A gestão de Christoph Dammann no Teatro Nacional de São Carlos caracteriza-se por um descalabro continuado, como aqui variadas vezes se reiterou. Mais ainda, é o momento mais negro da história do Teatro desde a sua reabertura, pior ainda que o provinciano “O São Carlos nacionalizado, nosso” do consulado Serra Formigal.
As responsabilidades incubem ao próprio mas também, e de modo decisivo, a quem afastou Paolo Pinamonti, criou uma abstrusa entidade de gestão de nome Opart (com o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado) e nomeou Dammann, o então secretário de Estado da Cultura Mário Vieira de Carvalho.
A situação era do conhecimento geral, mas exonerados Isabel Pires de Lima e Mário Vieira de Carvalho, o então novo ministro, José António Pinto Ribeiro, apesar de ter publicamente declarado as suas dúvidas com a estrutura da Opart e de ter mantido várias conversas com Paolo Pinamonti, acabou por proceder como lhe foi habitual na pasta: nada fez. Como tal uma quota-parte de responsabilidades também sobre ele impendem.
Depois de ter assistido a uma récita de O Morcego, a agora ministra Gabriela Canavilhas (que, ponto talvez não despiciendo neste caso, é uma artista, uma pianista) chamou Dammann. E desta vez sim, e finalmente, há novas: numa entrevista à Antena 2, Canavilhas declarou que “neste momento já não há qualquer dúvida de que é necessário substituir o director artístico do Teatro Nacional de São Carlos” - “Do meu ponto de vista a direcção já provou que a sua linha estratégica e o seu conceito estético não se coadunam com aquilo que o público português espera do Teatro Nacional de S. Carlos”.
Dado o carácter “blindado” do contrato de Dammann, válido até Agosto de 2012, e prevendo uma avultada indemnização em caso de rescisão, serão ainda necessárias conversações com vista a um acordo dos termos da saída. Mas, mesmo sendo esse um factor a ponderar, muito, muitíssimo mais gravosa para o serviço público que o São Carlos é, e para os níveis artísticos que estatutariamente lhe estão fixados, seria a permanência do senhor. A decisão de Canavilhas não pode pois ser senão vivamente saudada – enfim, Damman fora!
BASTA! Basta de disparates e assassinatos no São Carlos, como agora com a Agrippina de Haendel!
Escolheu o teatro comemorar os 250 anos da morte do compositor assinalando também o tricentenário da estreia do seu grande sucesso público italiano, ocorrida no mais prestigiado teatro de Veneza, o S. Giovanni Crisostomo.
Logo os disparates começaram com a encomenda a Nuno Côrte-Real de um intermezzo à maneira da opera buffa que se intercalava na opera seria, Acontece que tal prática se constituiu sim com a sucessiva ópera napolitana, e que Agrippina pertence ainda esteticamente ao mundo da seiscentista ópera veneziana, tal como se encontrava já exemplarmente definido na L’incoronazione di Poppea de Monteverdi (de que Agrippina é em termos de referentes históricos uma espécie de préquela), misturando situações sérias e cómicas – Haendel guardará a memória disso ainda em obras muito mais tardias como o Giulio Cesare e o Serse. Quem não sabe isso, ou seja, que não há qualquer lugar a um intermezzo na Agrippina, isto é, o senhor Christoph Dammann – essa “brilhante” personalidade desencantada pelo ex-secretário de Estado e intendente-geral dos teatros, Mário Vieira de Carvalho, responsável primeiro pela actual situação – é um ignorante de história de ópera e, como tal, não tem qualificações para ser director de teatro.
Acontece que o libretista escolhido por Côrte-Real, José Luís Peixoto, em nada fiel ao espírito da encomenda, escreveu de facto uma préquela à ópera de Haendel, O Velório de Cláudio ou representação bufa de personagens históricas, texto indigente (escapa-me a piada de no velório de um suposto morto haver uma batalha de pastéis de bacalhau!) que em nada faz jus à sua reputação, e que dada a natureza do texto o encenador Michael Hampe decidiu, com acerto, colocá-lo antes como prelúdio.
Considero e estimo Côrte-Real como um dos mais talentosos jovens compositores portugueses, mas depois de A Montanha há dois anos na Gulbenkian, no Fórum “O Estado do Mundo”, este é outro desastre, uma música sem personalidade, que de novo parece uma má filtragem, com alguns “pós” modernos, de certos compositores “nacionais” da Europa Central da primeira metade do século (Janácek ou Kodaly).
Mas o pior vem depois: em vez de celebrado Haendel é, ó socorro, esquartejado: das mais de 3h30 de música da Agrippina restam 2h25! Corta aqui e ali, corta a secção b e o da capo (e portanto a arte da variação ornamental), corta mesmo no final a personagem de Juno. Isto faz-se?! É isto a responsabilidade de um Teatro Nacional?
No elenco apenas três cantores, Alexandra Coku (Agrippina), Musa Nkuna (Nerone) e Andrew Wattts (Ottone) revelaram algumas noções do canto haendeliano, mas com tantos limites ou falhanços pelo meio! Coku mostrou alguma autoridade, embora também opacidade nos agudos em Pensieri, para logo depois falhar o Ogni vento que conclui o Acto II e terminar a ópera esgotada. Ao contratenor Watts fugiu-lhe sistematicamente a voz de cabeça para voz de peito, e o maravilhoso lamento de Ottone esteve longe de ser pungente como requerido. A Nkuma faltou-lhe plasticidade de voz.
Os outros foram um horror, quase todos. Reinhard Dorn (Claudio), que numa troca de papéis se imaginou a cantar, mal, o Don Bartolo do Barbeiro de Sevilha, Manuel Brás da Costa (Narciso) e Chelsey Schill (Poppea) fizeram entre eles um festival de desafinação, para sofrimentos dos nossos ouvidos e melomania handeliana. Schill, a tal que é de facto a única cantora-residente no São Carlos cantando em (quase) todas as óperas (onde estão as prometidas audições de cantores portugueses?) merece uma referência especial, de tão estúpida de superficialidade (sim, escrevi estúpida, no tocante à negação da inteligência musical) se mostra a sua concepção de boneca mecânica a precisar de urgente reparação. Quanto a Luís Rodrigues (Palante), pode ser um dos melhores cantores portugueses, é-o de facto, mas o barroco e o canto fiorito em geral não se lhe adequam.
Ao longo de muitos anos escrevi vezes sem conta que Michael Hampe era “o mais chato encenador do mundo” para agora me dizer. A ancenação é chata e rotineira, sem uma ideia, a não ser um beijo incestuoso de mão e filho, Agrippina e Nerone, que nem aquece nem arrefece, é apenas inconsequente.
Mas o pior, o pior mesmo (com Chelsey Schill) é a direcção quadrada de Nicholas Kok, a braços, é certo, com a difícil tarefa de pôr membros da Sinfónica Portuguesa a tocar Haendel. Nada há de gradações dinâmicas e de sentido do fraseado, de propulsão rítmica, e os oboés mostram mesmo sérias dificuldades. E de nada vale ter um contínuo “barroco” quando é tão pobre (como é que um músico como o cravista Marcos Magalhães se fica pelo nível zero?!), desagradável mesmo (Kenneth Frazer no violoncelo barroco).
Não muito depois de tomar posse, o ministro José António Pinto Ribeiro, tinha dito da sua discordância da Op.Art, esse organismo aberrante que reúne o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado – valendo-lhe aliás logo resposta de Vieira de Carvalho. Como se tornou no ministro inexistente deixou as coisas continuaram. Assim, mais que co-responsável, é ele altamente responsável pela permanência do incompetente senhor Dammann, e portanto pela falta de respeito pelos níveis de “qualidade artística” legalmente fixados.
Ò socorro, ó da guarda – Haendel está a ser esquartejado no São Carlos! Basta e BASTA!
Um insólito pensamento ocorreu-me esta noite enquanto assistia no São Carlos à estreia de uma muito medíocre produção – mais outra – do Fausto de Gounod: não teria ainda assim sido preferível que houvessem contratado antes Madame Bianca Castafiore?
A senhora que nas aventuras de Tintim atemorizava com o seu canto – e os sobreagudos – o Capitão Haddock era a caricatura de um estereótipo: o das cantoras de óperas como sopranos ligeiros ou “coloratura”, “sopranos rouxinóis”, numa imagem fixada no século XIX com Jenny Lind e Adelina Patti. E que cantava de modo obsessivo, monomaníaco, a Castafiore? “Ah je ris de me voir si belle en ce miroir”, a “ária das jóias” de Marguerite, do Fausto de Gounod.
A senhora que agora canta, Patrizia Biccirè, também é uma soprano “leggero”. Faz a sua estreia no papel e anda obviamente perdida. Não deve ter tido grande apoio do maestro Enriço Delamboye, apresentado como “director musical da orquestra da Ópera de Colónia” (de que o director era Christoph Dammann, agora para nossa desgraça no São Carlos), o que não quer dizer “director musical da Ópera de Colónia” (atenção a esta nuance) mas sim kapellmeister, e que de facto esteve todo o tempo mais preocupado com a orquestra do que em ser efectivamente maestro-director do espectáculo – e logo por azar, mais outro, na Canção do Rei de Tule da mesma Marguerite, o solo de violino foi um horror de desafinação.
A senhora também não teve com certeza apoio por aí além do encarregado da reposição, já que o encenador Christof Loy terá muito mais que fazer que deslocar-se ao São Carlos. A ironia da história é que Loy, pesem ainda alguns distinções que tem obtido no “meio” (no “meio germânico” entenda-se) andou nas bocas do mundo precisamente porque recusou uma cantora para a reposição de uma encenação sua, de Ariana em Naxos de Strauss em Covent Garden – sim, foi ele que disse que a volumosa Deborah Voigt não se prestava ao figurino que ele fazia questão de manter. Ora, mais a julgar por um texto seu inserido no programa, “A cruz de Gretchen”, do que propriamente pelo que é visível em palco, a dita personagem, Gretchen /Marguerite, será central ao seu entendimento. Como é isso possível com tão inepta intérprete? Talvez então que Bianca Castafiore tivesse um outro brilho – pelo menos, não se deixaria passar tão despercebida.
Olivier Messiaen Turangalîla-Symphonie Markus Bellheim, Philippe Arrieus Orquesta Sinfonia Portuguesa; Julia Jones CCB, 16 de Novembro
É uma coincidência, importante de resto, mas por inteiro se justifica passar à estreia de outro novo director titular, o da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Julia Jones, e assim também retomar a sequência das comemorações do centenário do nascimento de Olivier Messiaen.
Antes do mais, alguns dados: esta grande obra-prima foi estreada em Portugal a 11 de Novembro de 1967, pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, no Tivoli, com intérpretes de referência, as irmãs Yvonne (mulher do compositor) e Jeanne Loriod, direcção de Maurice de Le Roux, em presença do autor. Depois, a obra esteve ausente dos programas 35 anos, até ser de novo interpretada, pela Orquestra de Baden-Baden, direcção de Sylvain Cambreling, a 8 de Abril de 2003 no Europarque de Vila da Feira. De súbito, neste ano do centenário é a inflação: foi feita a 26 de Janeiro, na Casa da Música, pela Orquestra Nacional do Porto, direcção de Michael Zilm, de novo logo três dias depois em Lisboa no Coliseu dos Recreios, no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian, de novo por Cambreling e Baden-Baden (o texto crítico ficou em falta, mas já segue) e agora pela ONP!
Como já tive ocasião de dizer a propósito da temporada do São Carlos, a programação do óbvio revelou neste caso uma notória falta de imaginação, pois foi delineada quando já se sabia das outras duas execuções, e foi mesmo anunciada posteriormente. Sendo que uma outra grande obra para orquestra, Chronochromie, será feita pela ONP na Casa da Música, no próximo dia 12, em vez desta terceira Turangalila bem que antes podia ter sido sim feita a outra grande orquestral do autor, a mais vasta em termos de espaço sonoro, Des Canyons aux étoiles, o que completaria o quadro. Enfim…
(Isto dito, também devo acrescentar contudo que o público que acorreu ao CCB para este concerto da ONP foi substancialmente daquele outro que assistiu à interpretação no Ciclo das Grandes Orquestras).
Julia Jones começou com um gesto amplo mas, a pouco, os “Bien modéré” foram-se tornando uniformes, e sentiu-se que a maestrina ainda está a “tactear” a relação com a ora “sua” orquestra. O mais surpreendente ocorreu contudo do lado dos solistas: ainda que laureado do Concurso Messiaen, o pianista Markus Bellheim exibiu um nada apropriado “toucher” duro, enquanto por outro lado, se em geral aquilo que à época da criação era o aspecto mais “modernista” da obra, o uso das ondas Martenot, surge agora como o mais datado, o solista, Philippe Arrieus, impôs-se pela sua sensibilidade – e nunca me tinha ouvir, em concerto ou em disco um caso em que ondas Martenot se destacassem mais que o piano.
De algum modo, esta execução, apesar dos seus muitos limites, não deixou de ser empolgante – porque a Turangalîla-Symphonie é uma obra tal que, a menos seja um desastre, sempre empolga. Mas houve os tais muitos limites.
Salvaguarde-se que, a abrir a temporada, em Setembro/Outubro, haverá o Siegfried, prosseguindo a encenação da Tetralogia de Wagner por Graham Vick – e, cabe notar, espera-se apenas que, como inicialmente previsto, O Anel se venha de facto a concluir em temporada futura com a representação integral sucessiva da Tetralogia, o que nunca sucedeu em nenhuma das vezes que foi encenada em São Carlos, espera-se, repito, que haja as devidas garantias.
Feita a ressalva, o panorama aproxima-se de um desastre generalizado e da maior incúria.
Sobre esta próxima temporada paira claramente a sombra do ex-secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, que de resto, em vários textos no “Público” e uma resposta ao actual ministro no “Expresso”, tem dados mostras suficientes de que não se dá por vencido, antes que continua a ser o ideólogo.
Acha ele, achou ele sempre, que em ópera se dá demasiada importância aos cantores?! Pronto, passou-se à prática: salvaguardado o Siegfried, repito, cantores de distinção não os há, excepto Elisabete de Matos em arriscada estreia no papel titular da Salomé.
Mas mais: sabe-se como o modelo que o ex-secretário de Estado achou frutífero foi o de Carlos Fragateiro no Teatro da Trindade, nomeando-o mesmo director do Teatro Nacional D. Maria, de resto tendo-se aquele mantido em funções no Trindade, em clara contravenção da exclusividade exigida por lei. Escrevi eu isso mesmo, e demitiu-se em seguida Fragateiro do Trindade, quando aí anunciou umas Bodas de Fígaro encenadas por Maria Emília Correia. Pois a conexão Vieira de Carvalho-Fragateiro-Dammann confirma-se agora com um Don Giovanni encenada pela mesma Maria Emília Correia. Lamento, por toda a consideração que tenho por ela, mas isto é puro disparate, além de revelador das linhas que se cosem.
Mas mais: ao senhor Christoph Dammann escapam os requisitos musicais para ser director de um teatro de ópera, e vou dar três exemplos.
Ponto 1) O aspecto mais catastrófico da sua gestão da temporada anterior foi a escolha de maestros. Agora já não há sequer a possível desculpa do pouco tempo disponível para escolhas e contratações até porque, satisfeito, Dammann resolve repetir.
Na Clemenza di Tito de Mozart houve aspectos infelizes na encenação de Joaquim Benite (os figurinos de Filipe Faísca, o “parti-pris” do estatismo do coro) mas também outros pertinentes (por exemplo, a opção pela monumentalidade). Lamentável sim, além de uma cantora que confundiu Vittelia com a Santuzza da Cavalleria Rusticana, foi a direcção musical de Johannes Start, totalmente privada da energia mozartiana. Pois o dito Start volta, e de novo para dirigir Mozart, e nada menos que o Don Giovanni.
Ponto 2) O senhor Dammann achou interessante retomar uma prática do século XVIII, com um intermezzo bufo interpolado numa opera seria. Esquece-se que os tempos de duração praticados eram muitíssimos mais longos e que, digamos, os “tempos de recepção” também eram outros.
Mas, vai daí, em Agrippina, a mais esplêndida ópera do período italiano de Haendel, vai ser interpolado Intermezzo, ópera encomendada a Nuno Côrte-Real, com libreto de José Luís Peixoto. Ora, não só isso obrigará a cortes ainda mais drástico na ópera de Haendel, como este tipo de encomenda de intermezzo só teria sentido se os respectivos autores dominassem os códigos dos géneros operáticos para com eles jogarem – e não há o menor indício que isso suceda com Peixoto e Côrte-Real.
Ponto 3) Para mais Agrippina requer quatro ou cinco grandes cantores; nem um só dos anunciados é de relevo. E pior: Dammann tem uma tal noção da interpretação historicamente informada que dispensa um agrupamento com instrumentos de época e põe a obra a ser executada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, tal como aliás, num concerto, outra obra-prima barroca, o Te Deum de Charpentier.
Além de tudo o mais, há a dizer que a informação do director do teatro se revela escassa e parcial.
Anuncia-se finalmente um Estúdio de Ópera no São Carlos. Acho importante, gostaria de saber mais, e é uma das questões, tal como a da nefasta OPART EPE que deixo para próximos textos. Mas nesse espectáculo do Estúdio de Ópera, além do já citado The Telephone de Menotti encenado por Karoline Gruber, a tal que depois de Das Märchen pelos vistos aqui também tomou residência, há Comedy on The Bridge do compositor checo Bohuslav Martinu encenada por Paula Gomes Ribeiro. E a que propósito? Porque se desconsideram, por exemplo, os casos mais prometedores revelados nos dois cursos de encenação de ópera da Gulbenkian? Será porque Gomes Ribeiro integra o CESEM, o Centro de Estudos de Estética e Sociologia da Música do Prof. Vieira de Carvalho?
Não sabe o director de teatro das temporadas de outras instituições em Lisboa? Porquê celebrar o centenário de Messiaen com uma interpretação da Turangalîla-Symphonie quando já houve uma no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian este ano, e não faltam outras grandes obras do autor que era importante dar a ouvir? Porquê aceder ao capricho pessoal do presidente, director-geral e intendente de programação do CCB, António Mega Ferreira, que resolveu achar-se também decisor musical, e fazer de novo um Fidelio de Beethoven em versão de concerto?
Tudo isto demonstra, além de graves incúrias, desde logo do director Christoph Dammann, esta espécie de “domínios privados” em que transformaram as instituições culturais: são as opções de Mário Vieira de Carvalho ou os “contributos” de Fragateiro e Mega Ferreira. E é um disparate anunciado, e o plano inclinado do vazio de perspectivas no São Carlos.
(Como disse, deixarei para textos posteriores mais em concreto as questões do Estúdio de Ópera e da OPART)
O “escândalo” associado a uma insistente tendência alemã de encenacão de teatro e opera, tendência que se prenuncia na nova temporada do São Carlos, pode tambem por vezes ser fundado em equívocos. O nome Christof Loy talvez diga pouco aos leitores e melómanos portugueses, mas muitos se recordarão do “escândalo” ocorrido quando o encenador de uma Ariana em Naxos na Royal Opera House de Londres recusou a anunciada protagonista, a soprano americana Deborah Voigt, por a achar digamos que demasiado “volumosa” para os figurinos da personagem. Esse encenador era Christof Loy, o mesmo que é responsavel pelo Fausto de Gounod nesta proxima temporada do Sâo Carlos. Nesse caso até sucede que, como a imprensa mesmo a mais “séria” tende cada vez mais a destacar os acontecimentos que sugerem “escândalo”, a história estava mal contada: tratava-se de uma reposicao e Loy achou, correctamente no plano dos príncipios, que não podia aceitar uma nova intérprete convidada sem ele ter sido consultado, e com características físicas que entendia obrigarem a desfigurar elementos da sua encenacâo. Isto evocado para lembrar quantas vezes o “escândalo” é artificialmente mediatizado, convém entao definir parâmetros estéticos.
Ao longo de já muitos anos de crítica, sempre me interessou particularmente a encenação de ópera e recorrentemente fiz notar como como a renovacão do género vem sendo nas ultimas décadas em grande parte fruto do trabalho de alguns encenadores. Várias das minhas mais intensas experiências e emoções estéticas fundaram-se também no trabalho em ópera de encenadores como Giorgio Strehler, Luca Ronconi, Patrice Chéreau, Peter Stein, Luc Bondy, Bob Wilson ou Peter Sellars. Mas o que vem sendo praticados nos teatros alemães, o designado “regietheater”, e que corresponde em opera ao chamado “ekeltheater” (“teatro de nojo”) e à equivoca teorizacao de um “teatro pós-dramático”, interesssa-me muitíssimo pouco, para não dizer, em termos de crítica “parcial, politica e apaixonada”, que tenho antes tendência a ser frontalmente contra.
Não me interessa absolutramente nada a “actualização” como imperativo, o desejo de “escândalo”, a prática de arbitrariedades. E Loy mas ainda mais Konwitschny são expoentes desse “regietheater”. Dou um exemplo, para não me ficar em termos genericos que poderão parecer apenas preconceituosos: na encenação de Konwitschny do Don Carlos de Verdi na Opera de Viena (Don Carlos com “s” que era o original francês e mesmo, coisa rarissima, integralmente), na cena do auto de fé, surgia no palco um ecrã com uma apresentadora a anunciar o “evento” enquanto, como ligacão das imagens para a sala, os condenados entravam no átrio do edificio, e folhetos eram distribuídos aos espectadores na plateia, enfim, o género de coisa “modernaça” para fazer a tal “actualizaçãoo” e envolver os espectadores – e exercício disparatado de arbritariedade sim!
Acrescento que depois do seu trabalho em Das Märchen de Emmanuel Nunes nada recomendava que Karoline Gruber regresssassse – e é ela que se anuncia para a nova producao da Salomé, bem como para uma das duas óperas dpo novel Estúdio de Ópera, The Telephone de Menotti. Enfim, já apresentada na temporada anterior, retoma-se na proxima A (pequena) Flauta Mágica (mas que desta feita sera cantada em português – talvez alguem se tenha enfim dado conta, não sei, que existe a tradução portuguesa de Maria de Lurdes Martins, apresentada no Trindade em 72), a qual, destinando-se a criancas, é um resumo incorrrecto (não consigo perceber como se pode eliminar Sarastro na cena final, e foi isso que vi em palco), e a qual, de resto, é eticamente abusivo anunciar como “produção da Ópera de Colonia” quando de lá provem apenas o “conceito” da encenação de Eike Eicker, o fundamental sendo o uso de desenhos de estudantes de escolas portuguesas.
Nada disto é promissor, muito pelo contrário, E sem qualquer chauvinismo, e na recusa de tal, é mesmo inaceitavel esta transformacao do São Carlos em teatro alemao de segunda ou terceira ordem (ainda por cima, com os cantores a menos), o que de resto é um quadro restritivo de perspectivas e cosmopolitimo, e antes um outro modo provinciano, no caso “deslocalizado”. E énesses termos, creio, e nao em si pelo facto do actual director do teatro ser alemão, que importa discutir e mesmo contestar as opções ora vigentes no único teatro nacional de opera português.
Enunciar uma perspectiva acentuadamente crítica de uma temporada anunciada pode parecer exercício exorbitante, se não mesmo tendencioso. Se, contudo, eu disser que a próxima Temporada 2008-09 da Gulbenkian confirma níveis de excelência, e seleccionar alguns destaques de ainda mais especial expectativa de excelência (o que farei em breve), o facto será considerado conforme ao que se espera de um crítico. Como tal, e numa mesma ordem de razões, afigura-se-me legítimo e pertinente enunciar as razões pelas quais acho bastante problemático, mesmo lamentável, o horizonte que se desenha para o São Carlos.
Devo, é certo, fazer um “mea culpa” por não ter formalizado um balanço da temporada anterior, sendo que é a concreta experiência dessa que mais fundamenta muitas das reservas que enunciarei. Mas, sucedendo isso, também direi que sendo indesmentivelmente ora o São Carlos um caso de posicionamentos antagonistas, de Pinamonti “versus” Dammann, também tive, por exemplo, ocasião de fazer notar que as responsabilidades que já eram assacadas ao novo director, em concreto a desastrosa encenação do Rigoletto, eram ainda de facto uma aposta do anterior.
E pois que falo em concreto de Pinamonti e Dammann acrescento – até para enquadrar em devidos termos algo que me importa dizer – que já tive ocasião de recordar reacções havidas justamente quando da nomeação de Pinamonti. Como alguns se lembrarão, logo após a demissão de Manuel Maria Carrilho de ministro da Cultura, o director do São Carlos, Paulo Ferreira de Castro, apresentou também a sua demissão. Quando passado algum tempo o então novo ministro José Estêvão Sasportes anunciou Paolo Pinamonti como director do teatro o ex-ministro Carrilho teve um reflexo despeitado e reaccionário, considerando inconcebível que um estrangeiro viesse dirigir um teatro nacional português. Para além do des-gosto que tal reflexo me suscitou, não pude deixar de sorrir: tal reacção lembrou-me a “indignação” manifestada em França quando o alemão Rolf Liebermann foi convidado para director da Ópera de Paris – e depois, como se sabe, foi ele que a retirou do plano inclinado e lhe deu de novo brilho.
Acrescento ainda, e poderia invocar inúmeros exemplos nas minhas tomadas de posição ao longo dos anos, que sou fundamentalmente cosmopolita e alérgico a chauvinismos, e mais ainda em termos de arte em geral e de ópera em particular, sendo até que neste caso da ópera as diversas tradições nacionais só podem ser apreciadas em devidos termos no quadro de um cosmopolitismo genérico.
Isto tudo dito, entremos na matéria para desde logo dizer que Christoph Dammann, ex-director da Ópera de Colónia (de onde não saiu propriamente aureolado de prestígio) e (só) agora pleno directo artístico do Teatro Nacional de São Carlos, está a proceder a uma “deslocalizaçãso” de um hegemonismo inaceitável, sendo que das oito produções anunciadas para a nova temporada, três, todas as três “importadas”, provêm de teatros alemães, as óperas de Frankfurt, Leipzig e Colónia, e uma outra, nova, é uma co-produção com um teatro alemão de terceira ou quarta categoria, o de Erfurt.
Vamos então a alguns aspectos concretos.
Na temporada passada, a quase única produção de total responsabilidade de Dammann foram uns Contos de Hoffmann de Offenbach encenados por Christian van Götz, que foi aliás um dos mais vergonhosos espectáculos de ópera que alguma vez vi – e não é que tenha pouca experiência de desastrados espectáculos de ópera. Ora, na tradição dos teatros alemães, há duas óperas francesas que são presenças recorrentes, de resto porque ambas de inspiração literária alemã: Os Contos de Hoffmann e o Fausto de Gounod. Pois se Os Contos houve na temporada anterior, eis logo que para a próxima se anuncia…o Fausto.
Deve dizer-se que Dammann apresenta três encenadores alemães de notoriedade, Christof Loy, Peter Konwitschny e Michael Hampe. Digo desde já que por muitas razões desde logo dispensava o segundo e o terceiro, aliás por motivos opostos.
Michael Hampe foi o “encenador de serviço” do Festival de Salzburgo durante os anos finais da “era Karajan”. Depois disso, e por certo com razões de sobras, nunca mais lá o chamaram. Por mim, disse as vezes bastantes que o acho “o mais chato encenador do mundo” para não o repetir agora. Quanto aos outros dois, mas sobretudo Konwitschny, confesso, com indesmentível perversidade, que já antevejo com um sorriso irónico o que poderão vir a ser as reacções em São Carlos, com a crescente “conservadorização” do seu público, às encenações deles, às quais está usualmente aposta a expressão “skandal”, quase que em jeito de imperativo categórico, com tudo o que supõe também de gesto gratuito.
com Elisabete Matos, Ewan Brouwers, Vladimir Vaneev
encenação de Robert Carsen
direcção de Lothar Koenigs
São Carlos, 19 de Maio
A Cavalleria Rusticana de Mascagni é baseada em Giovanni Verga, expoente do verismo literário. Subsequentemente, a que foi também designada por Giovanne scuola italiana ficou conhecida como verismo operático, categorização equívoca, já que, tudo considerado, foram de facto poucos as obras de estética “naturalista”, a citada Cavalleria Rusticana, as duas Bohème, de Puccini e de Leoncavallo, ou Il Tabarro.
O que distingue a escola é a concisão dramática, o canto spinto e di forza, a languidez e a predilecção pelo choque passional e as “emoções fortes”, qual antecipação dos media tablóide, mas ao invés do naturalismo as situações abordadas foram muitas vezes do próprio mundo das artes e representação: os Palhaços de Leoncavallo, a Tosca e a Turandot dePuccini (sim, também a Turandot, porque no fundo está a commedia dell’ arte e das máscaras de Gozzi), a Adriana Lecouvreur de Cilea, esta última e a Tosca sendo mesmo casos em que a prima-donna representa um papel de prima-donna, teatral a Adriana, operática a Floria Tosca.
Apresentou-se agora a Tosca no São Carlos, derradeira produção desta lamentável temporada. Por um lado, o teatro foi aos “saldos”, isto é, buscar à Ópera da Flandres uma encenação de Robert Carsen já com idade considerável, e por outro lado o espectáculo foi gizado como consagração local, finalmente, de uma diva, Elisabete Matos.
Nunca é demais realçar que a produção de óperas é hoje um mercado internacional, com frequente recurso a co-produções e alugueres, que isso o impõe os custos. Mas também não é demais salientar que este sistema se torna mecânico na medida em que muitas vezes, mesmo a maioria, os encenadores não supervisam eles próprios as reposições dos seus trabalhos. Sendo um prolífero encenador, essa ausência é um dado recorrente no caso de Carsen – estava ele ocupado com L’Incoronazione di Poppea, que no passado dia 18 abriu o Festival de Glyndebourne, quando pela segunda vez, depois da Lucia de Lammermoor em 2000, uma encenação sua foi apresentada em São Carlos.
Retrospectivamente, constata-se neste trabalho a predilecção pela mise en abyme que se tornou característica de Carsen. Quando da anterior produção da temporada do São Carlos, uns Contos de Hoffmann que foram verdadeiramente miseráveis, lembrei-me de imediato do esplendor vocal que tinha tido a ocasião de ouvir da vez anterior em que assistira a representações dessa ópera, na Bastilha, com Neil Shicoff e Bryn Terfel; como essa produção, encenada por Carsen, existe em dvd, pode-se verificar como, para entusiasmo sempre do público na Bastilha, a Barcarola é uma típica mise en abyme, no palco estando representada uma plateia.
Se houve um momento em que Carsen logrou notavelmente a reflexividade e duplicação especular da mise en abyme, com o Sonho de uma Noite de Verão de Britten, originalmente apresentado em Aix-en-Provence, e que também existe em dvd, forçoso é dizer que a repetição do processo se tornou estereótipo. É contudo supérfluo tecer uma exegese sobre os trabalhos do encenador a propósito desta Tosca - importa sim questionar a coerência da proposta ora re-apresentada.
Sendo Floria Tosca uma diva, e redobradamente uma personagem teatral, evidente é que a reprodução da representação e a duplicação especular da mise en abyme se justificam. A opção é obstinada neste caso, pois Carsen coloca o Acto I numa plateia, o II em bastidores de fundo do palco e o III no próprio palco, invertido a partir do fundo. O contexto político, tão importante na Tosca, é assim também secundarizado, tornado mesmo irrelevante, o que afinal mais faz sobressair os aspectos soap ou tablóide do enredo; ora, mesmo que se admita a subestimação do carácter de Mario Caravadossi, caso singular de uma personagem de Puccini com características de um herói rissorgimental verdiano, esse contexto político é não obstante fundamental ao grande afrontamento Tosca-Scarpia – que este último seja um chefe de polícia política passa contudo desapercebido nesta produção!
Mas mais grave são os pormenores supérfluos de ostentação, sobretudo no Acto I, com os alunos surgindo na “plateia” do palco quais artistas infantis nos bastidores, o primarismo da pose de star de Tosca ou a sua apresentação, no final, como madonna no altar em fundo ao Te Deum – o redobramento do teatro e da igreja é uma característica da estética barroca, não do verismo, a menos que neste que se queira sobretudo assinalar o rito sacrificial das heroínas (um dos aspectos mais marcantes das óperas de Puccini), opção que todavia também não é a desta encenação.
O azul forte e berrante do vestido da Tosca, e da tela que Cavaradossi pinta, dão “o tom”: esta é uma Tosca carregada, ainda mais primária e em tantos aspectos desleixada.
Ocorria pois que a Tosca fosse Elisabete Matos, cantora com características que serão tanto mais salientes para o papel quanto lhe ocorre ter já ela própria uma pose de diva. Mas mais: este é um papel para vedetas temperamentais como ela, quais Anna Magnani cantoras – e em 1946, a Magnani foi de resto a vedeta de Avanti a lui tremava tutta Roma, filme que era uma Tosca-anti-fascista (e não operática, mas com Titto Gobbi como herói), feito em jeito de se redimir por uns dos realizadores mais destacados do fascismo, o de Scipione l’Africano, Carmine Gallone.
É por demais absurdo protestar por princípio contra o “vedetismo” em ópera – afinal, não só foi neste género que historicamente se constituiu o star system, com os castrati e prima-donne, como ele supõe o artifício exacerbado de criaturas cantantes, expoentes de uma convenção artificiosa. E, na prática das concretas produções, é evidente que um dos pressupostos de base das escolhas artísticas é o de programar também em função dos atributos de peculiares específicos intérpretes.
As capacidades de Elisabete Matos, e o estatuto de notoriedade que atingiu, mais que justificam que houvesse enfim no São Carlos uma produção gizada em seu torno, que não apenas os Amor Brujo e Cavalleria Rusticana que interpretou nas últimas temporadas – e se se relembrar que em 2003 foi cancelado um Navio Fantasma em que ela devia participar, mais se compreende e justifica a opção.
Todavia, se tem as capacidades vocais e temperamentais, também lhe falta, pelo menos por ora, o canto appassionato e o slancio que o papel exige – e quanto a isso o “Vissi d’arte”, momento culminante da prima-donna, aliás redobrado nesta produção, com as luzes a acenderem-se na sala, foi afinal um anti-climax –, e a sua Tosca é arrebatada mas não isenta de tiques de vulgaridade. Sendo Elisabete Matos uma intérprete trabalhadora e com uma noção inteligente das suas capacidades e do aperfeiçoamento que ainda necessita, a Tosca, sendo já um seu papel de eleição, poderá ganhar mais consistentes contornos no futuro, que não apenas tão imediatamente vistosos. E, de qualquer modo, faltou para a guiar aqui uma mão inspirada, que manifestamente não houve.
Depois de tantos desastres que se foram sucedendo ao longo do presente temporada do São Carlos, poderemos ser tomados por uma sensação de alívio por esta Tosca ao menos ser uma produção aceitável, o que é inegável – mas isso não basta.
Por exemplo, se um dos traços mais tristemente marcantes foi a aflitiva mediocridade repetida de maestros, Lothar Koenigs é de uma outra bitola. Tenho tido a ocasião de o apreciar várias vezes, sobretudo em reportório das primeiras décadas do século XX, por exemplo quando da estreia na Ópera de Lyon da produção do Wozzeck que o São Carlos depois apresentou no CCB, na temporada passada – e tive também a ocasião de dizer que se muito mais apreciei em Lisboa foi fruto, nomeadamente, de uma superior direcção de Eliahu Inbal. Fico que de facto com dúvidas que a Tosca lhe seja obra indicada, porque no seu empenhamento dramático falta ainda assim o sentido claustrofóbico da extrema concisão do Acto II, o apuro do trabalho sobre a gradação das cores instrumentais, o sentido lânguido e da agógica tão particulares a Puccini.
Quanto aos restantes intérpretes, que em função das opções de produção não foram escolhas de fundo, há a notar o reluzente timbre do tenor Ewan Browers/Cavaradossi, que contudo (e na récita de dia 21, pelo menos, terminou o “E lucevan le stelle” com um escusado e terrível trilo), e o “erro de casting” que é o Scarpia de Vladimir Vaneev, excelente baixo mas noutro repertório (recorde-se o seu Boris Godounov) e sem as cores mais baritoniais que a tipologia do papel exige.
O facto de esta produção ter sido justificada por Elisabete Matos e não ser tão medíocre quanto as anteriores da temporada não deve pois obliterar que é uma Tosca berrante mas desinspirada.
Antes do mais, a obra – estra concreta ópera, Das Märchen, e a obra de Emmanuel Nunes, em geral.
Sim, “complexidade” e “rigor” são termos que sempre ocorrem a propósito de Nunes. Há um outro modo de considerar essa obra, sem desmentir essas caracterizações: por muito que pense e evoque, não me ocorre uma escrita musical hoje tão estritamente “ontogenética”. Com isso quero referir-me à “rigorosa” obsessão com as potecialidades de uma matéria musical, e tão só com a “complexidade” dessa composição.
Exemplos maiores são os dois vastos ciclos de obras, o centrado em Ruf e o outro, a partir de Nachtmusik I, designado como “A Criação”. Não duvido, de modo algum, que são dois vastos exemplos de “construtivismo musical”, sejam susceptíveis de detalhadas análises. A questão é que a “análise musical” pode ser frutuosa e esclarecedora, é com certeza um indispensável utensílio de aprendizagem e saber, mas não é si mesma “música”. E a música é eminentemente uma arte de dimensão pública.
Como no caso de um Boulez, há também em Emmanuel Nunes essa espantosa capacidade de expôr num acorde inicial as premissas da matéria musical – e o acorde inicial de Das Märchen é um exemplo portentoso. Mas, sem prejuízo da exigência de “rigor” e de “complexidade”, há uma inteligibilidade da matéria que, dada a dimensão pública da arte da música, não é suposto confinar-se apenas ao caracter estritamente “ontogenético” dessa matéria, sob pena de a percepção das próprias lógicas construtivas ficar restrista ao autor e aos seus especialistas.
Pois que falei em Boulez, cujo pensamento musical é um influxo central em Emmanuel Nunes (mais, muito mais do que um também tantas vezes evocado Stockhausen, do qual em Nunes apenas sinto as visíveis marcas de Gruppen), também recordarei que, desde o início dos anos 80, desde o extraordinário Répons, e com base contretamente também na sua tão fecunda experiência de intérprete, noções como a de “trajectória” e de “escuta” lhe passaram a ser axiais. Ora, o que é radical em Nunes - em sentido literal, de raíz – é o fechamento à perspectiva de qualquer dimensão ou parâmetro que não seja apenas o das potencialidades ontogénicas da sua matéria musical. É um pensamento unicitário e anti-dialógico, que exclui qualquer possibilidade de um Outro. Donde, a escuta pode interessar-lhe enquanto a sua própria escuta do material que elaborou, mas não fundamentalmente nos termos próprios da dimensão pública. Dito de outro modo, é também um pensamento voltado para o interior do labirinto da sua complexidade, e desse modo fortemente entrópico.
De facto, o “discurso sobre Nunes”, a “doxa” ciosamente constituída, é também o de uma “verdade revelada”, de que o garante é o próprio compositor e tão só ele. Isto são características gerais, que evidentemente não desmentem ou excluem a fertilidade de um pensamento musical e de algumas obras admiráveis – a meu ver Ruf e Quodlibet sobretudo. Mas que também sugerem uma prudência acrescida ao modo como as referências alardeadas pelo compositor e as suas declarações se tornam “verdades incontestáveis”, quando há também que as situar em termos de recepção – e de recepção crítica.
Um tão acentuado pendor entrópico seria sempre uma questão que acrescidamente se colocaria perante uma ópera, uma obra que exige uma realização cénica e um outro tipo de percepção e recepção. Ainda assim, e porque apesar de ter uma posição de prevenção e de distância crítica, a grandeza do compositor Emmanuel Nunes não deixa de me ser evidente, não suporia que esse radical alheamento de um qualquer Outro e das coordenadas concretas de um espectáculo de teatro musical e dos espectadores fosse tão extremo mesmo em Das Märchen.