Radu Lupu é um pianista imenso. Possui uma sonoridade de uma amplitude enorme (na minha memória, ou na reconstrução da minha memória, aproxima-se apenas dos incomparáveis Gilels e Arrau), uma paleta assombrosa pela variedade de cores e pelo superlativo domínio das dinâmicas e um saber e um domínio técnico do instrumento magistrais. Tendo todos os requisitos para tal é no entanto verdadeiramente a antítese do virtuose brilhante, antes é um intérprete de assinalável sobriedade, idiossincraticamente mesmo – aliás não é pormenor anedótico, e se conjuga com essas características, que apareça sempre de camisola escura e não de casaca. Ele é verdadeiramente um pianista do gesto interpretativo e singular, rigorosamente pensado mesmo quando opções radicais se afiguram discutíveis face à letra da obra interpretada.
Lupu é um schubertiano exponencial (agora que Brendel se retirou não vejo outro intérprete de Schubert desta grandeza), notável também em Mozart, Beethoven, Schumann e sobretudo Brahms. Mas atenção: este perfil interpretativo é o que decorre dos registos fonográficos, e ainda que seja globalmente pertinente, esse tal primado do gesto singular supõe também o concerto público, estando o pianista há anos retirado dos estúdios de gravação por os achar demasiado secos, sem o calor da sala de concertos (embora, como veremos, Lupu esteja entretanto reconvertido à gravação live), espécie de anti-Glenn Gould, sendo que esse tal perfil interpretativo tem agora um espectro mais largo que o que resulta do retrato discográfico: na Gulbenkian onde, para nosso prazer, vem sendo desde há anos presença recorrente, já o ouvimos tocar Debussy, e tocar admiravelmente, como agora o ouvimos em Janácek, no recital, e em Bartók no sucessivo concerto com orquestra.
Em Nas Brumasa leitura de Radu Lupu foi justamente “brumosa”, próxima da paleta do impressionismo francês, embora com algumas rugusidades – sendo que todavia não senti as curvas melódicas que mesmo nesta obra instrumental são tão características de Janácek. Mas nas Sonatas de Beethoven e Schubert as interpretações de Lupu foram colossais! Importa aliás reconsiderá-las em par, Beethoven/ Schubert, e não como somatório, Beethoven+Schubert, de tal modo Lupu sublinhou a filiação do segundo no primeiro.
Na Appassionata a sua opção no andamento inicial pareceu controversa imediata – Lupu não fez um Allegro assai como prescrito (e sabe-se da obsessão de Beethoven pelo rigor dos tempos) mas sim “allegro ma non troppo” quando não mesmo “andantino”. Acontece contudo que o pianista romeno concebeu e concretizou a construção como um crescendo, indo acumulando as tensões até a um arrebatador Presto final. Ora, a Sonata D. 859, obra de que aliás é um intérprete único (desta sonata em particular), surgiu então como obra na descendência de Beethoven, mas de uma grandiosidade e sensibilidade todavia peculiarmente schubertianas – e é bem sabido que só depois da morte de Beethoven em 1828 Schubert, em vez de permanecer na sombra do outro, verdadeiramente se emancipou com as três últimas grandes sonatas, sem deixar de vir na descendência do outro, e sonatas “grandes” também na duração.
Há nessas sonatas “as divinas extensões” de que Schumann falava a propósito de Schubert, um horizonte de infinito que Lupu interpretou com um domínio magistral das macroformas, mas com um lirismo e um refinamento poético de quem domina também as microformas, os Impromptus ou os lieder. O Allegro inicial, extensíssimo, abrindo esse tal horizonte de infinito, de incessantemente recomeçado, e todavia refinadamente poético, foi esmagador, o melodismo tão caracteristicamente schubertiano do Andantino foi sublime, o Scherzo pleno de contrastes (lá está, a memória das microformas!) e enfim o Rondo foi o momento da resolução das tensões. Em suma foi uma interpretação arrebatadora e magistral a que Lupu acrescentou em extra, e numa escolha em nada ocasional, uma Fantasiestück de Schumann de uma delicadeza e de um “fantasismo” verdadeiramente admiráveis.
Foi um recital que confirmou o estatuto do músico e perante nós, para nós, renovou a grandeza de Radu Lupu, imenso pianista e intérprete.
No dia do derradeiro concerto de Alfred Brendel, em Viena
A capa desta caixa, aliás as capas, exterior e interior, bem como as fotos do livrete, induzem em erro: são fotos recentes de Alfred Brendel, quando as gravações registadas nestes cinco dvds datam de há 30 anos, isto é de meados dos anos 70.
Devidamente estabelecidos os factos, estes, longe de diminuírem o valor do testemunho, pelo contrário tornam-no mesmo mais precioso – ouso mesmo dizer, pelas razões que explicarei, como um dos intrinsecamente mais valiosos testemunhos de arte pianística publicados em dvd, e que só em dvd podiam ser publicados, malgrado a mediocridade da realização televisiva.
Recordo que Brendel iniciou a sua carreira em 1948. Desde cedo, é certo, dedicou-se a Beethoven e Mozart (e continuo a ter – como tive aliás ocasião de lhe dizer – uma intensa relação afectiva com os seus primeiros registos de concertos do segundo, os discos que na adolescência me fizeram verdadeiramente descobrir Mozart, e no tocante a este compositor ainda, continuo a pensar que o seu disco em duo com outro pianista, hoje pouco lembrado, Walter Klien, é uma peça a considerar na discografia geral do autor), afinal os dois compositores entre outros canónicos, mas é curial também lembrar factos que hoje muitos nos podem espantar, como que a sua 1ª gravação foi do Concerto nº 5 de Prokofiev, que se dedicou aos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky ou a Islamey de Balakirev, em suma a um repertório virtuosístico, ainda que o inevitável Liszt fosse já então por ele abordado numa perspectiva mais abrangente e menos puramente de fogos de artificio – para se ter a concreta noção pode-se ouvir a recente colectânea completa das gravações, a preço muito acessível, “Young Brendel”.
Mas nos anos 70, Alfred Brendel “reinventou-se” ou consagrou-se como o Brendel que tanto viríamos a admirar, e a este respeito é pertinente abrir um horizonte mais geral.
De facto não foi assim há tanto tempo, 30 anos, mas hoje é de tal modo uma evidência que tendemos a obliturar a contextualização de um facto da maior importância para a arte pianística e para a arte da interpretação musical: nos anos 70, dois pianistas, Alfred Brendel e Maurizio Pollini operaram por assim dizer um “corte epistemológico”, com interpretações muito mais “pensadas” analiticamente e, quando caso, fundadas em pesquisas musicológicas. A contextualização e identificação deste “corte” de tão vastas consequências suscita aliás duas questões colaterais: 1) dificilmente é apenas coincidência que tenha ocorrido no momento de eclosão da “nova música antiga”, filológica e historicamente fundada, e 2) ambos os pianistas se interessaram também por música mais recente no tempo, sendo mesmo que os dois, Brendel e Pollini, foram quais “apóstolos” do Concerto de Schönberg, Pollini tendo-se também dedicado mesmo à música contemporânea (Stockhausen, Nono) que se Brendel não praticou seguiu curioso nalguns casos, como o dos Estudos de Ligeti.
Haverá sempre quem toque ainda como se esta mutação não tivesse existido mas, directa ou indirectamente, a maioria dos pianistas posteriores, dos actuais pianistas portanto, é devedor deste decisivo “corte epistemológico” operado há 30 anos por Brendel e Pollini – por isso parece uma evidência quando afinal esta radical alteração foi ainda há relativamente pouco tempo.
O repertório em que os dois pianistas eminentemente assinalaram um tal “corte” foi o ciclo beethoveniano e as obras de Schubert.
Claro que no tocante a Schubert havia o exemplo precursor de Arthur Schnabel, desde os anos 30, tinha havido Wilhelm Kempf e sobretudo o maravilhoso Rudolf Serkin, mas é importante frisar que Brendel e Pollini iriam, facto inaudito, colocar as tão contestadas ao longo do tempo três últimas Sonatas de Schubert ao nível das suas homólogas de Beethoven – Brendel afirma aliás essa sua convicção nesta série, no dvd 4, na apresentação da Sonata D. 958, a 1º das três últimas.
Vamos então aos factos: estes cinco dvds recolhem um conjunto de 13 programas feitos para a Rádio de Bremen em associação com uma produtora televisiva, em meados dos anos 70, como se disse, e para além da qualidade das interpretações, por vezes excepcional, como as da Sonata D784, da op. 42 D 845, da op. 53 D 850 “Gastein”, da D. 894, da D. 959 ou dos Impromptus, é uma lição analítica absolutamente magistral
Iimporta aliás notar que no momento porventura mais elucidativa do projecto, a introdução à penúltima Sonata D. 959, Brendel explica com assinalável clarividência as razões da “démarche” : “sempre me preocupei em saber o que distingue uma obra-prima das obrras de um compositor menor”. Como se “racionaliza” essa diferença (e uma tal “racionalização” foi crucial ao tal “corte” por isso mesmo “epistemológico”)? Daí surgem a explicação e os detalhes.
Diria mesmo mais: a disciplina de “análise musical” é muitas vezes árida, mais, o seu uso na música contemporânea tornou-se muitas vezes um exercício de legitimação que quase se diria dispensar o real acto de concretização da obra, de a tornar pública através de uma real interpretação. Ao longo das introduções, mas em particular neste momento no último dvd introduzindo a Sonata D. 959 dir-se-ia que a lição de Brendel é tal modo elucidativa que mesmo os alunos de “análise musical” lhe deviam atender.