – Haendel já tinha abandonado os palcos cénicos – não destinadas a representação, o que todavia tem vindo a acontecer, com plena justificação, nos últimos anos.
Das três, Semele é cronologicamente a primeira – 1744 Como também já referi, o compositor já se dedicava de modo consistente à oratória desde Saul, em 1739. Não sabemos exactamente se ele terá tido consciência logo depois que Deidamia, de 1741, era a sua última ópera, mas o triunfo de O Messias, no ano seguinte, fê-lo dedicar-se ainda mais à oratória. Certo é que as rivalidades operáticas não o largaram: depois de ainda outra oratória, Sansão, de 1743, e de várias peripécias, incluindo problemas de saúde e financeiros do compositor, ele fez face aos imbróglios com uma obra “in the manner of an oratório” – “in the manner”, note-se bem, destinado ao concerto, mas não exactamente uma oratória, e com as bem patentes marcas de um consumado autor de óperas (é de lamentar que um livrete deste dvd inclua apenas um texto do encenador sem quaisquer notas sobre tão peculiar obra).
A sua escolha foi das mais singulares: uma peça do dramaturgo da Restauração William Congreve, uma comedy of manners, uma comédia sexual, e de que maneira! Em toda a obra de Haendel Semele rivaliza apenas com Agrippina e Giulio Cesare na sensualidade e carácter lúbrico – e é aparentemente uma oratória! Semele é um dos grandes papéis haendelianos, e há também o de Juno, nomeadamente com a famosa ária Hence, Íris, hence away!.
A certa altura da sua carreira, a Bartoli fez saber do seu interesse em gravar um recital dedicado a Haendel. Quando por circunstâncias inesperadas ela cantou na Òpera de Zurique a oratória romana La ressurezione dirigida por Marc Minkowski, pensou-se (escrevi-o a altura) que esse recital se aproximava. Afinal fizéramos em conjunto um mais original trabalho, dedicado apenas ao período romano do compositor, e também dos seus coevos Alessandro Scarlatti e Caldara, o magistral Opera Proibita, “ópera disfarçada” (porque interdita nos Estados Papais) em oratórias e cantatas.
O intendente Alexander Pereira tornou a Ópera de Zurique numa das mais reputadas da Europa. É lá, e apenas lá, que Cecilia Bartoli canta regularmente em cena. Em rigor, esta Semele não é uma “produção” daquele teatro. A encenação de Robert Carsen data de 1996, e foi originalmente concebida para o Festival de Aix-en-Provence (foi Minkowski que então dirigiu), na mesma altura, se bem me lembro, que Peter Sellars e Wiliam Christie faziam em Glyndebourne a sua extraordinária realização de Theodora. O toque e os tiques de Carsen estão bem patentes: as cadeiras semi-voltadas de costas para o público, como na Tosca apresentada no ano passado no São Carlos que foi um dos seus primeiros trabalhos, os tapetes vindos directamente da sua anterior encenação em Aix, essa admirável, do Sonho de uma Noite de Verão de Britten (existe em dvd, captado no Liceo de Barcelona), mas a realização nem por isso deixa de ter o seu charme.
É pela Bartoli que nos precipitamos para este dvd, e ela é magnificente, strepitosa. Ei-la de novo com “ópera disfarçada”, mas desta vez aliando o esplendor vocal à inteligência dramática e cénica, tão magistral na deslumbrante agilidade como na arte do abandono em Endless pleasure, Oh Sleep (divino pianíssimo!) ou With Fond Desiring.
Não é surpresa que os parceiros sejam poucos mais que comparsas. Anton Scharinger (Cadmus) e Birgit Remmert (Juno) são erros de casting, quando ambos já deram provas suficientes noutros repertórios, havendo a agravante da segunda não ter meios para cantar Hence, Íris, hence away, Isabel Rey (Íris) é frágil embora cenicamente versátil, Liliana Nikiteanu (Ino) está mesmo desfasada. Quanto a Charles Workman (Júpiter), tão notável intérprete de tragédies lyriques, de Rameau ou Gluck, tem uma bela linha de canto mas escasseia-lhe a autoridade e a virtuosidade do papel.
A Wiliam Christie já se lhe ouviram em Haendel direcções mais vigorosas (é mesmo um especialista), o que é tanto mais estranho, quanto La Scintilla, o agrupamento barroco da Òpera de Zurique, tem melhores capacidades do que aqui deixa ouvir de modo um pouco aquém da beleza plástica da obra, como é estranho que, sendo Christie um consumado director de vozes, se mostre ainda assim incapaz de moldar a vocalidade de vários (quase todos) os solistas. É a presença em cena da Semele da Bartoli que tudo transfigura.
A Semele conta com um dos registos mais “anómalos” da discografia haendeliana, com Kathleen Battle (sim, essa, imagine-se!), Marilyn Horne e Samuel Ramey, com uma orquestra “moderna”, a English Chamber Orchestra, e direcção de John Nelson (DG). Em termos musicais globais é essa a gravação a reter. Mas, e apesar de todas as reservas, esta memorável interpretação da Bartoli, a possibilidade de dispor de uma realização cénica de tão insólita obra e, ainda, o facto de com esta ficarem disponíveis em dvd produções teatrais de todas as três oratórias não-biblícas de Haendel, faz com que não se possa deixar de considerar este registo – e de, com prudência ainda, o recomendar.
Mortal amada e amante de Júpiter, Semele perde-se pela ambição desmedida de alcançar a divina imortalidade. Quanto à Semele da Bartoli, essa é mesmo divinal.
com Elisabete Matos, Ewan Brouwers, Vladimir Vaneev
encenação de Robert Carsen
direcção de Lothar Koenigs
São Carlos, 19 de Maio
A Cavalleria Rusticana de Mascagni é baseada em Giovanni Verga, expoente do verismo literário. Subsequentemente, a que foi também designada por Giovanne scuola italiana ficou conhecida como verismo operático, categorização equívoca, já que, tudo considerado, foram de facto poucos as obras de estética “naturalista”, a citada Cavalleria Rusticana, as duas Bohème, de Puccini e de Leoncavallo, ou Il Tabarro.
O que distingue a escola é a concisão dramática, o canto spinto e di forza, a languidez e a predilecção pelo choque passional e as “emoções fortes”, qual antecipação dos media tablóide, mas ao invés do naturalismo as situações abordadas foram muitas vezes do próprio mundo das artes e representação: os Palhaços de Leoncavallo, a Tosca e a Turandot dePuccini (sim, também a Turandot, porque no fundo está a commedia dell’ arte e das máscaras de Gozzi), a Adriana Lecouvreur de Cilea, esta última e a Tosca sendo mesmo casos em que a prima-donna representa um papel de prima-donna, teatral a Adriana, operática a Floria Tosca.
Apresentou-se agora a Tosca no São Carlos, derradeira produção desta lamentável temporada. Por um lado, o teatro foi aos “saldos”, isto é, buscar à Ópera da Flandres uma encenação de Robert Carsen já com idade considerável, e por outro lado o espectáculo foi gizado como consagração local, finalmente, de uma diva, Elisabete Matos.
Nunca é demais realçar que a produção de óperas é hoje um mercado internacional, com frequente recurso a co-produções e alugueres, que isso o impõe os custos. Mas também não é demais salientar que este sistema se torna mecânico na medida em que muitas vezes, mesmo a maioria, os encenadores não supervisam eles próprios as reposições dos seus trabalhos. Sendo um prolífero encenador, essa ausência é um dado recorrente no caso de Carsen – estava ele ocupado com L’Incoronazione di Poppea, que no passado dia 18 abriu o Festival de Glyndebourne, quando pela segunda vez, depois da Lucia de Lammermoor em 2000, uma encenação sua foi apresentada em São Carlos.
Retrospectivamente, constata-se neste trabalho a predilecção pela mise en abyme que se tornou característica de Carsen. Quando da anterior produção da temporada do São Carlos, uns Contos de Hoffmann que foram verdadeiramente miseráveis, lembrei-me de imediato do esplendor vocal que tinha tido a ocasião de ouvir da vez anterior em que assistira a representações dessa ópera, na Bastilha, com Neil Shicoff e Bryn Terfel; como essa produção, encenada por Carsen, existe em dvd, pode-se verificar como, para entusiasmo sempre do público na Bastilha, a Barcarola é uma típica mise en abyme, no palco estando representada uma plateia.
Se houve um momento em que Carsen logrou notavelmente a reflexividade e duplicação especular da mise en abyme, com o Sonho de uma Noite de Verão de Britten, originalmente apresentado em Aix-en-Provence, e que também existe em dvd, forçoso é dizer que a repetição do processo se tornou estereótipo. É contudo supérfluo tecer uma exegese sobre os trabalhos do encenador a propósito desta Tosca - importa sim questionar a coerência da proposta ora re-apresentada.
Sendo Floria Tosca uma diva, e redobradamente uma personagem teatral, evidente é que a reprodução da representação e a duplicação especular da mise en abyme se justificam. A opção é obstinada neste caso, pois Carsen coloca o Acto I numa plateia, o II em bastidores de fundo do palco e o III no próprio palco, invertido a partir do fundo. O contexto político, tão importante na Tosca, é assim também secundarizado, tornado mesmo irrelevante, o que afinal mais faz sobressair os aspectos soap ou tablóide do enredo; ora, mesmo que se admita a subestimação do carácter de Mario Caravadossi, caso singular de uma personagem de Puccini com características de um herói rissorgimental verdiano, esse contexto político é não obstante fundamental ao grande afrontamento Tosca-Scarpia – que este último seja um chefe de polícia política passa contudo desapercebido nesta produção!
Mas mais grave são os pormenores supérfluos de ostentação, sobretudo no Acto I, com os alunos surgindo na “plateia” do palco quais artistas infantis nos bastidores, o primarismo da pose de star de Tosca ou a sua apresentação, no final, como madonna no altar em fundo ao Te Deum – o redobramento do teatro e da igreja é uma característica da estética barroca, não do verismo, a menos que neste que se queira sobretudo assinalar o rito sacrificial das heroínas (um dos aspectos mais marcantes das óperas de Puccini), opção que todavia também não é a desta encenação.
O azul forte e berrante do vestido da Tosca, e da tela que Cavaradossi pinta, dão “o tom”: esta é uma Tosca carregada, ainda mais primária e em tantos aspectos desleixada.
Ocorria pois que a Tosca fosse Elisabete Matos, cantora com características que serão tanto mais salientes para o papel quanto lhe ocorre ter já ela própria uma pose de diva. Mas mais: este é um papel para vedetas temperamentais como ela, quais Anna Magnani cantoras – e em 1946, a Magnani foi de resto a vedeta de Avanti a lui tremava tutta Roma, filme que era uma Tosca-anti-fascista (e não operática, mas com Titto Gobbi como herói), feito em jeito de se redimir por uns dos realizadores mais destacados do fascismo, o de Scipione l’Africano, Carmine Gallone.
É por demais absurdo protestar por princípio contra o “vedetismo” em ópera – afinal, não só foi neste género que historicamente se constituiu o star system, com os castrati e prima-donne, como ele supõe o artifício exacerbado de criaturas cantantes, expoentes de uma convenção artificiosa. E, na prática das concretas produções, é evidente que um dos pressupostos de base das escolhas artísticas é o de programar também em função dos atributos de peculiares específicos intérpretes.
As capacidades de Elisabete Matos, e o estatuto de notoriedade que atingiu, mais que justificam que houvesse enfim no São Carlos uma produção gizada em seu torno, que não apenas os Amor Brujo e Cavalleria Rusticana que interpretou nas últimas temporadas – e se se relembrar que em 2003 foi cancelado um Navio Fantasma em que ela devia participar, mais se compreende e justifica a opção.
Todavia, se tem as capacidades vocais e temperamentais, também lhe falta, pelo menos por ora, o canto appassionato e o slancio que o papel exige – e quanto a isso o “Vissi d’arte”, momento culminante da prima-donna, aliás redobrado nesta produção, com as luzes a acenderem-se na sala, foi afinal um anti-climax –, e a sua Tosca é arrebatada mas não isenta de tiques de vulgaridade. Sendo Elisabete Matos uma intérprete trabalhadora e com uma noção inteligente das suas capacidades e do aperfeiçoamento que ainda necessita, a Tosca, sendo já um seu papel de eleição, poderá ganhar mais consistentes contornos no futuro, que não apenas tão imediatamente vistosos. E, de qualquer modo, faltou para a guiar aqui uma mão inspirada, que manifestamente não houve.
Depois de tantos desastres que se foram sucedendo ao longo do presente temporada do São Carlos, poderemos ser tomados por uma sensação de alívio por esta Tosca ao menos ser uma produção aceitável, o que é inegável – mas isso não basta.
Por exemplo, se um dos traços mais tristemente marcantes foi a aflitiva mediocridade repetida de maestros, Lothar Koenigs é de uma outra bitola. Tenho tido a ocasião de o apreciar várias vezes, sobretudo em reportório das primeiras décadas do século XX, por exemplo quando da estreia na Ópera de Lyon da produção do Wozzeck que o São Carlos depois apresentou no CCB, na temporada passada – e tive também a ocasião de dizer que se muito mais apreciei em Lisboa foi fruto, nomeadamente, de uma superior direcção de Eliahu Inbal. Fico que de facto com dúvidas que a Tosca lhe seja obra indicada, porque no seu empenhamento dramático falta ainda assim o sentido claustrofóbico da extrema concisão do Acto II, o apuro do trabalho sobre a gradação das cores instrumentais, o sentido lânguido e da agógica tão particulares a Puccini.
Quanto aos restantes intérpretes, que em função das opções de produção não foram escolhas de fundo, há a notar o reluzente timbre do tenor Ewan Browers/Cavaradossi, que contudo (e na récita de dia 21, pelo menos, terminou o “E lucevan le stelle” com um escusado e terrível trilo), e o “erro de casting” que é o Scarpia de Vladimir Vaneev, excelente baixo mas noutro repertório (recorde-se o seu Boris Godounov) e sem as cores mais baritoniais que a tipologia do papel exige.
O facto de esta produção ter sido justificada por Elisabete Matos e não ser tão medíocre quanto as anteriores da temporada não deve pois obliterar que é uma Tosca berrante mas desinspirada.