O que sente quando o comparam com Andrei Tarkovski?
Não sinto nada. Tivemos relações boas mas somos pessoas diferentes.
Mas há alguns pontos de semelhanças entre os filmes de um e de outro, por exemplo, no tratamento da cor e do preto e branco.
Também há semelhanças com Ingmar Bergman e outros realizadores. O que nos liga, Tarkovski e eu, é a Pátria. Ambos somos russos.
Sente-se um autor “espiritual”?
Sim, é verdade. Era o principal para Tarkovski. Por isso, é difícil fazer filmes como os dele. Mas o mais difícil é saber como estabelecer um contacto através dos filmes.
É importante para si ter, através dos filmes, uma relação com Deus?
A questão de Deus é muito importante, mas não gosto do modo como Deus criou o mundo.
Mas em Mãe e Filho, o filho diz: “A criação é uma coisa maravilhosa.”
Eu sou mais livre do que as personagens do filme. Os realizadores devem ser mais livres do que as personagens.
Como consegue fazer tantos filmes?
Com o trabalho da alma e a ajuda da literatura. O “meu Deus” é a literatura, muito mais que o cinema.
Mas a pintura também é importante?
Em segundo lugar, depois da literatura. A pintura é a base do cinema, a literatura é a base espiritual.
Os seus filmes apresentam-se sempre como matéria sensível: a matéria da terra, da água, etc.
Tento criar nos filmes o meu mundo, não uma abstracção — um mundo real, mas meu. Nos meus filmes não está o mundo que Deus criou mas o que eu criei.
Como trabalha a imagem? Usa filtros, planos de pinturas?
Utilizo lentes especiais e a minha experiência de pintor. O pintor, no seu trabalho, usa diferentes técnicas. Eu, por exemplo, uso vidros pintados como modelos. São coisas muito simples, mas criadas para cada um dos filmes.
Nos seus filmes existe a literatura e a pintura, mas também a música e a importância do trabalho sobre o som.
A música é a alma do realizador, a imagem são as pernas. Quando trabalho penso em criar dois filmes, o da imagem e o da música, que devem ser independentes. Nem sempre o consigo mas tento. O director de som deve criar uma obra independente.
Acha que a música e o som são mais puros, que a imagem já está corrompida por tantos anos da história do cinema?
A música e o som não são totalitários como a imagem. O som é mais abstracto, está mais perto da natureza que a imagem. O som nunca pode ser velho, é sempre novo, e a imagem pode envelhecer.
Então a imagem é totalitária?
A imagem prende os homens e, nesse sentido, é totalitária. Quando um homem ouve, a sua imaginação está livre, e quando vê não está, porque só pode imaginar o que está a ver.
Trabalha em documentário e ficção. Como se relacionam os dois trabalhos?
São a mesma coisa. Às vezes é muito mais difícil fazer um documentário que um filme de ficção. Posso comparar o documentário com uma terapia e o filme de ficção com uma cirurgia. Quando a doença não é muito grave recorro à terapia; quando o é faço cirurgia.
Tem vindo a fazer uma série de filmes documentais que se chamam “Elegias”. A morte parece ser uma questão importante no seu cinema.
O mais importante nos meus filmes é a luta da vida contra a morte. Não tenho prazer em pensar na morte.
No entanto, disse que o objectivo da arte era preparar o homem para a morte.
Sim, é verdade. A arte tem muitos objectivos mas o principal é preparar o homem para a morte. Quando vemos os filmes sobre a morte, quando lemos os livros sobre a morte, estamos a preparar-nos, mas nunca estamos prontos.
Disse que cada vez que entramos numa sala de cinema deixamos nela hora e meia da nossa vida.
O homem não paga por nada um preço tão grande como por ver um filme. Entra na sala e quando sai já gastou uma parte da única vida que tem. É uma hora e meia que nunca voltará a existir na vida do espectador e essa medida deve ser uma responsabilidade para o realizador.
Como foi o seu encontro com Soljenitsine, com quem fez O Nó?
Foi uma grande honra. Não esperava encontrar-me com Soljenitsine porque ele é muito solitário. Mas ele tinha visto os meus filmes e quis conhecer-me. Telefonou-me e perguntou se nos podíamos encontrar. Eu fiquei agitado, disse que não tinha tempo. Mas depois encontramo-nos e falámos longamente. Estivemos de acordo em muitas coisas, noutras não, mas gostei muito do encontro.
Então. ao contrário de Soljenitsine, não se sente um profeta?
Não. Tento simplesmente criar o meu mundo, que não é o do passado, o do futuro, ou o do presente.
Sente-se nacionalista?
Gosto muito da cultura russa e, nesse sentido, posso ser considerado nacionalista. Mas não gosto da vida russa.
Mas também não gosta dos valores do Ocidente.
Adoro a arte ocidental do século XIX, mas dos actuais valores ocidentais não gosto. Gosto da cultura do século XIX, ocidental e russa.
Extractos de uma entrevista no “Público” de 21-07-99
Adenda – Funesta coincidência: tinha acabado de pôr este texto em linha quando soube da morte de Soljenitsine-
Exceptuando o caso a todos os títulos singular de A Arca Russa (o filme de um único plano-sequência de quase 100 minutos no Hermitage), as ficções de Aleksandr Sokurov vêm-se organizando nos últimos 10 anos, em dois grandes ciclos: a chamada “trilogia do poder”, com Moloch, Taurus e O Sol, em torno de concretas e históricas “figuras do mal”, respectivamente Hitler, Lenine e Hirohito, paroxísticamente apresentadas de um modo estetizante e dire-se-ia que “humanizado” (passei os dois primeiros em ciclos da Culturgest, o terceiro foi exibido em Abril na Cinemateca), e o “ciclo familiar” com Mãe e Filho e Pai e Filho.
Alexandra poderia de facto intitular-se “avó e neto”, pois é dessa situação que se trata, prosseguindo o “ciclo familiar”. Mas a deslocação para Alexandra não é menos pertinente: nunca no cinema de Sokurov (e apesar da inesquecível Cécile Zervudacki, a “madame Bovary” em Salve e Proteja) houve uma tal presença como a Alexandra de Galina Vishnevskaya.
Aos 80 anos passados, a grande soprano estreou-se assim no cinema, ou quase (já lá iremos) e é por ela e em torno dela que Sokurov fez o filme. Mas, simultaneamente, na obra deste cineasta, ficcionista e documentarista, nunca uma ficção esteve tão perto do real: filmado perto de Grosny, Alexandra é também mesmo que lateralmente um filme sobre a guerra da Chechénia e mais em concreto sobre soldados russos e civis chechenos.
Dir-se-ia haver aqui uma “dissonância” e de facto ela ocorre no filme: Vishnevskaya consegue ser a mais próxima das avós, uma “babushka”, mas não deixa de ser uma presença grandiosa, como o modelo que Sokurov tinha em mente, Anna Magnani. Dissonância será mas não contradição. Essa presença majestosa não deixa de indiciar um “além” para lá do real imediato, o indício de uma outra possibilidade (de “redenção”?) que sempre existe no cinema de Sokurov. Ao mesmo tempo, a pose de Vishnevskaya “cola” às próprias características de altivez da personagem, ou, mais presumivelmente, as segundas foram elaboradas também em função dessa pose.
Uma das coisas que mais me toca e atrai no cinema de Sokurov é que a sua “espiritualidade” é sempre também questão de figuração dos seres e da matéria – e aqui nos deparamos de novo com a terra e o pó, elementos recorrentes do seu cinema, Alexandra parecendo fazendo um raccord com um dos seus primeiros filmes, e dos mais belos, Os Dias do Eclipse, filmado na Ásia Central.
Não há cenas de guerra neste filme, e no entanto pouco vezes as realidades de um exército em guerra nos foram tão presentes. Obviamente que, à imagem dos terrenos em que o filme decorre, Alexandra está, o próprio filme, em campo armadilhado, pela própria realidade que evoca. Vi ser censurado a Sokurov colocar-se no “lado russo” da guerra, como se o contrário é que não fosse estranho e implausível. Não se duvida, o filme não permite duvidar, que o realizador considera a Chechénia como terra russa, afirmando não obstante o seu “humanismo”.
Se nesta consideração é evidente que há um ponto de vista ideológico no filme, esse é apenas uma das suas camadas, e de modo nenhum a mais premente – e recusá-lo por causa desse ponto de vista é afinal bem mais imediatamente ideológico.
Não sei quantos espectadores (e não falo só de Portugal, mas em geral fora da Rússia) reconhecem em Alexandra a figura de Galina Vishnevskaya,. Sendo-me problemático colocar no ponto de vista de um espectador que a não reconheça, ainda assim afigura-se-me difícil que para qualquer um não seja através da extraordinária figura e da extraordinária intérprete que nos aproximamos do filme, que construímos a relação com ele.
Tive também a oportunidade, no último DocLisboa, de apresentar o filme anterior de Sokurov, Elegia da Vida* precisamente dedicado ao casal Mstilav Rostropovich-Galina Vishnevskaya. Quem porventura viu esse filme poderá ter constado que ele se inicia do modo mais “oficioso” em torno de Rostropovich (um jantar de aniversário seu, rodeado de Eltsin, de rainhas e esposas de presidentes da república) para depois, à medida que a arte, e a transmissão da arte, se torna na efectiva matéria do filme, se ir deslocando do violoncelista para a mulher, concluindo-se aliás com um extracto do filme-ópera (entretanto também editado em dvd) em que Vishenavskaya interpreta o papel titular da Katerina Ismailova de Chostakovich – donde, facto inédito no cinema de Sokurov, o final de um filme faz já a ponte para o seguinte, e donde o facto de acima ter escrito “ou quase” sobre esta outra estreia interpretativa de Galina Vishnevskaya.
Muito claramente, em Alexandra Sokurov nunca se esquece de que está também a filmar uma grande cantora, alguém que por si só própria faz uma remissão a um espaço da arte. Daí esta avó ser tão próxima e também tão altiva e grandiosa. Daí que, uma vez mais no cinema de Sokurov, a possibilidade outra, da “redenção” (recorde-se a extraordinária Pietá invertida de Mãe e Filho, invertida porque com a mãe nos braços do filho), se se quiser, da “metafísica”, ou citando outro célebre russo, do “espiritual em arte”, ser também uma questão física de matérias e rostos – e a galeria de rostos, por si só, faz de Alexandra um filme intensíssimo e inesquecível.
* Permitam-me acrescentar que, quando programei a Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto, em 1992, apresentei pela primeira vez em Portugal um filme de Sokurov, O Segundo Círculo. Foram dois casos, esse e o de A Brighter Summer Day de Edward Yang, de realizadores que não estando já na primeira ou segunda obras, e não figurando portanto em concurso, se me afiguravam suficientemente importantes, e urgentes de dar a conhecer. Trata-se portanto, com Sokurov, de um caso antigo de afeição.